Chegar num churrasco de empresários, de moto e com uma camiseta do Che Guevara pode provocar tal desaprovação a ponto de criar mal-estar em algumas pessoas, que atônitas, não chegam a compreender semelhante ato falho. Outras, mais pragmáticas, tentam conter um sorriso de desdém, como se estivessem olhando para um excêntrico. Alguns, ajustados ao mundo racional do mercado esboçam uma alternativa para aquela imagem, por exemplo, a de Adam Smith, que seria a figura mais conveniente, do ponto de vista ideológico, ao modelo neo-liberal que predomina na atualidade. Não poderia ser de outra forma, já que neste início de século foram decretados pelos economistas políticos, o fim das ideologias e o triunfo do capitalismo. Na sociedade capitalista, a passividade do pensamento acrítico é o princípio da ordem. A sua reprodução histórica depende disso. Para tanto, os representantes da ideologia liberal usam o conceito da “mão invisível” para aliar a lógica do mercado às virtudes conservadoras da sociedade burguesa. Smith dizia que os homens devem ser ferozes na concorrência e humildes perante Deus. O sucesso dessa fórmula estaria no cruzamento do altruísmo e egoísmo, no cuidado meticuloso do cálculo dos custos e benefícios e na prática permanente da moralidade religiosa. Numa imagem que faz de si próprio, o ocidente cristão configura-se como um mundo livre, racional e democrático, sem pretensões totalitárias ou populistas, no qual, todo indivíduo possui o direito de obter a felicidade a partir de seus próprios interesses particulares. Nesse contexto, o fundamentalismo liberal afirma de modo incoerente que o objetivo da produção é atender a falta de bens da população. Entretanto, a verdade é que a produção moderna está focada na maximização do lucro privado, no qual os bens produzidos devem render mais dinheiro do que os custos produtivos. Nada disso está direcionado para cobrir as necessidades sociais, apenas serve para dar sustentabilidade à empresa num sistema de concorrência. Smith, em seu livro “A Riqueza das Nações” já tinha percebido esse fenômeno quando dizia “O interesse dos empresários por qualquer ramo de comércio ou indústria é sempre, em alguns aspectos, diferente e até mesmo oposto aos interesses do povo. Seu interesse é sempre diminuir a concorrência, e só poderá servir para permitir, ao aumentar seus lucros, cobrir, em proveito próprio, um imposto absurdo do resto de seus concidadãos”. Nada mais esclarecedor para dimensionar ideologicamente um pensador que tanto fez para institucionalizar um sistema econômico que hoje predomina sem questionamentos. A estampa do Che Guevara numa camiseta, além de seu conteúdo banalizado pela propaganda inconseqüente, tem a característica, para aqueles que viveram a experiência da convergência da cultura e a política, de perceberem que o poder também pode existir em outros âmbitos da sociedade. O Che foi o emblema da revolta cultural, que permitiu sonhar com a capacidade de resistir ao domínio de classe, de duvidar de sua legitimidade, de contestar sua perpetuação. Nada tem de subversivo andar de moto com uma camiseta com a imagem do Che. Ela está destinada a resgatar os símbolos infiltrados no inconsciente da sociedade, como práxis cultural, muito longe daqueles que pautaram sua vida em ícones pecuniários como meta para sua existência terrena.
quarta-feira, 17 de outubro de 2007
CARTA À REVISTA VEJA
Prezado Senhores da revista Veja,
Gostaria de encaminhar minha crítica diretamente ao senhor, de modo a explicitar meu desconforto com referência ao desastroso especial sobre o Comandante Ernesto Che Guevara. Comentários de tal natureza, por parte dos autores, de extrema parcialidade e fragmentação histórica, só conseguem reforçar a imagem de um mito universal como é a figura do Che, ícone cultural que representa a síntese dramática de uma época em que a alternativa revolucionária era imaginada como o caminho para uma sociedade diferente, livre do imperialismo colonial que grande parte da humanidade estava padecendo. Talvez porque os símbolos atuais são tão diferentes daqueles que o Che viveu e pelos quais morreu, que hoje parecem sem conteúdo, e são reproduzidos num especial copiado, sem qualquer esforço de pesquisa ampla e imparcial, a partir de um vídeo anticastrista editado nos Estados Unidos, mas que ressuscita, através da desqualificação de um mito, os apavorantes fantasmas internos daqueles que passam a vida atormentados na defesa de seus interesses pecuniários. Tanto é verdade, que existe uma diferença brutal de conteúdo no especial de Dorrit Harazim, publicado na revista Veja da edição 1503 do dia 09/07/1997 com o título “O triunfo final de Che” e a publicação atual, assustada com o surgimento de novas revoltas populares. Nesse caso, o que tal matéria explicitava naquela época? Não era um especial simpático ao Che, já que a direção da revista, conhecida pelo seu conservadorismo, nunca permitiria publicar, e sim como aviso de que com a “busca de seus ossos, ressurgem as idéias e as aventuras do guerrilheiro mitológico”. O destino social da figura do Che no inconsciente coletivo de grande parte da humanidade não pode ser desautorizado por um “especial de pasquim”, destinado a obscurecer os triunfos intelectuais acentuando as falhas do homem de carne e osso. Qual o motivo para publicar um suposto “pedido de misericórdia” e não imaginar que qualquer ser humano, numa situação dessas, está sujeito a negociar a rendição? Porque não ressaltar que, perante a morte evidente, o comandante Guevara se levantou desafiando seu assassino, conforme o relatório secreto do exército norte-americano do dia 28 de novembro de 1967, que diz: “Ouvindo os tiros, pela primeira vez Che pareceu apavorado. Ao ver Teran entrar de novo o prisioneiro se levantou mais uma vez para enfrentá-lo, Teran mandou que ficasse sentado, mas Guevara respondeu – Agora quero ficar de pé. Enfurecido, o sargento o intimou para que se sentasse. Mas Che perdeu a calma – Saiba que está matando um homem”.
Resulta muito interessante que os senhores Diogo Schelp e Duda Teixeira tenham dado tanto ênfase ao tema da freqüência do banho e do cheiro do Che. Tal comentário possui uma conotação freudiana, própria de uma sublimação de gênero muito estranha, dir-se-ia duvidosa, que tem a capacidade de imaginar a existência de um guerrilheiro perfumado. O ato falho dos autores ficou claramente explícito na irrelevância do tema. Também é sumamente tendenciosa a afirmativa de que Guevara tinha uma maníaca necessidade de matar pessoas. Pode-se concordar que os fuzilamentos comandados pelo Che eram desprovidos de um processo respeitoso, mas que devem ser vistos num contexto especial, de ânimos exacerbados perante os excessos dos homens de Batista. Quando a revista cita Huber Matos, esconde que Guevara sugeriu a interposição de uma apelação, depois do julgamento, para que o mesmo não fosse fuzilado. As execuções nunca foram um banho de sangue e, segundo o biógrafo Jorge Castañeda “nem se exterminaram pessoas inocentes em número mesmo minimamente significativo”. A luz das torturas e mortes realizadas pelas ditaduras militares de Pinochet, Videla e outros tantos na América latina, assim como os massacres na África e na Ásia praticados pelas hordas mercenárias e assassinas das potências coloniais, tais acontecimentos significaram pouca coisa. É claro que nada justifica a morte de seres humanos. No entanto, forçar a destruição da imagem de um mito, esgrimindo a desinformação histórica e separando os fatos de maneira fragmentada através da desqualificação dos seus personagens, só serve para levantar a suspeita de interesses espúrios, destinados a desmerecer qualquer iniciativa atual que tenha conotações populares. Nesse caso, vale a pena perguntar, já que a revista cita “o sucesso da máquina de propaganda marxista na elaboração de seu maior e até então intocado mito”, a quem tal publicação serve? Aos interesses do imperialismo cultural, oligárquico e conservador? Ou terá outras motivações desconhecidas do grande público?
Entretanto, perante a linha editorial de extrema-direita capenga da revista, me sugere que não existe nada de mais profundo do que apenas escandalizar os incautos leitores leigos. Tal publicação carece de capacidade conspiratória organizada, já que não sabe muito bem o que publica, apenas está direcionada para atender e configurar o discurso de alguns setores de classes sociais seduzidas pela promessa de mobilidade ascendente, que precisam reforçar suas concepções de desigualdade social como coisas do destino, e não como resultado de ações puramente humanas. Nada melhor do que isso para acalmar o desconforto que significa reconhecer a existência da miséria e da exclusão social, que tal revista, isso sim, esconde com suprema maestria.
Desmerecer o trabalho de Guevara à frente da economia da ilha é uma visão mesquinha de quem só visualiza o sucesso monetário como única saída para o progresso humano. É verdade que o Che, no seu empenho de concretizar desafios inalcançáveis numa economia sitiada e sustentada apenas numa monocultura que era a cana de açúcar, o discurso de desenvolvimento ficou grande parte na retórica. Porém, a revolução alcançou grandes conquistas no campo da educação e da saúde. Os autores não citam nada disso, como também nada dizem dos fatos complicadores do cerco americano, que inviabilizava qualquer sonho de desenvolvimento autônomo. No entanto, na sua grandeza, o Che sempre fez sua autocrítica com referência aos transtornos da economia. É por isso que seus erros não superam a competência administrativa, disciplinada e de esforço particular inestimáveis para um país que vivia o isolamento criminoso de uma potência que se sentia a dona do continente. Também é verdade que a tarefa encomendada ao Che era muito difícil de ser realizada. Sua esperança estava na ajuda da União Soviética e no seu voluntarismo particular. Mas isso não era suficiente, e o Che soube fazer as críticas necessárias aos fracassos econômicos da revolução, assumindo suas responsabilidades. Essa parte de sua vida é suficiente para acabar com o mito? Enganam-se os autores de tal matéria que com isso destruirão a imagem de Ernesto Che Guevara. Ele não foi apenas um dos combatentes que levou a cabo ações militares na Sierra Maestra – em que sua coragem lhe valeu a rápida ascensão a Comandante – senão também um protagonista fundamental de uma década marcada por lutas de descolonização e pela crise da Guerra Fria, que a revista Veja esconde sorrateiramente do público desavisado. Tal época configurou sua conversão em símbolo, uma instância que termina consolidando-se com sua morte na Bolívia. Gostem ou não seus algozes panfletários, sua figura se perpetua através da história dimensionada pela ética revolucionária, pela costumeira rejeição de qualquer tipo de privilégios, por seus escritos e por seus sonhos de um mundo com justiça social.
Tal personificação serve como esperança renovadora perante o fracasso evidente da economia de mercado, configurada como o triunfo do capitalismo, de um mundo globalizado apenas na circulação de dinheiro fácil, concentrador de riqueza, sustentado pelo financeirização da economia, do tráfico de drogas, das armas e da prostituição. É esse o mundo que estamos construindo além dos mitos? Quem são seus autores? Em que paraísos se escondem?
Se os senhores da revista Veja ainda não conseguiram entender porque o rosto do Che foi parar no biquíni de Gisele Bündchen, em pôsteres e camisetas de todo o mundo, então devem começar por reinventar suas identidades, de modo a saber que os anos sessenta, tão novamente atuais neste início de século, marcaram grandes lutas populares e de insurreição cultural. Porque é no campo da cultura que o povo se confronta com a expressão da vontade subjugada, da inteligência alienada, cuja função é reproduzir o despojo mental da dependência cultural, de modo a instrumentalizar a desculturação compulsiva. O mito do Che nasceu nesse tempo, e se perpetua porque a cultura popular não é boba e sempre se revitaliza, renovando-o como um ícone cultural, até para mostrá-lo numa roupa feminina, que tanto afeta a auto-estima quanto a inveja repugnante dos feios deste mundo.
Atenciosamente,
Victor Alberto Danich
Sociólogo