sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

MENSAGEM DE UM ATEU AOS CRISTÃOS

Não aceitar a existência de divindades, não significa que o conhecimento religioso seja excluído do imaginário intelectual daqueles que não acreditam. Ao contrário, conhecer fatos relacionados à história das religiões, resulta muito importante para entender como funcionam tais mecanismos culturais. Para ser ateu é necessário “a priori”, ter sido religioso. O caminho da experiência metodológica leva-nos a observar a construção da realidade através de infinitas visões. O ateísmo é uma delas. Não entanto, por ter sido católico na minha adolescência, acho que devo, por compromisso, fazer algumas considerações com referência aos festejos natalinos que se aproximam.
A teologia protestante, que surge com a Reforma, é um exemplo claro da filosofia do individualismo implantada pela burguesia nascente, que precisava da suficiente liberdade para abrir espaço a produção e o comércio, como também em relação à condenação moral que a Igreja Católica associava a tais atividades. A doutrina da justificação pela fé, foi à precursora inconsciente das novas práticas econômicas da burguesia. Dessa forma, os puritanos tentaram espiritualizar os processos econômicos, impondo, de certa maneira, a idéia de que "Deus tinha criado o mercado e a troca", sempre considerando o valor religioso baseado no trabalho árduo e ascético como forma de se glorificar a Ele. Não e de estranhar, portanto, que a figura simpática de Papai Noel, que faz parte das tradições pagãs dos Celtas e dos países nórdicos, tenha se incorporado, num processo de sincretismo religioso, ao protestantismo do norte da Europa com o nome de Santa Klaus ou São Nicolau, e que representa, sem dúvida, apesar de sua imagem inocente, a opulência e o hedonismo da sociedade capitalista. Por outro lado, principalmente os católicos, não devem esquecer que “Deus desceu até o esterco da gruta de Belém", e, portanto, o espírito do Natal deve ser configurado exclusivamente em torno da imagem do “Presépio”, com Jesus menino, com Maria, com José, com os três Reis Magos que tributam sua riqueza a pobreza.
Parece significativo o fato de o menino Jesus ter nascido pobre, que representa: "Viver a experiência dos sem teto, da periferia, da exclusão". Mais ainda, “viver e morrer de consumição, obcecado por sua virtude, sem cuidar de si mesmo, entregando sua vida em holocausto aos demais”. O Natal que prenuncia o advento de Jesus, tanto para crentes como para ateus, propicia simbolicamente o momento para repensar o sentido de sua missão como projeto solidário, na qual os pobres são as figuras principais, e com os quais os mais privilegiados devem aprender a compartilhar, ajudando-os a viver com dignidade.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

O PAÍS DO BOLSA FAMÍLIA

Estamos nas vésperas do final de ano e, como brasileiro que sonha com a construção de um país mais justo e solidário, quero fazer algumas considerações sobre as políticas públicas de distribuição de renda realizadas pelo Governo Federal. O estudo desenvolvido pelo Centro Internacional de Pobreza em parceria com o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – IPEA, através do texto intitulado “Todas as transferências de renda diminuem a desigualdade?”, que analisou os programas Bolsa Família, Chile Solidário e Oportunidades, implantados no Brasil, no Chile e no México, respectivamente, concluiu que o aumento do benefício ou o número de atendidos por programas de transferência, como o Bolsa Família, ajuda a derrubar a desigualdade de renda, desde que o foco permaneça na população mais pobre. Resulta interessante verificar que, nos casos brasileiro e mexicano, os repasses representam cerca de 0,5% da renda familiar total do país; e no Chile, equivale a 0,01%.
A queda na desigualdade registrada no Brasil, de quase três pontos é igual ou maior ao ritmo registrado em países como Inglaterra e França, quando aqueles países estavam instalando políticas de proteção social num passado recente. O problema que surge na aplicação de tais iniciativas, não é resultado da própria execução, senão de pessoas que, na sua insensibilidade, estão em contra de qualquer ação distributiva que não coincida com suas visões particulares da realidade econômica, sempre procurando exaltar as distorções que possam acontecer na aplicação de tais programas.
Resulta mais triste verificar que as camadas de classe média com aspirações burguesas aceitam tais críticas como verdadeiras, sem tomar a precaução de pesquisar os dados divulgados internacionalmente, por meio de instituições altamente reconhecidas. Chegará o dia em que aqueles que “nunca tem sede porque nadam em água doce” aprendam a processar as informações convenientemente, de modo a avaliar os avanços que o país está logrando através da aplicação de políticas públicas direcionadas a atender os setores excluídos da sociedade. O desenvolvimento do Brasil não se mede a partir dos celulares e os carros zero que algumas pessoas podem comprar. A medição é feita nos recursos destinados a diminuir as desigualdades sociais em todas as camadas da sociedade. Nestes últimos anos, 100 milhões de brasileiros entraram no patamar de classe média, o que significa maior consumo e maior produção de riqueza. Na Idade Média, era dever de cristão compensar aqueles que nada possuíam. Parece que os cristãos contemporâneos só ajudam quando chamados institucionalmente. O resto do discurso fica na retórica do politicamente correto, e nada mais.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

A NEUROSE DO DESTINO

Nascido numa geração de pós-guerra, influenciado pela retórica cultural dos países aliados, vendo filmes de propaganda americanos ao compasso de “Chattanooga choo-choo” e “St. Louis March” com a orquestra do magnífico Glenn Miller, minha juventude sofreu o impacto perturbador das “guerras justas”. As cenas idílicas no meio das batalhas entre Humphrey Bogart e Ingrid Bergman em “Casablanca” me deixavam extasiado. Minha paixão pelos americanos não tinha limites. Era louco de desejo pela Marilyn Monroe e tinha uma brutal admiração pelo presidente Kennedy. A morte de ambos foi um divisor na minha consciência.
Descobri que o elemento de verdade por trás de tudo isso, que a maioria das pessoas está sempre disposta a repudiar, é que os seres humanos não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que podem apenas defender-se se forem atacadas. Pelo contrário, são criaturas com poderosa quota de agressividade. Ou como diria Sigmund Freud: “O seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que tenta satisfazer sua agressividade, explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de seus bens, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo”.
Estados Unidos é um país poderoso, sofre crises e suas falhas nos atingem, sua política externa imperial nos afeta e somos incapazes de libertar-nos. Sua agressividade tem as mesmas características das nossas. No entanto, as dimensões das tragédias sempre, na história da humanidade, mantiveram sua proporcionalidade conforme o tamanho e a importância dos países. O ser humano tenta esconder sua agressividade gratuita, sejam norte-americanos ou não, através de concepções religiosas fundamentalistas, tanto no Ocidente como no Oriente, mas que no fundo esconde a “pulsão da morte”. “A finalidade de toda a vida é a própria morte” definia Freud, que confirma que a agressão corre solta no mundo, alimentada por um impulso primitivo nessa direção. De Afeganistão ao Iraque, a tortura tem sido o sócio silencioso da cruzada pela liberdade do mercado global. A morte prematura do ser humano perante a chama do capitalismo em estado puro, é mostrada como o ponto final da evolução ideológica da humanidade.
A “neurose do destino” torna-se assim, numa compulsão a repetir uma experiência dolorosa, que se instala de maneira inconsciente nas fantasias de um povo, a ponto de se empenhar ao máximo em se deter em infelicidades e afrontas, tentando de forma neurótica dar formas realistas a esses sentimentos. O que até então era uma ficção cinematográfica do combate entre Eros e Tânatos, termina configurando-se numa destrutiva e demoníaca realidade.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

CRÔNICA DE ALERTA

Esta crônica está focada naqueles que não conseguem dormir perante a previsão de crises mirabolantes. Desse modo, tentarei usar a temática política para desmentir a opinião dos chamados “especialistas de risco”, que são indivíduos comprometidos com a especulação financeira global, e que ganham dinheiro assustando as pessoas com presságios de um futuro incerto. Nesse caso, como tenho pouco espaço para argumentar tecnicamente, tentarei enunciar alguns itens para o leitor se acalmar. Quem sabe não seja essa uma forma exitosa de desqualificar os gurus neoliberais:
1. Acredite na medida provisória do nosso governo para socorrer aos bancos, além da ampliação do crédito para o fortalecimento do agronegócio, da produção de ferro e do petróleo.
2. Não compre dólares, confie no seu país. Os especuladores usam essa moeda para provocar o “efeito manada”. Lembre-se que o governo tem dólares sobrando. Podemos até enrolar charutos ou usá-los como papel higiênico.
3. Não acredite no Fundo Monetário Internacional. Ele está de novo ao ataque. Quer emprestar dinheiro aos emergentes para continuar mantendo sua tropa palpiteira. Inventou o termo “procedimento de emergência” para tirar dinheiro dos pobres.
4. Não se deixe enganar com desvios de atenção. Os gurus fracassados usam o método freudiano da “transferência” para culpar os outros de seus desacertos. Tentam aterrorizá-lo com os demônios Fidel, Chávez, Correa, Morales, Kirchner e ...Lula!!! Não se espante, também nosso presidente é colocado no rol dos lucíferes.
5. Não precisa estudá-los, mas lembre-se destes nomes. São os pensadores que previram as crises cíclicas do capitalismo e sua exuberância irracional: Marx, Engels, Veblen, Keynes, Lênin, Luxemburgo, Trotski, Guevara, Stiglitz, Furtado e Prebich, além do mais recente prêmio Nobel de Economia: Paul Krugman.
6. Sugiro esquecer estes outros, nos quais há pensadores, políticos e patifes: Samuelson, Friedman, McNamara, Kissinger, Thatcher, Reagan, Menem, Pinochet, Strossner, Rice, Cheney, e outro inominável.
7. Lembrem-se, se forem viajar ao exterior, os nomes dos bancos seguintes: Merrill Lynch, Lehman Brothers, Washington Mutual, Fannie Mae, Freddie Mac, Morgan. Não façam negócios com eles. Estão infestados de “ladrões de colarinho branco”.
8. Se forem aos Estados Unidos, e não quiserem que aconteça qualquer coisa de ruim com vocês, não pronunciem o nome do presidente de lá corretamente. Só de pensar, traz má sorte.
9. Por último, e para não parecerem mandamentos bíblicos, finalizo no item nove com esta alegoria: “O mercado absoluto, sem a intervenção do Estado, se assemelha a um prostíbulo global”. Você confiaria em alguém que faz sexo por dinheiro?
Victor Alberto Danich
Sociólogo

terça-feira, 25 de novembro de 2008

11 DE SETEMBRO

Nas primeiras horas da madrugada a tragédia começava a ser delineada com os tênues raios do sol. Quando os aviões em vôo rasante começaram a descarregar as bombas sobre o Palácio de la Moneda, também se iniciou a destruição de uma das democracias mais sólidas do continente, construída em cento e cinqüenta anos de evolução política e social. Nesse dia 11 de setembro de 1973, as bombas de Augusto Pinochet demoliram de vez toda uma tradição de valores históricos fundados no estado de direito e no respeito às leis. O assassinato do presidente Salvador Allende aconteceu a partir de um plano cuidadosamente elaborado, e não apenas como resultado do simples ódio da burguesia chilena, apavorada com a possível perda de seus privilégios. A história desse desenlace trágico começa nos primeiros meses da administração da Unidade Popular. O triunfo de Allende levou ao serviço de inteligência e ao Departamento de Estado americano, segundo denúncias do New York Times, a enviar a Santiago o diretor-adjunto da CIA, Thomas Karamossines (chefe de operações secretas), para que estudasse várias alternativas para impedir a posse do presidente eleito. De acordo com o jornal, em 15 de setembro de 1970, o presidente americano Richard Nixon realizou uma reunião com a participação do chefe da CIA, Richard Helms, na qual criticou sua incapacidade em impedir que Allende assumisse a presidência do Chile. Entretanto, o fracasso da tentativa, deveu-se não apenas aos serviços de inteligência, senão também as sugestões erradas do plano elaborado pela International Telephone and Telegraph (ITT), que previa atos de sabotagem à produção, restrição de créditos externos e colapso econômico imediato. A triste passagem da ITT no Chile é suficientemente conhecida quanto ao financiamento da greve dos caminhoneiros, que foi o ponto de partida para o golpe militar de 1973. O próprio New York Times colheu as denúncias dos repórteres e congressistas, assim como o reconhecimento explícito do então presidente americano Gerald Ford sobre a intervenção de seu país no Chile, como forma de proteger “os grandes interesses americanos na região”.
Poucas vezes na história do continente latino-americano aconteceu um ato de terrorismo internacional expressado de forma tão brutal. Tão escandaloso, que em fevereiro de 1975, formou-se um comitê no senado americano, presidido pelo senador Frank Church, com o objetivo de investigar as “operações secretas” dos serviços de inteligência americanos no Chile. A política de intervenção americana, arrogante e intimidatória, repete-se com George Bush, não apenas no Afeganistão ou no Iraque arrasado, senão também nas suas palavras recentes dirigidas ao presidente argentino, quanto sua preocupação ao surgimento do que ele considera um governo de esquerda no país vizinho. Começam a surgir sinais de fenômenos sociais que imitam o passado recente de forma burlesca. Estamos entrando numa nova era no qual o conceito de “guerra fria” tal vez tenha perdido sua capacidade de explicar os novos paradigmas geopolíticos. Entretanto, não devemos esquecer que a invocação hipócrita “da lei, da democracia e da liberdade” pode estar criando um substituto daquela expressão, que num processo com franca característica neo-imperialista, pode-nos levar a formas de barbárie sem precedentes na história.

Victor Alberto Danich
Sociólogo

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

TRABALHO E GLOBALIZAÇÃO

O artigo “A fútil defesa” (ANotícia, 09/04/2007, pág. A3) do Doutor em Economia Miro Hildebrando, contextualiza em parte a trágica história dos trabalhadores na origem da acumulação do capital nos primórdios da Revolução Industrial. Para aqueles que gostam de pesquisa histórica, será muito fácil descobrir que as grandes conquistas trabalhistas não aconteceram por acaso, e sim como resultado dos grandes movimentos populares que consolidaram suas reivindicações na segunda metade do século XX. O capitalismo de pós-guerra, pressionado por um novo modelo social que polarizava suas pretensões ideológicas, viu-se forçado a aplicar políticas públicas que atendessem aos reclamos trabalhistas. O desenvolvimento da produção em massa e políticas de bem-estar social, que permitiram o acesso ao consumo de grandes parcelas da população dos países centrais, serviu como anteparo ao avanço das idéias comunistas no contexto do mundo capitalista. A consolidação dos direitos trabalhistas foi resultado desse espectro político, e não da magnanimidade do capital. Dizer que existe uma “assombrosa complacência” para as exigências trabalhistas, é desconhecer que as atuais instituições do Estado foram vencidas por um mundo pautado pela globalização econômica, que paralisam os movimentos de defesa dos mais desfavorecidos, presos aos superpoderes do capital monopolista, que impõe a idéia da “mão invisível do mercado” como forma de justificar a necessidade de menos instituições e menos direitos.
É inimaginável comparar o bem-estar dos países ricos com as desventuras dos países pobres. Há na América latina 70 milhões de seres humanos miseráveis, totalmente excluídos de qualquer tipo de acesso ao consumo social. Brasil não escapa dessa situação. Como pretender que não exista mal-estar excessivo dos trabalhadores, se a concentração de renda é resultado de uma brutalidade histórica? As relações do trabalho com a globalização não podem ser vistas fora do contexto que ordena as relações internacionais que, subjugadas por um controle mercantilizado do conjunto das inter-relações existentes entre os seres humanos, precisa reduzir o poder normativo das leis constitucionais para condicionar às sociedades a um novo ciclo de acumulação capitalista que exclua a intervenção reguladora do Estado nacional.
Victor Alberto Danich
Sociólogo, Mestre em Engenharia de Produção

WEBER, KEYNES E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO

Quando o sociólogo alemão Max Weber dizia que a doutrina protestante preparou o terreno para as atitudes religiosas individualistas, baseou-se na concepção da justificação pela fé, que terminou assentando as bases da confiança individualista na consciência particular de cada um. Essa interpretação fundamentada na vontade de Deus pelo próprio indivíduo, serviu para que os dogmas protestantes ajudassem aos capitalistas a dizerem que “os lucros eram considerados uma vontade de Deus, uma marca de Seus favores e uma prova de sucesso em se ter sido chamado”. Na década de 30, o economista inglês John Maynard Keynes, demonstrou que o mito do mercado auto-ajustado tinha perdido seu sentido ideológico perante a crise de 1929, e provou que a interferência do governo na economia através da tributação, dos empréstimos e gastos, poderia salvar o capitalismo das crises cíclicas e do ataque das doutrinas socialistas. A publicação da “Teoria Geral do Emprego, dos juros e da Moeda” provou sua eficácia, teoricamente ao menos, durante a Segunda Guerra Mundial. Os enormes gastos governamentais norte-americanos mobilizaram contingentes enormes de mão-de-obra, que produziram entre 1939 a 1945, 296.000 aviões, 5.400 cargueiros, 6500 navios de guerra, 64.500 jipes, 86.000 tanques, 2.500.000 caminhões conjuntamente com uma enorme produção de armamentos individuais e alimentos para 14 milhões de soldados aquartelados.
O Plano Marshall de 1947, que viabilizou na prática a reconstrução econômica da Europa através de investimentos estratégicos, serviu como instrumento econômico e financeiro para efetivar a consolidação da área de influência americana naquele continente. Logo vem a guerra da Coréia e do Vietnam até o final da “Guerra Fria” que termina com o colapso da União Soviética. O mundo é redimensionado através da globalização econômica que, sob a hegemonia incontestável dos Estados Unidos, leva-nos rumo a um mundo unipolar, de concepção claramente imperialista. O dia 11 de setembro de 2002 é o ponto de partida simbólico para uma nova “estratégia global imperial”.
O sentido fundamentalista contido no discurso de Bush, que cita o Iraque como parte do “eixo do mal” é apenas a fachada para reativar a economia americana nos parâmetros da influência militar de pós-guerra, tipicamente Keynesiana. A destruição do Iraque é um alerta aos países árabes para não abandonarem o padrão dólar como moeda hegemônica. O espírito do capitalismo prevalece até na entrega de água para os refugiados, que os americanos querem cobrar. Pode-se imaginar quantos grandes negócios serão feitos com a derrocada do “Ditador Hussein”. Tudo parece tão irreal que a institucionalização da guerra precisou da “solidariedade protocolar” do arquipélago de Tonga, pequena monarquia do Sul do Pacífico, como o quadragésimo nono aliado da Coalizão.

Victor Alberto Danich
Sociólogo – Professor do Centro Universitário de Jaraguá do Sul – UNERJ

UM SOCIÓLOGO BRILHANTE

Entre os sociólogos de destaque no âmbito da academia brasileira, há um pensador social que merece uma recordação especial, após treze anos da sua morte, por ter sido um dos mais sólidos intelectuais brasileiros, que dedicou sua vida a defender modelos sociais sob a tutela da justiça e da igualdade. Refiro-me ao professor Florestan Fernandes, que se tornou com sua obra uma das identidades proeminentes da sociologia contemporânea do Brasil. Sua história comovente de menino pobre, obrigado a engraxar sapatos para sobreviver, enfrentando com tenacidade os obstáculos da exclusão social, talvez tenha sido a chama que lhe despertou o interesse pelos processos ocultos dos dramas da sociedade. Foi trabalhando como garçom do antigo Bar e Restaurante Bidu, que Florestan retomou seus estudos no supletivo, e se preparou para uma futura e brilhante carreira acadêmica, que lhe permitiu usar o meio político para exercitar sua militância popular.
O professor Florestan Fernandes foi um pesquisador rigoroso, autor de uma vasta obra no campo da sociologia, mas também uma pessoa compenetrada no estudo das relações humanas na sociedade, que fez dele um ícone na luta pela igualdade social. Todas suas idéias ganhavam vida própria através de seus escritos e aulas, que se refletiram no seu trabalho como deputado federal duas vezes por São Paulo. Sua atividade política está presente em toda sua obra, principalmente quando abre as portas da universidade a negros e mulatos, acirrando a polêmica sobre o assunto, assim como sua participação ativa na criação do Partido dos Trabalhadores na década de 80, de modo a integralizar o conhecimento acadêmico com a ação política, revigorando o papel do intelectual comprometido com as causas populares.
Diferente de outros sociólogos bem nascidos, que apenas expressam suas idéias no campo da retórica, e são reconhecidos como intelectuais de sucesso porque o discurso se ajusta a certo tipo de interesses de classe, há outros que transformam a expressão acadêmica em práticas sociais que redundam em benefício dos menos favorecidos. Nessa categoria podemos incluir o saudoso Florestan Fernandes, símbolo exultante do melhor da sociologia brasileira.
Prof. Victor Alberto Danich
Sociólogo

APENAS SEIS NÚMEROS

Deixando de lado as implicações filosóficas que a religião defendeu durante tanto tempo, baseadas no texto que, de acordo com a Bíblia: “Deus fixou a Terra em suas fundações para não se mover nunca mais”, podemos dizer que há uma ponta de tolerância na aceitação do Big Bang como modelo explicativo da origem do universo. Nessa maratona científica, divulgada gradualmente, o modelo descreve como tal universo nasceu de uma sopa primordial extremadamente quente e densa, evoluindo para um imenso conjunto de galáxias, estrelas, planetas e formas de vida que hoje existem. Mais perturbador ainda é saber, de acordo com o astrônomo Martin Rees, que a estrutura do universo depende de apenas seis parâmetros físicos, entre eles a força da gravidade. Não é mera ficção, os cientistas podem medir com exatidão o valor de cada um desses parâmetros, contidos nos seis números mencionados. Sabendo disso, como o universo seria se tais valores fossem diferentes?
Esses valores numéricos estão relacionados a forças que unem os prótons e os nêutrons no núcleo do átomo. Uma pequena diferença nesse agrupamento e seria impossível fundir hidrogênio em deutério e, por tanto, o universo estaria composto só de hidrogênio, o que não permitiria qualquer chance de vida. Tal configuração de extrema sensibilidade mostra-nos que a mais ínfima alteração em qualquer desses cinco valores restantes, teria afetado de maneira violenta a evolução do universo, o que o tornaria estéril e sujeito a autodestruição física. Nesse caso, os seis números parecem ter características especiais de modo a permitir a existência de vida, desafiando o acaso. Mas, será apenas isso? Será o indício da existência de um Deus? Ou nosso universo faz parte de um multiverso com um conjunto próprio de seis números? Tal multiverso consistiria em infinitos universos diversos, entre eles, alguns com a capacidade de conter vida, outros não. Quem sabe.
O estado físico chamado de singularidade nos sinaliza uma pista. O modelo do Big Bang não deu origem apenas à matéria e à radiação, senão também ao espaço e ao tempo. Perguntar o que havia antes disso não faz qualquer sentido. E se tiver alguém sugerindo tal indagação, é bom lembrá-lo das palavras de santo Agostinho, escritas lá pelos 400dC: “Antes de criar o Céu e a Terra, Deus criou o Inferno, para colocar nele pessoas como você, que fazem essa pergunta”.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

A VOLTA DE MISTER LINK

Juro que tentei me policiar para não escrever crônicas geopolíticas. Desculpem-me, não consegui resistir, ao menos desta vez. Ao ler que a reativação da IV Frota dos Estados Unidos coincide com as descobertas das riquezas do pré-sal, me leva a pensar que nossos amigos agem em conformidade com as empresas petrolíferas que estão de olho no nosso litoral. O medo destes mercadores sem pátria reside em que a Petrobrás monopolize a província petrolífera do pré-sal, transformando-se numa poderosa estatal. A Petrobrás faz 30 anos que está pesquisando toda a área com grandes dificuldades geológicas porque a camada de sal mascarava os levantamentos sísmicos. Com as novas tecnologias, a empresa pôde identificar com mais precisão o local adequado para a sondagem pioneira. Perfurou o primeiro poço com o custo de US$ 260 milhões, com altos riscos, e achou o petróleo que seus técnicos esperavam. Fez isto tudo sozinha. Por que entregar para os outros em função do atual marco regulatório que fere nossa soberania? Se no mundo todo, onde existe produção em águas profundas, os royalties foram abolidos sob os argumentos de alto risco e elevado investimento, por que então as multinacionais do petróleo e a Agência Internacional de Energia (AIE) criticam os projetos de mudança na lei do petróleo, alertando o país da necessidade de investimentos estrangeiros para explorar o pré-sal? A questão principal é a propriedade do petróleo e a participação na produção. Nesse caso, a participação da União deveria passar de 40 para 84%, ou 90,4% se a produção fosse feita pela Petrobrás, de modo a garantir essa riqueza da ordem de US$ 20 trilhões de dólares para o seu verdadeiro dono, o povo brasileiro. A propósito, a mídia conservadora esconde uma história nebulosa. Em 1954, a Petrobrás, recém criada, contratou o americano Walter Link para chefiar o departamento de pesquisa da estatal. Mister Link tinha uma frondosa folha de serviços como descobridor de petróleo. Tal visitante ilustre ficaria famoso em 1960 quando foi divulgado o relatório de pesquisa do território nacional. O “relatório Link” como foi conhecido, continha uma avaliação pessimista sobre a existência de petróleo no país, principalmente em nossas bacias sedimentares. Paradoxalmente, em 1963, depois de Mister Link deixar o país, pesquisadores soviéticos concluíram que o Brasil poderia ser auto-suficiente, e até exportar petróleo num futuro próximo. Quem sabe Mister Link esteja mandando de volta agentes disfarçados das grandes empresas, de modo a mapear novamente de forma errada nosso território, no melhor estilo mercantilista.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

OS PALPITEIROS

O presidente Lula resumiu de maneira genial os acontecimentos recentes na economia mundial. Com sua capacidade didática invejável analisou a crise de maneira cáustica e direta, ao dizer que via com tristeza a quebra de bancos americanos importantes que, incontinentes, passaram a vida dando palpites sobre o Brasil, medindo o “risco país” de forma aleatória e aconselhando os investidores a duvidar das políticas do governo. Confesso que me sinto gratificado com o discurso do presidente, já que confirmou um fato de natureza econômica abordado em meus artigos, questionando o modelo neoliberal, muito a contragosto dos defensores da globalização econômica.
Mas para isso é necessário entender que a volatilização das ilusões que estimularam as fantasias de tal globalização, centrada na prosperidade ilimitada dos Estados Unidos, terminou por mostrar a verdadeira cara de um modelo em que todos os agentes econômicos dependem do mercado, nos quais os requisitos da competição e a maximização do lucro são colocados como regras fundamentais da vida e do progresso. Essa configuração se reproduz em crises econômicas cíclicas, que afetam o grosso do trabalho da sociedade, violentando a geração das riquezas produtivas através da livre circulação do capital especulativo no mundo. Ou pior, transformando o sistema financeiro, como afirmou nosso presidente “num cassino no qual os especuladores perderam na roleta” sem se preocupar pelo alto preço que a sociedade paga por tal irresponsabilidade. Felizmente, o Brasil tem uma blindagem de 207 bilhões de dólares que serve como mecanismo para amenizar uma possível crise local. É bom lembrar que isso é resultado da capacidade do governo de ter zerado quase que totalmente a dívida externa, antecipando desse modo qualquer ataque especulativo. Tal medida foi posta em prática sem recorrer às privatizações, sem sacrificar o emprego e a renda do trabalhador e, fundamentalmente, sem hipotecar o crescimento econômico do país que, diga-se de passagem, foi feito na mais ampla e exitosa política keynesiana que qualquer nação latino-americana tenha realizado até o presente.
Moral da história? Mais uma vez o Brasil dá exemplos de sucesso para o mundo capitalista. Nos melhores moldes do planejamento estatal, o chefe do Comitê de Bancos do Congresso dos Estados Unidos quer criar uma versão moderna de uma instituição da era da depressão dos anos 30. Quem poderia imaginar! Na catedral do laissez-faire: Wall Street e Washington, chegou-se a considerar a hipótese de uma estatização dos bancos em dificuldades. Existe tanta confusão na terra do Tio Sam, que talvez haja necessidade de convocar o presidente Lula para dar uma assessoria de graça aos consultores do norte “desenvolvido”.
Victor Alberto Danich - Sociólogo

O FEITIÇO LIBERAL SE ESVAZIA PERANTE A CRISE

O conceito neoliberal de que o Estado deve ser mínimo e o mercado absoluto, se desvanece perante a crise atual dos Estados Unidos, donos de tal discurso. Recordam? “Faça o que eu digo e não faça o que eu faço” Por que tal comentário? Os EUA são os maiores devedores do planeta, com déficits gigantescos em seu orçamento público e sua balança comercial, enquanto dependem do financiamento do resto do mundo para se manter de pé.
Para entender a crise no mercado imobiliário norte-americano, devemos fazer um pouco de história. Durante 2002, por causa da redução da taxa de juros, houve um crescimento do mercado imobiliário através da venda de casas a juros baixíssimos e uma gigantesca especulação financeira ao redor dele. Esgotado o potencial de venda de novas casas para consumidores com condições de pagamento, as financeiras estenderam para os que não podiam pagar. As pessoas eram convencidas a fazerem negócio, porque depois da compra, com o aumento do preço das casas, resultado da procura cada vez maior, refaziam a hipoteca com um preço mais alto e ganhavam dinheiro. Por outro lado, os bancos transformavam essas dívidas em títulos do mercado financeiro que se negociavam no mundo todo.
Vocês se lembram? Assim funcionam as “pirâmides” que os picaretas fazem em qualquer lugar. São aquelas que se ampliam, na qual as pessoas ganham dinheiro até que param de crescer. Os últimos a entrar na história são os que perdem tudo. Conseqüências? Quando não havia mais a quem vender, estourou a crise. Os bancos que patrocinaram tal carnaval financeiro sofreram perdas brutais, além das corretoras e famosas empresas de consultoria, chamadas pelo presidente Lula de “palpiteiros”. A revista Veja, defensora inconfessável do modelo neoliberal, cita o governo Bush como a tropa de choque que está tentando evitar a crise, no melhor estilo intervencionista, escondendo que a mesma é resultado da própria ideologia liberal, resumida nas palavras de um de seus intérpretes, Ronald Reagan, que dizia: "o governo não é a solução, mas sim o problema". Se o presidente hollywoodiano estivesse vivo, diria: “Esqueçam o que falei”.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

UNIVERSOS PARALELOS

Os filósofos da antiguidade suspeitavam da magnitude cósmica. Tanto, que naquela época já se conjeturava sobre sua própria finitude. Em 56 a.C., o filósofo Lucrécio argumentava que se o universo fosse finito, alguma coisa existiria além dele. Nesse caso, o que isso quer dizer? A definição encontra-se no próprio conceito de universo. Se ele significa tudo, esse tudo também deve estar além das fronteiras. Foi Albert Einstein que lançou uma nova idéia sobre a finitude do universo. A proposta da teoria da relatividade geral, de que o universo poderia ser finito mas sem limites, deixou muitas pessoas desconcertadas. Um Universo finito curvado num espaço tridimensional, com uma superfície em forma de bola, no qual circulam objetos ou seres em diferentes direções sem encontrar nunca uma fronteira, é uma idéia abrumadora.
Entretanto, as evidências deixadas pelo calor da explosão primordial ou big-bang, nos sugere a existência de um Universo sem limites em constante expansão. Nessa magnitude cósmica sem fronteiras, é possível que ocorram possibilidades infinitas de fatos além da nossa imaginação. Uma delas seria, a milhões de anos luz, a possibilidade da existência de infinidades de universos paralelos, cópia fiel do nosso ou totalmente diferentes.
A descoberta de que um vasto número de ondas indica a existência simultânea de diferentes estados para as partículas, poderia ser a prova de que há um número ilimitado de universos paralelos ao nosso. A física atual sustentada na teoria quântica, mostra-nos que o universo conhecido é apenas uma parte de um multiverso com características próprias de energia e matéria. Alguns cosmólogos consideram os diferentes universos paralelos como um fenômeno totalmente isolado de nós, já que parecem ter uma dinâmica própria e uma distância exorbitante. Em contrapartida, a teoria quântica argumenta que esses universos estão muito mais próximos do que imaginamos, já que criam efeitos de “interferência” através de ondas no universo do qual fazemos parte. Tal vez o aparecimento de espíritos ou seres sobrenaturais, que tanto nos assombram, sejam apenas nossas réplicas, as quais vivem nos múltiplos universos paralelos, e que, de uma forma ou outra, tentam entrar em contato conosco através de ondas de interferência produzidas pelo “fóton solitário”. Essa forma elegante de dizer que não há nada além do que forças físico-químicas que alteram nossa existência, provavelmente sejam as provas irrefutáveis da origem das espécies, que permita definitivamente escolher o futuro possível da humanidade, livre de deuses e demônios.
Victor Alberto Danich
Sociólogo
Publicado no Jornal O Correio do Povo, p.10 (20/08/2008)

quinta-feira, 3 de julho de 2008

SECUESTRADO POR UM OVNI

O OVNI do Bairro Três Rios do Norte esteve por lá para despistar as pessoas. Na verdade, outro mais discreto, num ato maquinal, me abduziu enquanto estava dormindo. Acordei rodeado de homenzinhos verdes que me diziam que era um animal premiado, já que me escolheram para fazer alguns testes biológicos. Puxa vida, só faltava essa. Durante o percurso interestelar à velocidade da luz, fui me acalmando. Ao final, poderia considerar-me um cara de sorte. Conferir corporalmente a Teoria da Relatividade é um privilégio que ninguém teve até agora, se continuasse vivo para contar.
De tanto esperar que falassem comigo, parti para o combate verbal – a melhor arma é o ataque, pensei – Que vocês acham que são? Os donos do universo? Vocês pensam que podem tirar da cama as pessoas desse modo, sem avisar? Aquele que parecia mais velho falou no idioma de origem e depois traduziu para mim: Se não calar a boca, te acerto.
Caramba, o sujeito acabou com meus argumentos de forma conclusiva.
Sempre imaginei que os alienígenas eram mais condescendentes com os Homo Sapiens. Terminei descobrindo que há atitudes que são comuns a todos os seres, independente de sistemas ou galáxias. Parece que existe um inconsciente coletivo universal. A prova disso foi quando apareceu uma fêmea planetária. Se não fosse pela cor verde, diria que era a Gisele Bündchen. A bela se aproximou e falou sem hesitação: Não serve!
Isso acabou com minha fantasia erótica de ser seduzido por uma extraterrestre. Em fim, minhas alternativas, a essa altura (e a essa distância) eram tremendamente escassas. Fiquei quieto tentando consertar meu ego destroçado. Com o tempo pude verificar que nossos amigos são gente boa. Como eles desistiram de me entregar para a madame, nossa conversa fluiu descontraída.
Um deles fez questão de me apresentar os filhos. De longe, é claro. E me explicou as razões, que tentarei detalhar sem perder a auto-estima. Parece que no universo infinito não existe muito divertimento. O único lugar para visitar e dar risada de coisas inexplicáveis é a Terra. Somos o Zoológico das Galáxias. Às vezes, nossos visitantes se escandalizam, outras se compadecem, mas nunca se aproximam. Tal constatação me levou a pensar no meu destino incerto. Por que comigo, então? Tremendo engano. A gostosa estava escolhendo um bichinho de estimação, e desistiu vencida pelo risco. Isso podia significar o retorno a meu habitat. E foi o que aconteceu.
Aquele que parecia mais velho começou a discursar no idioma deles. Depois de algum tempo, voltou-se para mim e emitiu uma sentença categórica: Vamos te levar de volta.
Que alegria! Retorno ao Zoológico. Pode ser um planeta de loucos, mas é meu planeta. Nele ainda tenho a liberdade de escolha. Posso ser bom ou mau. Posso ser solidário ou insensível. Posso me irritar com as injustiças e lutar para acabar com elas. Ganho com isso o direito de renunciar a ser cobaia de outros mundos, tornando-me mais humano para sempre.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

AS INCERTEZAS DA VIDA

Sempre me ensinaram, desde criança, que deveria respeitar os mais velhos. Agora que sou velho tenho que respeitar, por convencimento, os mais jovens. Tal comentário não é um jogo de palavras. É uma frase que faz com que sempre esteja policiando nossas máscaras, de modo a preservar a dignidade da pessoa, na liberdade. Na medida em que o tempo vai passando, ele vai se modelando de diversas formas (até circular, como diria o escritor Borges) e nos faz pensar que essa história de “pobres velinhos” é uma mentira disfarçada. A construção cultural de que a senilidade torna as pessoas frágeis e desconcertadas, é uma farsa secular. Se a gente foi ruim de jovem, podem ter certeza, com a velhice isso vai aumentando proporcionalmente. O esconde-esconde das ações e dos maus pensamentos sempre vem acompanhado da fachada de “pobrezinho o vovozinho”.
Claro! Não se espantem. Nada nesta vida é uma constante linear. Não existe bem de um lado e mal do outro. Tal maniqueísmo é próprio das invenções politicamente corretas, aceitas como verdadeiras. Isso acalma a sociedade. Se houver uma recaída senil, é apenas um desvio. As monstruosidades cometidas por velhos são dissimuladas nos porões do esquecimento social.
Mas vejam, as estatísticas mostram que por cada jovem mal encarado, existe um velho muito pior. A história da humanidade nos revela isso. Insanos enrugados, tarados senis, destruidores insensíveis, assassinos cruéis, seqüestradores infames, escritores malfadados, militares diabólicos, políticos corruptos, estupradores de crianças, religiosos pedófilos, expertos que se fazem passar por loucos e muitos outros. A lista é interminável. Os jovens devem viver apavorados. Sinto uma profunda compaixão por eles.
Nessa trágica enumeração, o que há de similaridade? Todos são velhos, não tem muito tempo de vida. Anelam a juventude que perderam. Vingam-se destruindo o mundo e sua beleza. Não suportam a exuberância juvenil, desautorizando-a com a artimanha de que a experiência é resultado dos anos. É por isso que nós, velhos, devemos aprender com os jovens. Eles, todos os dias, nos ensinam alguma coisa nova. O amor juvenil, o desapego às convenções, os sonhos ilimitados e as vivências da própria vida. Não temos direito de isentar-nos da contemporaneidade de nossos atos. Devemos sim, responder por eles do que nos desonerar da responsabilidade sobre os mesmos. Nossa tarefa é descobrir nesse percurso quais são os erros cometidos. Quem sabe um dia a gente possa compartilhar a vida sem as incertezas da longevidade, com os velhos refazendo os caminhos para que os jovens os transitem sem medo do futuro.
Victor Alberto Danich

terça-feira, 24 de junho de 2008

O BRASIL DAS PESSOAS COMUNS

Muitas pessoas negam a existência das classes sociais. E o fazem a partir da idéia de que se trata de um conceito ideológico elaborado pelas esquerdas ultrapassadas. Isso ocorre porque o discurso dos setores mais poderosos da sociedade tende a uniformizar sua própria ideologia através da crença ahistorica de que esta é a única possível de existir, aprofundando a penetração dessa idéia através dos meios de comunicação massivos de forma estrutural, que não só desvalorizam a cultura popular, mas tende a aniquilar-la por completo. O artigo do jornalista Samuel Lima (ANotícia, 22/03/2007, p.A3) deixa claro como funciona esse mecanismo de alienação classista, ao observar a visão fragmentada da realidade por parte de uma revista de grande circulação que, empregando seu talento tecnocrático, faz com que seu leitores parem de criar e de pensar. A cultura de massas consiste precisamente numa ocupação total do espaço mental dos indivíduos, de modo que, em sua confrontação coletiva, a vida cotidiana seja apenas um intercâmbio de clichês e slogans sem conteúdo, direcionados à esperança em ser semelhante aqueles que se encontram no topo da pirâmide social. Esse pensar alienado dissolve as relações entre as pessoas, implantando nas conversas as problemáticas fictícias, esterilizando desse modo a verdadeira dimensão das necessidades do povo. Dia a dia, o horizonte pessoal e familiar vai sendo cercado em torno do que se mostra e do que se houve por parte dos meios de comunicação oficializados, sem dar muita chance à imprensa alternativa, que tenta publicar a outra face da realidade. O economista burguês, por exemplo, ocupa-se de análises de processos que ocorrem na sociedade, mas não passa além do problema básico da atividade econômica, sem se interessar na grande variedade das relações humanas que podem ter relevância para as metas econômicas em questão. Há muita polêmica em torno do crescimento do país e a nova fórmula para cálculo do produto interno bruto, a favor e contra. O interesse, como sempre é macroeconômico. Poucos são os que param para ouvir a empregada doméstica que foi pegar seu dinheirinho na Caixa Econômica Federal e comenta com alegria: “É a primeira vez em tantos anos que consigo comer um pastel e tomar um Guaraná na saída do Banco”. A opinião do povo nunca entra nos balanços de perdas e ganhos da criação de riqueza de um país. O pensamento popular, com todas suas implicações, não tem valor como produtor dessa própria riqueza. O povo é apenas um acidente no percurso do projeto capitalista rumo ao sonhado desenvolvimento privado.

Victor Alberto Danich
Sociólogo – Professor do Centro Universitário de Jaraguá do Sul – UNERJ

terça-feira, 10 de junho de 2008

BOM DIA, SENHOR ENGELS!

Nada nesta vida se reproduz de forma espontânea. Qualquer fato social que explode repentinamente, não surge por acaso, ele é resultado de um longo processo histórico. Se neste início de século foram ressuscitados antigos ícones ideológicos, deve-se principalmente à força da crença de que ainda existe a possibilidade de “justiça na terra”. Nessa perspectiva, embora a experiência do socialismo real tenha fracassado economicamente, as questões que Marx e Engels levantaram, além dos luminares do século XX como Einstein, Bertrand Russel, Veblen, Tolstoi, Gandhi, Che Guevara e Nelson Mandela, continuam extremadamente vivas. A economia não existe isolada em si mesma; ela possui um lugar na sociedade. A quem serve a economia? Como podem ser compartilhados os benefícios da mesma? Os pobres do mundo não são bobos, eles sabem muito bem porque estão lutando. Não importa qual é a sua conduta, nem as idéias vagas que expressam, o que os move é o senso de justiça. A divisão entre os ricos e os pobres não para de se aprofundar, e isso não acontece porque estamos próximos dos estertores do capitalismo, senão pelas conseqüências das dores de seu parto. Sempre, desde seu início, o capitalismo soube sobreviver como um vírus em mutação, renovando-se ainda mais poderoso na sua própria doença.
Resulta conveniente lembrar como foi o início, e como viviam as classes trabalhadoras durante os primeiros anos da Revolução industrial na Inglaterra. Enquanto de um lado a grande massa do povo trabalhava duramente, retornando à noite para os miseráveis e doentios buracos onde moravam, que não serviam nem para os porcos; de outro lado, algumas pessoas que nunca sujaram as mãos com o trabalho, mas no entanto faziam as leis que governavam as massas, vivam na extrema riqueza, cada qual com seu palácio particular. Tal era a desesperança dos trabalhadores, que podemos referenciar-la através de um espantoso diálogo entre um pesquisador e um tecelão manual, contado por Disraeli, no seu Sybil or the Two Nations (1845):
Pergunta: Tem filhos?
Resposta: Não. Tinha dois. Mas estão mortos, graças a Deus!
Pergunta: Expressa satisfação pela morte de seus filhos?
Resposta: Sim. Agradeço a Deus por isso. Estou livre do peso de sustentá-los, e eles, pobres, livres dos problemas de esta vida mortal.
Tudo isso ocorreu um ano antes da grande Fome da Batata, que mataria um milhão de pessoas na Irlanda, obrigando um número muito maior a emigrar por toda Grã-Bretanha e América do Norte. Os que sobraram, foram sujeitos a trabalhar de 12 a 18 horas diárias, ou ate cair de exaustão, escutando sempre as belas e gratificantes palavras: “Tudo o que o filho de um pobre necessita está encerrado em duas palavras: indústria e inocência”. No entanto, durante uma caminhada com outro homem de negócios, o empresário Fiedrich Engels, que era um dos poucos a se preocupar com o destino dos mais necessitados, ressaltou que esses bairros miseráveis eram uma vergonha e uma desgraça para Manchester. Tal acompanhante limitou-se a ouvir polidamente, e logo depois, ao se despedir, fez o seguinte comentário: “Mesmo assim há um bocado de dinheiro a ganhar por aqui. Bom dia, senhor Engels!”

Victor Alberto Danich
Sociólogo

terça-feira, 20 de maio de 2008

OBRIGADO MARCELA

Se foi a sorte ou azar de teres nascido em épocas tumultuosas, de conviver com pessoas que sonhavam com um mundo diferente e solidário, que imaginavam que poderia ser mudado com voluntarismo e talento, modelado em novas formas de pensamento, devo assumir meus erros nesse percurso.
Se foste seduzida por um homem que te tirou da riqueza confortável e te mostrou os caminhos dolorosos da exclusão, compartilhando contigo o perigo da incompreensão e da intolerância, te peço desculpas.
Se viveste perigosamente convencida de que o poder e o dinheiro não valiam a pena de sermos os Faustos de uma sociedade injusta, de saberes que estávamos juntos numa batalha antecipadamente perdida, e ainda assim foste capaz de olhar com altivez nossos algozes, eu te admiro.
Se conseguimos construir juntos os traços de rebeldia, desejos de liberdade e autonomia, enfrentando fronteiras desconhecidas, tendo a certeza de que qualquer lugar do mundo era bom para recomeçar, que a revolta contra o autoritarismo e a opressão valia a pena continuarmos juntos, eu te agradeço.
Todos esses anos que estivemos lutando lado a lado, serviram para refazer o conhecimento e criar novas agendas de vida. Uma delas foi à gestão solidária de trabalhar com as pessoas humildes, e a outra foi criar a nossa filha. Tudo isso deu certo até que a morte te surpreendeu na viagem. Daí para frente, o mundo se desmoronou, e não consegui reconstruí-lo. Por isso quero que me perdoes.
Mas te garanto. Tudo aquilo que conversávamos com alegria, em sintonia com as promessas do futuro, nunca terminará enquanto algum de nós continue presente. Os caminhos da transcendência de seres que não existem mais, devem ser revitalizados pelas lembranças dos vivos, e, como tenho a certeza de que não há eternidade para os corpos nem para as mentes, resta-me tributar tua presença no inconsciente coletivo daqueles que ainda acreditam. Talvez seja esse o segredo de imaginarmos póstumos. É por isso que quero compartilhar com os desconhecidos a simples tarefa de expressar publicamente esta pequena frase.
Obrigado Marcela.

sábado, 10 de maio de 2008

GARRA E TALENTO

Em princípio, gostaria de esclarecer que este artigo não tem nenhuma pretensão de índole política partidária, e menos ainda o intuito de canalizar a simpatia por tal ou qualquer pessoa. O tema está centrado na resposta comovente de uma mulher que, deixando de lado os ódios revanchistas do passado, teve o talento de reviver o orgulho da militância em resposta a uma argüição de extrema sordidez. Refiro-me à ministra Dilma Roussef, que foi convocada pela Comissão de Infra-Estrutura do Senado para falar sobre o Plano de Aceleração do Crescimento - PAC, e terminou sendo colocada numa armadilha semântica que lhe atribuía o uso da mentira como saída para qualquer tipo de interrogatório. Quando o senador Agripino Maia, do partido Democratas, insinuou que também poderia estar mentindo à atual Comissão, ao lembrar um comentário dela sobre a época em que foi presa e torturada durante a ditadura militar, a resposta da ministra veio com magistral e emocionada lucidez, própria de uma mulher talentosa e aguerrida: “Eu tinha 19 anos, fiquei três anos na cadeia e fui barbaramente torturada, senador. E qualquer pessoa que ousar dizer a verdade para interrogadores compromete a vida dos seus iguais. Entrega pessoas para serem mortas. Eu me orgulho muito de ter mentido, senador, porque mentir na tortura não é fácil. Na democracia, se fala a verdade. Diante da tortura, quem tem coragem, dignidade, fala mentira”.
Tal episódio deixa claro para nós, homens, duas coisas muito importantes para refletirmos. Por um lado, devemos aprender a policiar-nos para evitar nossos devaneios de estupidez e intolerância e, por outro, aceitar humildemente aquilo que as mulheres sempre souberam fazer muito bem ao longo da história da existência humana – sem exageros de superioridade e falsa modéstia – que foi e será o eterno refazer da nossa identidade cultural perante as forças esmagadoras da natureza. Sempre no exercício da valentia da retaguarda, segurando com maestria nossos medos e incertezas. E sempre à frente como reserva moral de um mundo construído culturalmente com feições machistas.

terça-feira, 15 de abril de 2008

AS PROSTITUTAS DE CUBA

O turista paulista ficou espantado quando foi abordado num hotel de Havana por uma “horista” que tinha curso superior de odontologia, mas que precisava de alguns dólares para complementar a renda, muito pouca, por sinal. Uma prostituta dentista, que horror, só em Cuba ocorre esse tipo de monstruosidade. O paulista voltou para o Brasil convencido que esteve no pior país de América. Não importa se há alguma coisa parecida em outros lugares. Cuba é a vitrine do mundo para o pensamento conservador. Qualquer deslize, vocês sabem. Quando tive acesso a tal história, cogitei uma hipótese plausível sobre o paulista: ele não mora no Brasil ou apenas tem a revista Veja como único meio de informação e, mais ainda, nunca leu um livro de economia política ou as “Mil e Uma Noites”.Quero deixar claro que não sou um intelectual portentoso. Gostaria de sê-lo, mas preciso trabalhar muito para sobreviver. O cultivo do ócio está muito longe do meu cotidiano. Mas algumas coisas eu conheço, de Cuba e do mundo. Gostaria que me acompanhassem nesta caminhada impregnada de brutalidade humana.Existem 200 milhões de crianças no mundo que dormem na rua. Outras 250 milhões com menos de 13 anos são obrigadas a trabalhar para viver. Mais de um milhão de crianças são forçados à prostituição infantil e dezenas de milhares são vítimas do comércio de órgãos. 25 mil crianças morrem a cada dia no mundo por sarampo, caxumba, difteria, pneumonia e desnutrição. Nenhuma delas é cubana. Parece que Deus tem uma preferência explícita pela ilha. Vamos continuar?Enquanto nosso amigo paulista centra sua visão míope nos prazeres da vida mundana, 600 milhões de crianças crescem em situação de extrema pobreza. 250 milhões de menores entre 5 e 14 anos trabalham em condições desumanas, assim como 130 milhões não vão à escola em todo o planeta terra. As crianças de rua são estimadas em 200 milhões, sendo que a metade delas entra a cada ano na prostituição. Por outro lado, os menores que trabalham, ou circulam como pequenos fantasmas nas ruas da vida, ficam expostos aos maus tratos de seus patrões, do público e das autoridades, ou pior ainda, dos pedófilos e dos traficantes de todo tipo. Tirando Cuba do páreo, somente em Latino América, 2 milhões de crianças não ingressam na escola e, ao mesmo tempo 800 mil devem abandoná-la para trabalhar pela sobrevivência. Outros 60 mil, com muita menos sorte, perdem a vida diariamente antes de chegar aos 5 anos de idade. Desculpem-me, estão se sentindo horrorizados? Querem parar por aqui?Se alguma pessoa com sensibilidade social quiser continuar lendo minha crônica, vou acrescentar mais alguns dados. 100 milhões de latino-americanos de 10 a 14 anos são presa fácil do banditismo, do comércio de escravas brancas, do narcotráfico e da exploração sexual, entre outros tipos de violência à dignidade humana. Alguma coisa folclórica para acrescentar?Tenho uma, sim. Em Las Vegas, metrópole do jogo de azar e da diversão, caminho obrigatório das elites brasileiras, existe mais ou menos 20 prostitutas por m². A nível de educação, a maioria não passa do primeiro grau, ou são analfabetas. Se estas meninas soubessem que Cuba existe, migrariam em massa para cursar uma faculdade de graça, que o império da fartura e da “liberdade” é incapaz de dar.

BANHEIRO PÚBLICO

Se você estiver interessado em descobrir as verdades inconscientes da nossa espécie, entre num banheiro público. Não pode ser apenas de passagem, tem que ir preparado para realizar uma maratona de lasciva curiosidade. Se quiser continuar acreditando na nossa origem divina, não prossiga, olhe para cima, faça suas necessidades e saia sem olhar para trás. Lembre-se que isto é um exercício de cidadania apócrifa, já que o banheiro público é o único recinto onde se fala de Damas e Cavalheiros, apesar de que é justamente o lugar onde deixamos de sê-lo.
Não estou referindo-me a nossa intimidade privada, senão ao anonimato público, aquele que nos torna reféns dos nossos instintos não declarados. Se estiver a fim de continuar, observe o emaranhado de inscrições. Nas portas de madeira estão as melhores declarações. Imagino que olhando de frente para a porta, o sujeito sentado no vaso sanitário esteja aliciando seus pensamentos em função de um instante prazeroso. Não há nada de degradante nisso. O problema surge no momento em que a fase anal se deslancha em desenhos alusivos rabiscados na porta. Existe certo padrão nas inscrições, como se houvesse um acordo clandestino coletivo. Parte-se do elogio ao melhor time passando pela crítica violenta do torcedor contrário, com frases e expressões que deixaria vermelho ao pior dos exegetas. Na é apenas isso. Há também aqueles que oferecem seus atributos físicos ao ocupante anônimo, sinalizando com desenhos, o tamanho dos mesmos. Como um pacto tácito de interlocutores distantes, tais expressões libidinosas são adornadas, comentadas e enriquecidas com figuras que tentam dimensionar tais atributos com diferentes tipos de letras. E nos espaços livres que ainda ficam, à esquerda e a direita, acima e abaixo, com sinais e figuras anatômicas de dimensões extravagantes, há setas indicadoras mostrando números de telefone, com pedidos e ofertas para aqueles que estejam dispostos a realizar tal o qual fantasias sexuais, combinadas a façanhas masoquistas ou sádicas. Nesse irônico e insultante roteiro, existe a evidência textual de que há pessoas que gostam de participar do mesmo, seja apenas para apaziguar suas fantasias ou, em última instância, exercitar sua perversidade. Se por acaso, alguém disser que isso só pode ocorrer nos banheiros de rodoviárias, eu diria que não. Os devaneios eróticos nada têm a ver com classes sociais. A sociedade humana revela suas impurezas naquele lugar que muitos de nós já suspeitamos – o quarto de banheiro – que talvez seja o único sítio que ainda permaneça em estado filosófico puro.

OS PICARETAS

Quero contar uma pequena história de economia e aventureiros. Vou começar lembrando a crise de 1929. Naquela época havia investidores que especulavam com ações na Bolsa, comercializando papéis com valores que não condiziam com a real situação das empresas. De repente, os preços das ações começaram a cair, os acionistas entraram numa corrida desenfreada para tentar vendê-las, mas não havia pessoas interessadas. As indústrias se viram forçadas a desacelerar o ritmo da produção e, conseqüentemente, a despedir milhares de trabalhadores, afetando o mercado consumidor. Parecia que a “mão invisível” que regulava o mercado se desmoronava na frente dos atônitos ideólogos do liberalismo econômico. O economista John Maynard Keynes sugere abandonar a premissa da automaticidade do mercado, distribuindo a riqueza através do Estado. Legal não? Com a adoção desse plano, o governo passava praticar o intervencionismo econômico. Atualmente, passado um mês do inicio das turbulências internacionais causada pela crise do mercado hipotecário norte-americano, o presidente daquele país anunciou que estava criando uma ajuda emergencial aos “tomadores de empréstimos”, que são aqueles que hipotecaram várias vezes suas casas para entrar no orgasmo do consumo desenfreado. Tais “picaretas anônimos” são tratados como “pobres tomadores de crédito hipotecário com histórico de despejo”. O presidente Bush, a contragosto, implantou, no melhor modelo Keynesiano, o “Bolsa burguesia”, destinada a ajudar com mil dólares, como mínimo, a cada esperto em desgraça. A vida da cada voltas, nê? Resulta engraçado o presidente Lula ligar para seu colega e dizer: “é o seguinte meu filho, o Brasil está há 26 anos sem crescer. Agora que a gente está crescendo vocês vêm atrapalhar?” O Brasil cresce com políticas públicas direcionadas a assistir cidadãos que estão na base da pirâmide social, dando de comer aqueles que nada possuem, aqueles que precisam escapar de décadas de desigualdade social, e aqueles que são, mais do que nada, nossos irmãos. O maior triunfo do Brasil foi transformar o “Bolsa Família” num produto de exportação com know-how gastronômico, com capacidade de salvar bancos e vidas.

COMO LER A REVISTA VEJA

Vou começar dizendo que o sociólogo se ocupa em compreender os fenômenos sociais de modo disciplinado. Para configurar minha sugestão, diria que uma pessoa cria compromissos quando se liga a um determinado grupo, e por tanto “sabe” que o mundo é isso ou aquilo. Outra faz parte de um grupo diferente e passa a “saber” que aquela pessoa está enganada. Tal configuração social nos mostra que os indivíduos têm um ângulo de visão particular do mundo, de acordo com os interesses do grupo ao qual pertencem. Os meios de comunicação atendem essa premissa. Eles nos oferecem um panorama da realidade construída socialmente. A psicanálise já demonstrou como a opinião pública afeta a percepção dessa realidade. Não é de espantar, portanto, que as opiniões mediáticas no tocante a questões políticas, religiosas ou éticas, tenham tanto poder sobre as idéias daqueles que carecem da capacidade dialética de contestá-las. A validade de uma publicação está assentada na aceitação do grupo (se for dominante, melhor) seduzido com sua particular visão dos acontecimentos. A dinâmica sócio-psicológica que condiciona este processo é magistralmente manipulada pela revista Veja. Tal publicação se comporta com se estivesse acima das verdades dos fatos, mascarando argumentos reacionários e agressivos, através de denúncias oportunistas e produção de factóides. Façamos uma pequena radiografia visual do conteúdo desse “pasquim de posto de gasolina”. As páginas coloridas são singularmente atrativas, como prateleira de farmácia. Num total de 134 páginas em cores convidativas, 66 são de propaganda para nossas classes mais privilegiadas. No meio de fofocas de artistas, banqueiros, madames “chiques”, mulheres em biquíni e crônica de mauricinho intelectualizado, encontramos dicas para gordos, doentes, cegos, ginastas, depressivos, velhos e outras tantas maravilhas do cosmos. O terrorismo jornalístico se insinua de forma subliminar, exposto na suas manifestações mais ridículas, de modo a deixar assustados os leitores de classe média. Um exemplo? O presidente Lula é mostrado em primeiro plano com suaves contornos de fundo, de Fidel e Chávez. A ameaça provinciana é o terceiro mandato. Isso deixa muita gente angustiada. Tanto, que são capazes de pular a foto da gostosa Ivete Sangalo na respectiva sessão “trivialidades de banheiro”.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

ORGULHO DE AMÉRICA LATINA

No início da década de 90 estava desconsolado pelos rumos da economia mundial. O triunfo do modelo neoliberal assentado nas ruínas do antigo império soviético, fazia com que as esquerdas de lanchonete entrassem num colapso ideológico profundo. As bandeiras de justiça e igualdade social já não importavam. Agora era a vez de ajustar-se ao novo dono do poder mundial – o mercado – e partir, sem restrições, para a criminalização do Estado, que deveria ser no máximo: “mínimo”. Neste início de século estamos presenciando uma alternativa diferente, que me regozija o coração. O liberalismo econômico está entrando na sua etapa senil. América latina, que é o continente do qual me orgulho de pertencer, está começando a se livrar das hostes do imperialismo globalizado, que nos escravizava nas garras de uma dívida monstruosa.
Felizmente, o pragmatismo do governo brasileiro nos coloca numa situação privilegiada neste crisol de nacionalidades, de modo a construir uma liderança inquestionável no continente. O esforço magistral nestes últimos anos, de modo a dimensionar uma política econômica com capacidade para suportar os ataques especulativos do modelo neoliberal, teve como resultado um fato inédito na história do nosso país. De uma dívida externa, em dezembro de 2002 de US$ 165 bilhões, que colocava o Brasil em situação de “default”, hoje é apenas de US$ 4bilhões. Isso mostra que nossas reservas internacionais apresentam uma evolução sem precedentes, atingindo o patamar de US$ 180,3 bilhões ao final de 2007. O trabalho em conjunto com os outros países integrantes do Mercosul, principalmente na resistência as sugestões recessivas do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, além da armadilha do famoso ALCA, foram os passos decisivos para consolidar nossa independência econômica. Tudo isso se reflete no aumento de popularidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao patamar de 66.8% neste mês. Fato inédito que corrobora o pensamento do grande sociólogo Florestán Fernandes, que sempre dizia em suas inesquecíveis palestras: “seis meses na diretoria de um sindicato, valem por seis anos de sociologia numa universidade”.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

A PRESENÇA DO BRASIL NO MUNDO

O parágrafo único do artigo 4º da constituição brasileira diz que a República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações. De acordo com esses critérios o governo deve investir R$ 2 bilhões na economia cubana. O dinheiro será aplicado em financiamentos para setores como construção de rodovias, empreendimentos hoteleiros, produção de medicamentos, vacinas e importação de alimentos. Por outro lado, a Petrobrás concluiu a operação de venda das refinarias nacionalizadas pelo governo boliviano num total U$S 112 bilhões, recuperando com lucro seu investimento inicial. Recompondo as relações estratégicas na área econômica, o governo brasileiro aposta no crescimento da economia cubana que, de acordo com a Comissão Econômica para América Latina e o Caribe – CEPAL atingiu o índice de 12,5% ao ano, para realizar investimentos na área de petróleo em conjunto com a estatal do setor daquele país. Tais procedimentos representam a abertura de novas formas de comércio bilateral distanciado das amarras dos países detentores do poder econômico mundial, que impõem o curso das negociações de maneira desigual. É importante ressaltar, principalmente para os detratores de tais iniciativas, a lembrança das épocas em que o Brasil se encontrava sujeito as brutais evasões de dinheiro disfarçadas de Royaltes e transferência de tecnologia, tão nocivos ao desenvolvimento econômico do país, agravado com as receitas recessivas ditadas pelo Fundo Monetário Internacional.
Também cabe lembrar que a diplomacia brasileira é uma das mais importantes e pragmáticas do mundo, evitando-se desse modo criminalizar seu empenho em cristalizar à integração latino-americana.
Victor Alberto Danich
Sociólogo e Mestre em Engenharia de Produção

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

DESVENDANDO MATRIX

Milhares de pessoas circulam todos os dias com celulares na mão, extasiadas por possuir um aparelho eletrônico que, em muitos casos, sacia a vaidade em substituição da utilidade. A revolução microeletrônica e a nova mídia recriaram uma tendência social que elimina os limites entre a existência e a aparência, entre a realidade e a simulação. Enquanto os seres humanos se evadem da realidade concreta buscando refúgio na realidade virtual, a mídia assume assustadoramente o poder sobre a consciência humana, tornando-a apenas um produto descartável e irreal. Para o homem comum que experimenta as maravilhas do acesso à alta tecnologia, torna-se difícil conceber que os critérios capitalistas de eficiência e sucesso, fundamentados apenas na economia da simulação, provoquem na racionalização da produção e dos serviços uma redução do rendimento do sistema.
Enquanto os anos de pós-guerra permitiram a criação de milhões de novos empregos e uma distribuição mais justa do consumo social que se estendeu até fins da década de 70, até o estado de bem-estar social entrar em decadência, dando espaço à nova revolução da microeletrônica, o trabalho produtivo tornou-se secundário perante o exuberante crescimento da moeda (como fetiche) da nova economia globalizada.
A configuração de um sistema de redes e multicanais de comunicação que tanto assombra as pessoas e que as desvia do foco das verdadeiras necessidades, é apenas a fachada dos lucros monumentais que as grandes corporações auferem, no mais pelo sucesso no mercado real direcionando a atender as necessidades do consumo social, mas pelas aplicações financeiras no mercado especulativo de capitais fictícios.
O ato de simular a realidade, na qual a existência da consciência humana é forjada através da tela do computador, leva-nos a lembrar o filme “Matrix” , um expoente da ficção científica, que nos faz suspeitar da transformação da realidade num ambiente subjetivo do nosso cotidiano, no qual todos nos encontramos clinicamente mortos num casulo refrigerado, e nosso cérebro é comandado por estímulos eletrônicos que nos simulam a vida e a experiência histórica.
Nesse caso, a humanidade, na sua totalidade, deve estar atenta aos indícios de que estamos transitando na direção de uma ordem trans-natural e trans-cultural, cujo sentido está longe de ser entendido, no qual o mundo se apresenta como reino do indeterminado, em que os meios de comunicação utilizam a capacidade social para produzir “efeitos da realidade”.
O imaginário se torna real, e o real, imaginário, que consiste na aniquilação dessa própria realidade, como resultado da incapacidade de perceber a dissociação entre o discurso e os feitos. Desse modo, a fragmentação da informação transforma-se na melhor ferramenta para a implantação de uma cultura de massa passiva, subordinada aos desígnios de novas formas de individualização e socialização, que pode, em ambos os casos, destruírem a esperança de desenvolver um novo modelo orientador e integrador do conhecimento, que ensine como aprender e transmitir, mantendo sempre o contato com a realidade social historicamente construída.
Victor Alberto Danich
Sociólogo – Prof. do Centro Universitário de Jaraguá do Sul/UNERJ

CRÕNICA DOS BOXEADORES QUE VOLTARAM

O artigo “Eles pediram para voltar..” publicado num jornal de Joinville em 20/08/2007, trata os boxeadores cubanos como “deportados” para justificar a afirmação de que nosso governo está ao serviço do “ditador Fidel Castro”. Como sociólogo, não consigo ficar incólume ao impacto de uma versão carregada de juízos de valores, muito ao gosto da mídia conservadora. Na verdade, não existe nenhuma portaria ou decreto que configure o caso como “deportação”. Os cubanos Guillermo Rigndeaux e Erislandy Lara nunca tiveram muita certeza do que estavam fazendo. A saída dos atletas da Vila do Pan-Americano foi mais uma aventura vulgar do que outra coisa. Misteriosamente, os dois esportistas apareceram na região dos lagos, numa pousada de Praia Seca, acompanhados do empresário alemão Thomas Doering e um cubano surgido do nada. Estes, num arroubo de generosidade, teriam dado dinheiro aos pugilistas para desfrutarem das maravilhas do capitalismo tropical. Nossos amigos oprimidos aproveitaram cada minuto das delicias burguesas, cheias de riso, sexo e cerveja. As damas de companhia ainda estão saboreando o dinheiro que ganharam dos lutadores da nação caribenha. Foram cinco dias de felicidade. Tanta fartura deixa qualquer um louco, não é?
O magnífico sonho só terminou quando os cubanos foram abandonados na pousada pelo alemão e seus comparsas, que saíram do país candidamente. As promessas de glória e dinheiro eterno talvez tenham deixado de interessar a empresa Black Star, idealizadora do projeto de levar os pugilistas para Alemanha.
Quando nossos amigos sentiram a falta dos gerenciadores beneficentes, no final do entardecer aconchegante da Praia Seca, foram caminhando até a Prefeitura de Araruama. O celular pré-pago que tinham ganhado dos “amigos” serviu para chamar a polícia. Os acontecimentos posteriores todos já sabem. Pobres cubanos, foram enganados pelo diabo germânico, na terra de Fausto.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

FOME E DESENVOLVIMENTO

Recentemente, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) divulgou um relatório que indica a existência de 52 milhões de pessoas subnutridas, das quais, 7% das crianças menores de cinco anos sofrem de desnutrição crônica na América Latina e no Caribe. Por outro lado, a FAO, citou o Brasil como exemplo da aplicação de políticas públicas que, em apenas três anos, tirou seis milhões de famílias (cerca de 20 milhões de pessoas) da pobreza extrema com programas especiais de segurança alimentar, no sentido de mitigar a fome numa região que tem uns dos índices de natalidade mais altos do mundo. Vale a pena ressaltar porque ocorre esse tipo de fenômeno, já que existem pessoas que tem uma idéia preconceituosa com referência as conseqüências da fome e da pobreza. O livro “A geografia da fome” do saudoso médico brasileiro Josué de Castro, cita que os altos coeficientes de natalidade são resultado de um princípio da biologia – a “teleonomia” – que é a propriedade que têm todos os organismos vivos de desempenharem as suas funções num ritmo e dinâmica que favoreçam ao máximo a sobrevivência do indivíduo e, sobretudo, da espécie. Sempre que uma espécie está ameaçada de morte, aumenta sua capacidade reprodutiva a fim de neutralizar o risco de exterminação.
Nesse caso, de acordo com Castro, os altos índices de natalidade dos países muito pobres obedecem à mesma lei biológica: representam o esforço natural dos seres humanos para sobreviverem em áreas em que os índices de mortalidade sempre foram extremadamente altos. Só dispondo de um excesso de pessoas – a maior parte para morrer e não para viver – poderiam estes grupos perdurar através do chamado ciclo anti-econômico da sua evolução populacional. A natureza do mecanismo biossocial que correlaciona em sentido inverso os baixos níveis de vida com altos coeficientes de natalidade, está ligado ao nível deficiente de alimentação, principalmente a fome específica de proteínas de alto valor biológico, fome que determina uma fertilidade potencial mais elevada na mulher, e uma maior capacidade de reprodução mais intensa. A fome torna-se um fator determinante na superpopulação, acentuando o coeficiente de natalidade e, com isso, o ritmo de expansão demográfica.
A situação das economias mais desenvolvidas ocorre no sentido inverso, no qual suas estruturas econômicas especiais que favorecem um abastecimento alimentar adequado, faz com que baixem os coeficientes de mortalidade. Esse fenômeno pode ser observado nos países desenvolvidos, nos quais o agir “teleonomicamente” também provocam uma baixa nos índices de natalidade, como é o caso dos países de alto nível de desenvolvimento econômico.
Pode-se concluir que a fome é resultado do progresso econômico defeituoso, que agrava e torna esse flagelo o principal motivo para a miséria: “a baixa produtividade por falta de energia criadora e do consumo ínfimo por falta de produtividade que venha criar uma razoável capacidade aquisitiva”.
Este fosso econômico entre ricos e pobres, divide a humanidade em dois grupos que, segundo Josué de Castro é: “o grupo dos que não comem, constituído por dois terços da humanidade, e que habitam as áreas subdesenvolvidas do mundo, e o grupo dos que não dormem, que é o terço restante dos países ricos, e que não dormem, com receio da revolta dos que não comem”.

Victor Alberto Danich - Sociólogo
Prof. do Centro Universitário de Jaraguá do Sul – UNERJ

EM NOME DE UM DEUS

A história da humanidade torna evidente que o ser humano precisa da existência de um deus como objeto de devoção, expressado na sabedoria superior que dirige o curso das coisas. Curso esse atribuído a seres divinos que também o criaram, ou melhor, a um ser divino no qual, em nossa civilização ocidental, todos os deuses da antigüidade foram condensados. Entretanto, a relatividade cultural sempre frustrou a idéia de um deus genérico que conseguisse nivelar os defeitos e os males da civilização, “excetuando”, é claro, o eurocentrismo religioso elaborado pela civilização branca e cristã, que acreditava ter chegado ao “conhecimento do Deus único e verdadeiro”.
A extrema diversidade das sociedades humanas raramente se apresentou aos homens como um fato e,sim, como um desvio de idéias aberrantes que precisavam ser modificadas, expulsando da cultura para a natureza todos os que não faziam parte do projeto cultural do ocidente cristão e “civilizado”. Entre os critérios utilizados pelos europeus a partir do século 14 para julgar se os índios mereciam estatuto humano, figuravam os tipos de crenças, o comportamento alimentar, aparência física e a forma de linguagem. Assim, não acreditando em Deus, não tendo alma, não tendo acesso à linguagem, os selvagens foram colocados na degradante categoria de “bestas pecadoras”.
Quando Hernan Cortez chegou a Tenochtitlán, a fabulosa capital asteca de 300 mil habitantes, ficou horrorizado com os sacrifícios humanos realizados pelos nativos em oferenda aos deuses. Porém, não se preocupou em dizer que tinha chegado à América “para servir a Deus e a sua Majestade e também por haver riquezas”. Os conquistadores espanhóis liam para os nativos, sem intérprete e na frente de um escrivão público, um longo “requerimento” em que eram exortados a converter-se à fé católica, sob pena de serem condenados à escravidão ou à morte, como simples justificativa para a febre que provocava, nas hostes da conquista, o deslumbramento dos tesouros do novo mundo.
A cobiça e o terror despertado pelos conquistadores provocaram um dos maiores genocídios da história da humanidade, no qual uma população pré-colombiana de 90 milhões foi, em apenas um século e meio, reduzida para 3,5 milhões de habitantes, dizimada pela exploração, pelas doenças até então desconhecidas e pelos espantosos tormentos a que era submetida. No século 17, como corolário de semelhante infâmia, o padre Gregório Garcia sustentava que os índios eram de “ascendência judaica”, porque, como os judeus, “eram preguiçosos, não acreditavam nos milagres de Jesus Cristo e não eram gratos aos espanhóis por todo o bem que lhes fizeram”. Não é de estranhar que o padre Bartolomeu de las Casas, fervoroso defensor dos índios, comentasse que eles “preferiam ir ao inferno a se encontrar com os cristãos”.
Podemos observar que em toda a história da conquista do novo mundo, o uso de um deus “europeu” não serviu como projeto de evangelização, porque nunca foi respeitado o conceito de alteridade cultural. Esse conceito deveria ser focado mais na inumanidade dos conquistadores do que na humanidade dos conquistados, como maneira de questionar a visão que o ocidente cristão sempre teve da própria humanidade – a de se negar a reconhecer a existência da pluralidade cultural como eixo articulador das diferentes sociedades. Parece passado, mas a destruição de culturas milenares ainda pode ser vista nos rostos tristes e desfigurados dos descendentes de povos que um dia tiveram o orgulho de possuir suas próprias civilizações e seus próprios deuses.

Prof. Victor Alberto Danich



O SISTEMA PENAL E O ROUBO

Vamos imaginar um maltrapilho roubando numa feira. Seguramente ele é aprisionado de maneira rápida e eficiente. A prisão é apenas um procedimento socialmente aceito como punição a um ato delitivo. As maiorias das pessoas apóiam de maneira entusiasta as sentenças e as condenações. Esses atos exemplares restauram a ordem e consolida a lógica da própria lei. Todos se sentem aliviados, a segurança pessoal está novamente a salvo.
Entretanto, todos sabemos que o sistema penal, na maioria das vezes, pune a base e não o topo da sociedade. Existe uma explicação para isso; os legisladores possuem uma idéia seletiva do que significa a preservação da ordem. É muito mais fácil enquadrar no código criminal aquelas pessoas que cometem delitos dentro de parâmetros específicos contemplados na lei. O flagrante visível é a principal arma. Roubar a poupança e os recursos das nações é chamado de “mercado livre” ; tirar os meios de subsistência de milhões de trabalhadores é chamado de “flexibilização” ou “racionalização”. Nada disso até hoje está enquadrado como ato criminoso a ser passível de punição.
Não existe nada de ofensivo nesta questão, imagino que muitos legisladores devem-se sentir impotentes pela falta de mecanismos legais que punam este tipo de coisas. Os atos ilegais realizados nos setores mais altos da escala social, são invisíveis como uma substância etérea, parecem existir apenas virtualmente. Nas grandes transações a escala mundial, onde imperam atividades focadas no ganho pessoal a custa dos outros, a tênue e imprecisa linha que separa os atos delituosos dos legais, em nada se assemelha ao roubo de um pedaço de frango numa feira.
Não é de estranhar que as prisões estejam cheias de indivíduos identificados como “o setor excluído da sociedade” e catalogados na ordem específica de crimes tradicionais. Os crimes realizados “no topo da escala social” dão a impressão de acontecerem sem a participação de indivíduos, como se fossem sobrenaturais, sem substância física. É tão vasta a rede de cumplicidade, de poder financeiro e procedimentos sofisticados, que estes atos criminosos ocorrem numa abstração tal, que se tornam impossíveis de serem detectados. É possível imaginar que nesse “corporativismo criminoso” a origem de grandes fortunas seja através de operações dolosas, mas demonstrá-lo significaria um risco sumamente perigoso.
Temos claros exemplos de “crimes de colarinho branco” que raramente são levados aos tribunais e ao conhecimento da opinião pública, ainda assim com a ajuda exaustiva da imprensa oral e escrita, como no caso recente do Juiz Nicolau e do Senador Luiz Estevão, ou os ex-presidentes Menem da Argentina e Fujimori do Peru, acusados por desvios do patrimônio público e formação de quadrilha. No entanto, fraudadores, estelionatários, autores de desfalques, mafiosos, grandes traficantes, e todo tipo de autores de “crimes empresariais”, possuem uma capacidade ilimitada de realizarem acordos fora dos tribunais do que qualquer delinqüente que faz parte da “base da sociedade”. O que ocorre durante os processos de julgamento dos “ladrões de alto nível” desafia a imaginação mais fértil até os limites da ciência ficção, infinitamente longe do drama cotidiano daquele simples ladrão de galinhas.

Victor Alberto Danich
Sociólogo/ Jaraguá do Sul

O RETORNO DOS ESPERTOS

A revista “Veja” (09/05/2007) publicou um artigo de Álvaro Vargas Llosa, diretor do pomposo Centro para a Prosperidade Global, chamado de “O retorno do idiota” no qual faz uma análise das novas políticas adotadas por alguns países da região. Tal artigo reproduz uma visão totalmente comprometida com os interesses de um modelo que associa o mito liberal à globalização irreversível, marcada pela economia de mercado, expressão capenga do progresso indefinido da velha ilusão do século XIX, hoje revitalizada. Tal artigo, veiculado por uma revista suspeita, ridiculariza qualquer tipo de iniciativa dos governos locais, como também intelectuais de peso no cenário mundial. O que quer que aconteça, além das tragédias ocasionadas pela onda neoliberal da década de 90, os ideólogos de tal modelo nos dizem que o mundo está no caminho do capitalismo integral. O único empecilho são os “métodos ineficazes das novas gerações de revolucionários” que tentam sabotar um projeto assentado na prosperidade e oportunidade para todos. Apesar de que a realidade desmente tal crença, lá estão os gurus para explicar que tal leitura é falsa, resultado do “ego fraco dos nossos povos” “profundamente ressentidos” por não ter acesso à mobilidade social. Tal retórica tenta eliminar para sempre contribuições importantes para entender a história latino-americana. Entre elas se encontra o fenômeno do desenvolvimento e subdesenvolvimento, principalmente a teoria do imperialismo. Essa manobra serve apenas para ocultar os ideais progressistas dos anos setenta, que se apresentavam como a esperança de um mundo mais justo e fraterno. Os astutos espertos, donos das riquezas concentradas globalmente, calam o fracasso da euforia neoliberal dos anos 90 de governos mascarados de democracia formal, mais que na realidade eram manejados por grupos elitistas e corruptos. O que temos hoje? Um mundo dominado por monstruosas megaempresas sem fronteiras, consumos fantasiosos e grande concentração de riqueza no centro e nas periferias. O lado oposto desse poder é a expansão da miséria, das rebeliões islâmicas, dos indígenas de Chiapas, dos excluídos e refugiados da Europa Oriental, do parasitismo financeiro e da ascensão global das redes mafiosas. O projeto de decomposição cultural realizado por publicações de tal natureza, que tenta substituir as crenças coletivas igualitárias fundamentadas nas identidades nacionais, por outras centradas nas diversas formas de egoísmo individualizante e depreciativas, apenas serve para justificar o parasitismo predador das forças produtivas, sustentada por uma ideologia destruidora de qualquer iniciativa que tente impedir os “espertos” de continuar construindo seus mundos de riquezas particulares.
Victor Alberto Danich
Sociólogo – Prof. Do Centro Universitário de Jaraguá do Sul - UNERJ

SEXUALIDADE, SOCIEDADE E FRUSTRAÇÃO

Toda a civilização, dizia Freud, repousa numa compulsão ao trabalho e numa renúncia as pulsões. O fato de uma pulsão não poder ser concretizada transforma-se numa frustração. A norma pela qual esta frustração ocorre chama-se proibição, produto de algum tipo de privação usada como forma de dominar os próprios desejos instintivos, que liberados, levam ao ser humano a quebrar as regras estabelecidas, condenando-o ao opróbrio. No “O futuro de Uma Ilusão”, de 1927, Freud destacou que as religiões prestaram grandes serviços à civilização, no sentido de introduzir elementos valiosos para a convivência humana. Proporcionaram mecanismos de unificação e solidariedade, além de princípios éticos orientadores para a vida de um indivíduo. Entretanto, principalmente as doutrinas ocidentais, também se ocuparam de introduzir o exercício da culpa em relação ao sexo.
Na sociedade vitoriana, impregnada de moral puritana e hipocrisia social, as mulheres “decentes” não tinham direito ao prazer sexual e faziam sexo apenas como um “dever” para com seus maridos. Assim, como naquela época, a maioria das restrições sexuais atuais é conseqüência da instituição e controle de grandes grupos, através da inoculação do sentimento de culpa. Sexo, impureza e pecado, foram colocados, através desse controle, no mesmo nível de comparação. A incorporação histórica dessas idéias terminou por se institucionalizar no inconsciente coletivo da sociedade, tornando-as sumamente difíceis de transformar.
O problema da “culpa” se agrava por causa da ignorância, da repressão, da distorção dos conceitos, que embora na atualidade não exista de forma declarada, se faz sentir de forma profunda dentro do psiquismo. Muitos homens e mulheres recorrem à instituição matrimonial, não apenas porque desejam estar juntos, senão também como “tábua de salvação” para garantir a autorização social das relações sexuais.
Numa sociedade pequena e conservadora, como aquela do filme “Nunca saberão quanto te amei”, estrelando Frank Sinatra e Shirley MacLaine, que conta à história de um escritor sumamente talentoso, que voltando da guerra da Coréia, e não conseguindo se encaixar nos rígidos esquemas de controle social da comunidade, é rejeitado pela professora “livre de qualquer suspeita” que, apesar de estar apaixonada por ele, não logra ultrapassar a pressão social e o preconceito dos habitantes da cidade.
Essa história parece muito distante, foi rodada em 1956. Hoje, nenhum homem perde a reputação se uma mulher o rejeita, e nenhuma mulher é condenada socialmente porque se entrega a um desregrado. Entretanto, os mecanismos de sedução e de manipulação, a idealização fantasiosa dos sentimentos alheios para entender suas ações e tirar partido deles, ainda existem. De uma maneira menos cruel e até mais escondido. Mas esse mecanismo pode ser reconhecido no mexerico confidencial. Fica-se aturdido quando se houve as mulheres falarem da vida particular de seus amigos e conhecidos circunstanciais. Destes, geralmente, os homens conhecem o comportamento profissional, enquanto que as mulheres sabem com detalhe, e de maneira surpreendente, os seus comportamentos mais íntimos. Sabem que fulano tem uma amante, como ele a conquistou, em que horário se encontram, o vestido, o carro e o local para onde estão se dirigindo. Mas a poderosa fantasia, preconceituosa e gratuita, é a descrição cheia de detalhes e artifícios, que surpreende por sua elaboração: uma pequena história das intenções dele, das manobras dela, do perigo do relacionamento, do desenlace e das frustrações. Existem mulheres com uma capacidade ilimitada de descrever, com precisão espantosa, a totalidade da vida amorosa de uma cidade.
Na realidade, as frondosas fantasias amorosas das mulheres, mostra-nos claramente que elas sempre estão em busca do homem eleito. Quando ele as ignora, descarregam sua frustração transformando-o num ser sem qualidades. Seus erros amorosos são desqualificados sem piedade, e a moral vitoriana, com seus fartos condicionantes eróticos, se reproduz inconscientemente na mistura explosiva entre desejo e reprovação, como a pequena história de Paul Watzlawick: “Uma mulher que mora à beira do rio foi à polícia dar queixa de uns moços que tomavam banhos pelados, diante de sua casa. O policial mandou os rapazes a tomarem banho mais adiante, rio acima, onde não há mais casas, e não defronte da casa da mulher. No dia seguinte, a senhora telefonou novamente: ela ainda conseguia ver os rapazes. O policial foi até lá novamente e mandou-os para mais longe. Dias depois, a mulher indignada, voltou a delegacia, queixando-se ao delegado: Da janela do sótão da casa ainda conseguia vê-los de binóculo”.

Victor Alberto Danich
Sociólogo

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

SOBRE O CHE DAS FINANÇAS

Prezado Senhor Diretor de Redação da Revista Veja,
Estou escrevendo novamente para o senhores de forma direta porque não confio nos textos encaminhados via e-mail, já que suponho que os mesmos são depurados pela tropa de choque que preserva os interesses ideológicos da revista. Não sei se o senhor leu minha tréplica a sua resposta anterior enviada via e-mail, na qual são esclarecidos mais profundamente alguns posicionamentos ideológicos. Entretanto, gostaria de citar um novo artigo publicado nesta última edição chamado “O Che das finanças”, escrito na seção de economia (p.53) pela Sra. Julia Duailibi.
Gostaria de fazer algumas considerações com referência a tal artigo. Primeiramente, do ponto de vista metodológico, tal texto é de uma elaboração sumamente confusa e desarticulada, já que o relato fragmentado dos fatos torna-o uma “fofoca de pasquim”, ao invés de um tema centrado numa seqüência lógica que explique os aspectos econômicos de tal ocorrência. Qualquer pessoa criteriosa que tenha lido o artigo, seguramente deverá recorrer a outras fontes para entender o significado do mesmo, que de texto econômico não tem nada.
Por outro lado, se a articulista tem a intenção de dar prosseguimento à campanha de desmistificação e difamação do Comandante Guevara, deveria primeiro estudar a história latino-americana profundamente, que por sinal, é um dos defeitos mais graves do nosso povo, para então, a partir daí, entender melhor o contexto político daquela época, assim como o significado das alternativas revolucionárias como formas de libertação. Fazer uso de juízos de valor para traçar semelhanças entre um operador de mercado picareta inserido no meio financeiro capitalista, e a trajetória da luta revolucionária e intelectual do comandante Ernesto Guevara de la Serna, se configura como um disparate delirante de uma pessoa que, para agradar à linha editorial da revista, obrigar-se a escrever as pressas qualquer coisa (ou qualquer lixo).
Espantado com tamanho desconhecimento do significado cultural dos processos de descolonização que caracterizaram a segunda metade do século vinte, sinto-me a vontade de oferecer aulas gratuitas de sociologia à distância para tal articulista, ou sugerir seu retorno às aulas de história na universidade.
O senhor pode observar através do meu discurso, que o maior patrimônio que o ser humano possui é a capacidade de exercitar a dialética do conhecimento. Para tanto, já que o senhor é o Diretor de Redação, gostaria que repassasse a sua subordinada alguns dados sobre a gestão do Comandante à frente das atividades econômicas de Cuba, que nada tem de criminosa, e sim de uma ferrenha vontade de construir um país solidário e livre das garras de qualquer imperialismo (tanto soviético como americano).
Não é intuito de este comentário esconder o resultado ou o fracasso das políticas guevaristas à frente da economia cubana, e sim dizer que o Comandante promoveu a rápida nacionalização e centralização da economia, e já na primavera de 1961 a economia cubana era quase totalmente estatal, não muito diferente de alguns países capitalistas latino-americanos desenvolvimentistas. Nesse contexto, o Comandante Guevara se opunha as propostas soviéticas de promover a autonomia relativa, a flexibilidade financeira e a ênfase em maiores incentivos materiais. Para o Che, e que fique bem claro para a senhora Duailibi, as orientações soviéticas eram visualizadas como uma ameaça aos incentivos morais que deviam ser, a seu critério, a forma predominante para a construção do socialismo em Cuba.
Por que o Comandante Guevara pensava assim? Porque o Che no foi um teórico do trabalho voluntário, senão que o praticou com um fervor rigoroso. No Ministério da Indústria, o trabalho voluntário chegou a transformar-se num aspecto fundamental para a educação dos dirigentes. O batalhão vermelho, criado por ele, tinha como meta as duzentas quarenta horas semestrais, uma exigência altíssima levando em conta às dezesseis horas trabalhadas no ministério. Isso significava que para cumprir com as metas era necessário trabalhar na produção nos fins de semana, completando as metas com horas noturnas em fábricas e outros centros de trabalho. A ética do trabalho voluntário encontra-se no lugar oposto daqueles que se sentam numa poltrona de couro, e usam o computador para especular financeiramente e, sem qualquer sensibilidade, furiosamente contentes por seus ganhos imediatos, jogam na exclusão social milhões de seres indefensos, parias de um modelo que os elimina compulsoriamente.
Diferente daqueles que buscam ganhar dinheiro a qualquer custo, inclusive para “compensar as deficiências de formação”, como é o caso de Jérôme Kerviel, o Comandante criou em Cuba o Sistema Orçamentário de Financiamento, baseado no uso do dinheiro aritmético e a não utilização do crédito bancário. Sustentava que eram inconcebíveis relações mercantis dentro do setor estatal de uma economia socialista. Daí a centralização da produção e dos fundos em efetivo de todas as empresas administradas pelo Estado, de modo que todas as indústrias depositassem os ingressos num fundo comum, para logo receberem os recursos necessários para seu desenvolvimento, de acordo com as prioridades fixadas pela planificação centralizada. Dessa forma, esperava-se resolver o problema da carência de fundos de algumas empresas que, por seu tamanho ou falta de organização, não podiam depender de seus ingressos.
Tem mais ainda: O Comandante Guevara, em 1959 já tinha sérias dúvidas sobre a ajuda do Fundo Monetário Internacional, quando dizia com tom certeiro: “O FMI cumpre a função de assegurar o controle de toda América Latina por parte de uns poucos capitalistas, que se encontram instalados fora de seus países. Os interesses do FMI são os grandes interesses internacionais que hoje parecem que estão assentados e tem sua base de operações no Wall Street”.
Já se passaram quase cinqüenta anos destas palavras, e a senhora Duailibi, sua subordinada, ainda insiste em comparar o Che com um filhote pródigo da imoralidade capitalista. O impacto do pensamento de Ernesto Guevara de la Serna, equivocado ou não, teve um alto vôo teórico, tanto em aspectos doutrinários como econômicos. Torna-se importante ressaltar essa característica, já que suas criações conceptuais não ficam aquém de suas virtudes de combatente. Esconder do público desavisado tais atributos é uma falta de ética jornalística da pior espécie.
Espero que o senhor, que na sua juventude ainda sonhava com um mundo melhor, possível de ser transformado através da leitura rigorosa e do conhecimento pleno, possa vencer seu estoicismo e livrar-se da incompetência intelectual de alguns de seus colaboradores.
Atenciosamente,

Prof. Victor Alberto Danich
Gerente Executivo da Incubadora
de Projetos Tecnológicos - JaraguaTec


terça-feira, 22 de janeiro de 2008

O PRECONCEITO CONTRA LULA NO JORNALISMO BRASILEIRO

Um dia encontrei Lula, ainda no Instituto Cidadania, empolgado por um livro de Câmara Cascudo sobre os hábitos alimentares dos nordestinos. Lula saboreava cada prato mencionado, cada fruta, cada ingrediente. Lembrei-me desse episódio ao ler a coluna recente do João Ubaldo Ribeiro, "De caju em caju", em que ele goza o presidente por falar do caju, "sem conhecer bem o caju." Dias antes, Lula havia feito um elogio apaixonado ao caju, no lançamento do Projeto Caju, que procura valorizar o uso da fruta na dieta do brasileiro.
"É uma pena que o presidente Lula não seja nordestino, portanto não conheça bem a farta presença sociocultural do caju naquela remota região do país...", escreveu João Ubaldo. Alegou que Lula não era nordestino porque tinha vindo ainda pequeno para São Paulo. E em seguida esparramou-se em citações sobre o caju, para mostrar sua própria erudição. Estou falando de João Ubaldo porque, além de escritor notável, ele já foi um grande jornalista.
Outro jornalista ilustre, o querido Mino Carta, escreveu que Lula "confunde " parlamentarismo com presidencialismo. ."Seria bom", disse Mino, "que alguém se dispusesse a explicar ao nosso presidente que no parlamentarismo o partido vencedor das eleições assume a chefia do governo por meio de seu líder..." Essa do Mino me fez lembrar outra ocasião, no Instituto Cidadania, em que Lula defendeu o parlamentarismo. Parlamentarista convicto, Lula diz que partidos são os instrumentos principais de ação política numa democracia.
Pelo mesmo motivo Lula é a favor da lista partidária única e da tese de que o mandato pertence ao partido. Em outubro de 2001, o Instituto Cidadania iniciou uma série de seminários para o Projeto Reforma Política, que Lula fazia questão de assistir do começo ao fim.Desses seminários resultou o livro de 18 ensaios, Reforma Política e Cidadania, organizado por Maria Victória Benevides e Fábio Kerche e prefaciados por Lula.
Se pessoas com a formação de um Mino Carta ou João Ubaldo sucumbiram à linguagem do preconceito, temos mais é que perdoar as dezenas de jornalistas de menos prestígio que também dizem o tempo todo que "Lula não sabe nada disso, nada daquilo". Acabou virando o que em teoria do jornalismo chamamos de "clichê". É muito mais fácil escrever usando um clichê porque ele sintetiza idéias com a quais o leitor já está familiarizado, de tanto que foi repetido.
O clichê estabelece de imediato uma identidade entre o que o jornalista quer dizer e o que o leitor quer compreender. Por isso, o clichê do preconceito "Lula não entende" realimenta o próprio preconceito. Alguns jornalistas sabem que Lula não é nem um pouco ignorante, mas propagam essa tese por malandragem política. Nesse caso, pode-se dizer que é uma postura contrária à ética jornalística, mas não que seja preconceituosa. Aproveitam qualquer exclamação ou uso de linguagem figurada de Lula, para dizer que ele é ignorante.
"Por que Lula não se informa antes de falar?", escreveu Ricardo Noblat, quando Lula disse que o caso da menina presa junto com homens no Pará "parecia coisa de ficção”. Quando Lula disse, até com originalidade, que ainda faltava à política externa brasileira achar "o ponto G", William Waack escreveu: "Ficou claro que o presidente brasileiro não sabe o que é o ponto G". .
Outra expressão preconceituosa que pegou é "Lula confunde". A tal ponto que jornalistas passam a usar essa expressão para fazer seus próprios jogos de palavras. "Lula confunde agitação com trabalho", escreveu Lúcia Hipólito. Ou usam o confunde para desqualificar uma posição programática do presidente com a qual não concordam. "O presidente confunde choque de gestão com aumento de contratações", diz José Pastore. Confunde coisa alguma. Os neoliberais querem reduzir o tamanho do Estado, o presidente quer aumentar. Quer contratar mais médicos, professores, biológos para o Ibama. É uma divergência programática.
Carlos Alberto Sardenberg diz que Lula confundiu a Vale com uma estatal. "Trata-a como se fosse a Petrobrás, empresa que segundo o presidente não pode pensar só em lucro, mas em, digamos, ajudar o Brasil". Esse caso é curioso porque no parágrafo seguinte o próprio Sardenberg pode ser acusado de confundir as coisas, ao reclamar da Petrobrás contratar a construção de petroleiros no país, apesar de custar mais. Não tem confusão nenhuma, assim como Lula também não fez confusão. Lula acha que tanto a Vale quanto a Petrobrás tem que atender interesses nacionais. Sardenberg acha que ambas devem pensar primeiro na remuneração dos acionistas.
A linguagem do preconceito contra Lula sofisticou-se a tal ponto que adquiriu novas dimensões entre elas a de que Lula tem até problemas de aprendizagem ou compreensão da realidade. Ora, justamente por ter tido pouca educação formal, Lula só chegou onde chegou por captar rapidamente novos conhecimentos, além de ter memória de elefante e intuição.
Mas na linguagem do preconceito, "Lula já não consegue mais encadear frases com alguma conseqüência lógica", como escreveu o Paulo Ghiraldelli , apresentado como filósofo na página de comentários importantes do Estadão. Ou, como escreveu Rolf Kunz, jornalista especializado em economia e também professor de filosofia: "Lula não se conforma com o fato de, mesmo sendo presidente, não entender o que ocorre à sua volta".
Como nasceu a linguagem do preconceito? As investidas vêm de longe. Mas o predomínio dessa linguagem na crônica política só se deu depois de Lula ser eleito presidente, e a partir de falas de políticos do PSDB e dos que hoje se autodenominam Democratas. "O presidente Lula não sabe o que é pacto federativo", disse Serra, no ano passado. E continuam a falar: "O presidente Lula não sabe distinguir a ordem das prioridades", escreveu Gilberto de Mello. "O presidente Lula em cinco anos não aprendeu lições básicas de gestão", escreveu Everardo Maciel na Gazeta Mercantil.
A tese de que Lula confunde presidencialismo com parlamentarismo foi enunciada primeiro por Rodrigo Maia, logo depois por César Maia, e só então repetido por jornalistas. Um deles, dias depois dessas falas, escreveu que "só mesmo Lula, que não sabe a diferença entre presidencialismo e parlamentarismo, pode achar que um governante ter a aprovação da maioria é o mesmo que ser uma democracia no seu sentido exato".
O preconceito é juízo de valor que se faz sem conhecer os fatos. Em geral é fruto de uma generalização ou de um senso comum rebaixado. O preconceito contra Lula tem pelo menos duas raízes: a visão de classe, de que todo operário é ignorante, e a supervalorização do saber erudito, em detrimento de outras formas de saber, tais como o saber popular ou o que advém da experiência ou do exercício da liderança. Também não aceitam a possibilidades das pessoas transitarem por formas diferentes de saber.
A isso tudo se soma o outro preconceito, o de que Lula não trabalha. Todo jornalista que cobre o Palácio do Planalto sabe que é mentira, que Lula trabalha 12 a 14 horas por dia. Mas ele é descrito com freqüência por jornalistas como uma pessoa indolente.
Não atino com o sentido dessa mentira, exceto se o objetivo é difamar uma liderança operária, o que é, convenhamos, uma explicação pobre. Talvez as elites e com elas os jornalistas não consigam aceitar que o presidente, ao estudar um problema com seus ministros, esteja trabalhando, já que ele é "incapaz de entender" o tal problema. Ou achem que, ao representar o Estado ou o país, esteja apenas passeando, porque onde já se viu um operário, além do mais ignorante, representar um país?

Bernardo Kucinski, jornalista e professor da Universidade de São Paulo, é colaborador da Carta Maior e autor, entre outros, de “A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro” (1996) e “As Cartas Ácidas da campanha de Lula de 1998” (2000).