segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O FANTASMA DA FOME

Em princípio, quero parabenizar o economista e professor Sergio Sebold pelo artigo “Barriga vazia não gera PIB”, publicado no painel do leitor do jornal O Correio do Povo no dia 10/02/2011. Nele refere-se aos novos augúrios de um mundo sem comida, no qual a falácia neoliberal inaugura o fantasma da fome como nova saída para perpetuar-se numa pretensa sobrevida. A crítica bem fundamentada deste economista, leva-nos a pensar de que forma os cientistas sociais enfrentam as mistificações colosais com aqueles que mostram sua complacência ou cumplicidade, que faz deles co-autores do neoliberalismo e suas mais variadas formas de mentir, fantasiar, enganar e falsificar. A mudança pelos intelectuais do mais monstruoso projeto histórico do capitalismo num projeto aceitável para todos, deve ser feito com o risco de que a sociedade, num primeiro momento, não entenda seu conteúdo real, senão longos anos depois. Tal iniciativa deve configurar-se como um processo no qual o cientista social tenha a obrigação de denunciar e desestruturar tal modelo, submetendo-o a uma teoria explícita que seja capaz de construir alternativas dignas para a sobrevivência da própria sociedade.
A luta contra a fome envolve uma série de condicionantes históricos diretamente ligados a ela. Quando um país vive numa situação de miséria, pode-se dizer que, praticamente, todas essas causas são resultado, na sua origem, da fome de seus habitantes. Outras dependem da situação do próprio país, como as desigualdades sociais, o regime de monocultura, os conflitos armados e as relações de troca entre os diversos países, principalmente quando a economia encontra-se sob o controle das multinacionais, que são organizações que tem condições de realizar operações globais, sem a intervenção do estado ou qualquer outro tipo de controle. Daí a importância da transformação da geografia econômica mundial, de modo que os países em desenvolvimento mudem seu lugar no mundo. O Brasil, assim como um novo grupo de países, começam a ter uma maior capacidade de articulação na Organização Mundial do Comércio, no Fundo Monetário Internacional e na própria Nações Unidas. O protagonismo dessa iniciativa parte da construção de coalizões que vão além das relações tradicionais, especialmente aqueles mecanismos de diálogo e concertação no aprofundamento da integração sul-americana. A intensa relação com os parceiros vizinhos, consolidada através do acordo MERCOSUL e Comunidade Andina, propicia uma região de livre comércio envolvendo toda América do Sul, além da respectiva integração física que levou á criação da União das Nações Sul-americanas – UNASUL. Nada mais estratégico para transformar os países ao sul do Rio Bravo no novo celeiro do mundo. Entretanto, depois do fracasso econômico, o modelo neoliberal ressuscita uma nova arma: a falta de alimentos. Tal circunstância nos alerta que tal modelo deixa-nos a herança de uma sociedade profundamente desgarrada, com graves problemas para reconstituir-se desde o ponto de vista da integração social, agredindo constantemente ao conceito e a prática da cidadania. O conjunto de direitos e habilitações que a cidadania nos confere, resultado de árduas lutas democráticas das maiorias populares, ficou desmantelado pelas políticas econômicas e sociais que excluem de seu exercício efetivo a grandes setores da população. A “democratização” ganha espaço na retórica dos discursos, mas essas mesmas políticas econômicas negam o próprio exercício da cidadania. Quem não tem casa nem comida, quem está desempregado, nunca poderá exercer os direitos que, por princípio, a democracia deve conceder a todos por igual. Hoje, torna-se necessário desenhar uma estratégia de longa duração, de forma a revigorar os ideais humanistas, num momento em que o capitalismo se reconverte num sentido reacionário e regressivo. O intelectual comprometido com a justiça social deve estar sempre presente na sua contribuição para a derrota total do liberalismo econômico. Principalmente, na sua derrota moral.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

ARISTOCRACIA, RIQUEZA E EXCREMENTOS

Se fizermos uma viagem histórica aos confins remotos da antiguidade, vamos esbarrar com um fenômeno que se repete dramaticamente ao longo do tempo: as crises alimentares. O período de progresso e grandiosidade entre os séculos XI e XII cessou repentinamente pelo retorno do flagelo da fome. Ela reaparece no começo do século XIV, fazendo com que a população europeia diminuísse de forma alarmante durante a vigência de essa restrição alimentar. Parece impossível, mas apenas no início do século XIX é que a população volta a crescer na Europa, chamando a atenção dos economistas interessados em entender a periodicidade de tal fenômeno. Qual seria a relação existente entre a fome e a economia, que conjugasse os efeitos de ambas na redução da população?
Durante muito tempo, a economia política clássica que surgiu no fim do século XVIII, na qual Adam Smith e David Ricardo são seus principais representantes, teve como centro a questão de descobrir se é “a terra ou o homem a verdadeira fonte das riquezas”. No entanto, foi um pastor anglicano, Thomas Malthus, que introduziria uma nova interpretação econômica da história humana. A lei de Malthus argumentava de que quaisquer sejam os progressos da civilização, os rendimentos dos habitantes de uma nação não deveriam aumentar. Tais rendimentos fariam com que houvesse um aumento exponencial da população, que levaria a interromper essas melhorias por falta de terras disponíveis. A teoria da renda, para este economista religioso, não é resultado da terra como única fonte de riquezas, legado de uma infinita providência divina, e sim de um Deus que mede a renda pela avareza e não por uma suposta generosidade. Nada melhor do que esta argumentação para justificar a relação íntima entre a renda e a riqueza aristocrática. Os nobres teriam, por direito divino, de apropriar-se das melhores terras, e assim manter de forma harmônica o crescimento demográfico. O que significava isto? Que um bom governo sempre terminava prejudicando o bem-estar público, já que tudo aquilo que se configurava como uma conquista – estabilidade, paz e higiene pública – terminava-se transformando numa calamidade, favorecendo o crescimento da população e, portanto, o surgimento da miséria e da fome. Realmente, uma visão bastante extravagante da história.
Nesse caso, as guerras, o descaso, a má vida e suas conseqüências funestas, levariam ao mundo a uma situação posterior mais confortável, fazendo com que os sobreviventes tivessem uma vida melhor. Os ricos e poderosos, demograficamente escassos, seriam os beneficiários diretos dessa situação. A morte dos pobres garantiria a sobrevivência do soberano e seus cortesãos. A justiça divina cumprira dessa forma seus desígnios históricos, e a nobreza garantiria sua perpetuação. Como isso funcionava na prática?
Na época em que vigorava a lei de Malthus, a existência de uma alta mortalidade por causa da fome e da falta de higiene era considerada um beneficio, já que permitia a sobra de alimentos para abastecer aos donos da renda e da terra. Por outro lado, a falta de higiene não chegava a molestar ao conjunto da sociedade. Isso era visto como um recurso de estabilidade demográfica. A fragrância dos perfumes não eliminava o cheiro espantoso das latrinas próximas aos aposentos do palácio de Versalhes. Na era Shakespeariana, os teatros ingleses careciam de sanitários, fazendo com que o público presente fizesse suas necessidades no jardim, ou no próprio teatro, no meio das cortinas, escadas e corredores. Esta pequena mostra da realidade que se confronta com o glamour e esplendor mostrado pelo cinema Hollywoodiano, deixa-nos um recado sinistro. O liberalismo econômico malthusiano, fonte inequívoca da ciência econômica atual, nos indica que as desigualdades são a forma mais eficiente para evitar a fome e a miséria humana. Só falta surgir aquele, mais uma vez, que esteja disposto a assumir a responsabilidade de dizer que tudo isso é uma coisa boa e inevitável, iniciando um novo holocausto sem remorsos.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

O CONTROLE SOCIAL SILENCIOSO

O controle social faz referência aos meios usados por uma sociedade para enquadrar seus membros dentro dos parâmetros de um determinado comportamento institucionalizado. A forma maior de controle social é a violência física, a ser aplicada como argumento final quando os recursos de outro tipo se esgotam. Nos países ocidentais, onde prevalecem certas normas de submissão voluntária às leis, o uso da violência oficial dificilmente se torna visível. O importante é que todos, por consenso geral saibam que ela existe, e se por alguma razão tal meio de coerção falhar, essa mesma violência pode ser usada oficial e legalmente contra eles. Compreendendo assim o uso da violência como mecanismo de controle social, poder-se-ia entender outros meios subviolentos que usam processos de intimidação de origem político e legal, principalmente aqueles que utilizam a coerção econômica para ameaçar o próprio sustento ou a obtenção de vantagens sociais. Entretanto, não apenas “os meios econômicos” de controle social são eficientes para manter a ordem, senão que também existem outros mecanismos muito potentes e sutis que podem ser aplicados ao suposto transgressor em termos de persuasão, de ridicularização, difamação ou opróbrio. Sabe-se, por experiência, que quando existem discussões em grupo durante um longo período, os indivíduos modificam suas opiniões originais, ajustando-as à norma grupal, como forma de estabelecer um consenso com aquelas sedimentadas pelo grupo. Muitas pessoas já sentiram o horror eletrizante de cair no ridículo em alguma situação social, ou serem criminalizadas perante a comunidade. A difamação tem uma eficácia avassaladora em comunidades conservadoras, na qual as pessoas estruturam suas vidas em função da visibilidade de seu status e na possibilidade da perda de seu papel social. Tanto o ridículo como a difamação pode ser manipulada por qualquer individuo que tenha fácil acesso aos canais da trama social, podendo assim efetivar o mecanismo institucional de punição, sem provocar a mínima suspeita de tê-lo cometido através de um ato ilegal. Quando se fala de “instituição” referimos-no a um complexo específico de ações sociais. Isso sugere que as leis, as classes sociais, a educação e as religiões sejam instituições reguladoras, pelas quais a conduta humana é padronizada e direcionada para comportamentos considerados desejáveis pela sociedade, e que são organizados e colocados em prática de forma tão sutil que o indivíduo aceita-os como verdadeiros e sem questionamentos.
Pode-se observar que a canalização de determinados tipos de comportamentos traz consigo a idéia de que a sociedade não passa de uma gigantesca prisão, no qual os fatos sociais “são coisas” segundo a afirmação do cientista social Emile Durkheim, “possuidoras de uma existência objetiva externa a nós”. A sociedade, como fato externo à consciência individual, manifesta-se, sobretudo, na forma de coerção. As instituições moldam a conduta dos indivíduos e suas ações. Serão recompensados enquanto se limitem a representar seus papéis. Se saírem fora deles, a sociedade pune-os com vastos meios de controle e coerção. As sanções da sociedade são capazes, em todo momento, de condená-los ao opróbrio, de expô-los ao ridículo, de privá-los do sustento ou da liberdade. Percebe-se com isso, que a dignidade humana é uma questão de permissão social. A lei e a moralidade da sociedade podem apresentar milhares de justificativas para cada uma dessas ações, e a maioria das pessoas aprovará sem condicionantes a sua aplicação como castigo pelo “desvio”. Nesse caso, o ser humano pouco vale como biografia individual. Apenas a sociedade, como entidade histórica, tem as atribuições de homologar o “repertório de papéis” que esse indivíduo deve cumprir. A submissão total a esses padrões de comportamento, dificilmente perturbará o funcionamento da sociedade que, sem contratempos, poderá continuar disfarçando as possíveis falhas do modelo social vigente, muito conveniente para alguns poucos.
Victor Alberto Danich
Sociólogo