quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

IMPRENSA ALTERNATIVA “PASSA O CHAPÉU” PARA SOBREVIVER

O sucesso do livro “Privataria Tucana” é um bom exemplo de como a imprensa encobre os assuntos que não dizem respeito a seus interesses políticos e econômicos. O livro não entrou nem nos editoriais nem na lista dos mais vendidos da Veja ou O Globo, só para dar dois exemplos.
Por Christiane Marcondes*
Redação do Democracy Now
Na verdade, ele foi varrido do mapa da imprensa hegemônica. Até o limite do possível, claro, até o ponto em que essa “pedra no sapato” incomodou tanto que teve de ser retirada e exposta à demanda e curiosidade pública. O ano de 2011 foi significativo na quantidade de episódios omitidos pela imprensa. Talvez por ter sido um ano de manifestações espontâneas, de massa, pelas mais diversas causas e em variados e distantes locais do mundo. A mobilização não cabia no enquadramento tradicional da mídia conservadora, por isso ficou fora das lentes do seu noticiário. Mas não distante do conhecimento do leitor, graças à atuação energizada da chamada mídia livre, fosse digital, eletrônica ou impressa. “Ocupar Wall Street” foi um ato que dividiu épocas nesses 12 meses que terminam no próximo dia 31. Amplamente coberto por emissoras de televisão alternativas, as imagens correram o mundo e mostraram a dimensão do movimento, que foi exportado para outras regiões dos Estados Unidos e para outros países. Fez mais: deu luz a outras expressões populares, como a marcha dos indignados na Europa. “Ocupar” virou um comando de guerrilha, usado para dar visibilidade à causa, para congregar mais manifestantes, para tomar conta de um lugar que, legitimamente, é do cidadão, “o espaço público”. Wall Street foi abalada pelas reivindicações e atos populares, simbolicamente, o coração econômico do mundo precisou, no mínimo, de uma ponte de safena para recuperar parte da saúde. Até hoje combalida e sem previsão de alta “médica”.
O acesso às informações livres e críticas, no entanto, também entrou em crise, porque toda produção de conteúdo exige recursos financeiros que a banquem. E esses recursos, seguramente, estão nas mãos daqueles que são alvo das críticas da imprensa alternativa.
Se você navegar na rede em busca de portais de notícias que contemplam a verdade ou, pelo menos, se pautam por correntes da esquerda, vai ser recebido logo à entrada de alguns deles com uma mensagem como a abaixo, no Democracy Now:
“Você pode ter certeza de que a nossa cobertura não é paga pelos fabricantes de armas, pelas grandes indústrias farmacêuticas ou as companhias de petróleo, gás e carvão. Precisamos da sua ajuda hoje. Nós só podemos fazer isso (cobrir eventos no mundo inteiro) com a sua ajuda. A sua contribuição de impostos para Democracy Now! hoje é um investimento em jornalismo investigativo verdadeiro” Na página inicial do WikiLeaks, há mais do que um pedido, há denúncia: “Fomos forçados a temporariamente parar de publicar documentos enquanto garantimos nossa sobrevivência financeira. Não podemos permitir que corporações financeiras americanas decidam como todo o mundo deve usar seu dinheiro para votar através de doações. Nossas batalhas são caras. E nós precisamos do seu apoio para vencer essa guerra. Doe agora para o WikiLeaks.” A boa notícia é que o Brasil está atento a essa necessidade e acaba de chegar à pauta do Congresso a proposta de financiamento de mídias alternativas.
Na véspera das férias parlamentares, comissão cria grupo de deputados para discutir formas de sustentação financeira de rádios comunitárias, blogs e portais na internet. Iniciativa é de deputada do PCdoB, Luciana Santos (PE), partido que sofreu com denúncias de desvio ético disparadas pela imprensa tradicional. Denúncias indevidas que já foram desmentidas, importante informar.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

O EMBLEMA DO CHE


Perante certas manifestações com relação às medidas adotadas pelo governo para estimular a economia, de modo a salvaguardar o país da crise global, principalmente aquelas que tratam tais iniciativas como inescrupulosas, argumentando que o incentivo ao crédito pode ser caracterizado como um “banditismo contra os que não pensam”, parece-me uma crítica carregada de preconceitos na direção dos setores mais pobres da sociedade. Omite-se, nesse caso, que desde 2007, por causa do crescimento da economia nos moldes citados, a multiplicação dos milionários no Brasil se expande à razão de 19 por dia. Tal fato é resultado do crescimento do Produto Bruto Interno (PIB) e das taxas de consumo, que se estende a toda população. A pergunta seria: Por que os ricos podem ter acesso ao consumo e os pobres não? É errado diminuir os impostos para desonerar os produtos? Não era isso que a população reivindicava? Vou esgrimir uma resposta: a economia política não é uma ciência neutra, seus postulados teóricos, prognósticos e receitas são fortemente influenciados pelos interesses de classe. O que orienta certos comentários não é a ciência econômica, e sim juízos de valor que criminalizam ações distributivas. Esses dias, um grande amigo meu, mas dialeticamente opositor, me perguntou em tom de gozação por que colei o emblema do Che Guevara na caçamba da minha camionete. Na verdade, o que deveria questionar seria minha origem burguesa igualzinha ao Che. Nesse caso, farei a justificativa sem conotação acadêmica. Será feita através de uma pequena história, sem recorrer aos “clichês” de autoajuda, bem longe da minha praia, e que todo bom entendedor poderá interpretar.   
Uma senhora de classe média alta, professora universitária com pós-doutorado em História, estava aguardando o próximo vôo para Curitiba no aeroporto de São Paulo. Nesse intervalo comprou um pacote de bolachas para saborear na espera. Próximo dela sentou-se um rapaz de mochila e bem vestido, com uma camiseta que tinha o emblema do Che Guevara. Num momento determinado, o garoto abriu o pacote e pegou uma bolacha para comer. A professora indignada observou-o atônita – Olha que desfaçatez – pensou – como é possível uma coisa dessas. Como pessoa acostumada à discrição condizente à sua classe social, usou a alternativa de também pegar do pacote uma bolacha para comer, sem questionar a atitude de seu ocasional acompanhante. Uma situação engraçada, por sinal. Sentados lado a lado, sem olhar-se e compartilhando as guloseimas. É claro que o desconforto maior era da professora. Mas, nessa altura, fazer o que? E assim foi até o final.
Pela regra matemática a última bolacha corresponderia ao rapaz descontraído. Foi assim que ele pegou a bolacha, a dividiu ao meio, deixou exatamente a metade no pacote e foi embora alegremente. Claro que a professora ignorou a gentileza. Mas teria uma história bastante extravagante para contar a seus colegas da universidade. Quando chegou a hora de embarcar, a professora encarou a fila rumo ao avião. Caminhou pelo corredor até localizar seu assento. Abriu o bagageiro e, quando tentou colocar a bolsa no mesmo, caíram seus pertences, entre eles o pacote de bolacha intacto que tinha comprado no Café do aeroporto.
Victor Alberto Danich
 Sociólogo

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O PODER PERMANENTE DE DERRUBAR GOVERNOS

A corrupção do sistema político merece uma reflexão para além das manchetes dos jornais tradicionais. Em especial neste momento que o país vive, quando a nova democracia completou 26 anos e a política, que é a sua base de representação, se desgasta perante a opinião pública.

Este é o exato momento em que os valores democráticos devem prevalecer sobre todas as discordâncias partidárias, pois chegou no limite de uma escolha: ou diagnostica e aperfeiçoa o sistema político, ou verá sucumbi-lo perante o descrédito dos cidadãos.
Por Maria Inês Nassif (*)

O país pós-redemocratização passou por um governo que foi um fracasso no combate à inflação, um primeiro presidente eleito pelo voto direto pós-ditadura apeado do poder por denúncias de corrupção, dois governos tucanos que, com uma política antiinflacionária exitosa, conseguiram colocar o país no trilho do neoliberalismo que já havia grassado o mundo, e por fim dois governos do PT, um partido de difícil assimilação por parcela da população. Nesse período, a mídia incorporou como poder próprio o julgamento e o sentenciamento moral, numa magnitude tal que vai contra qualquer bom senso.Este é um assunto difícil porque pode ser facilmente interpretado como uma defesa da corrupção, e não é. Ou como questionamento à liberdade de imprensa, e está longe disso. O que se deve colocar na mesa, para discussão, é até onde vai à legitimidade da mídia tradicional brasileira para exercer uma função fiscalizadora que invade áreas que não lhes são próprias. Existe um limite tênue entre o exercício da liberdade de imprensa na fiscalização da política e a usurpação do poder de outras instituições da República.
Outra questão que preocupa muito é que a discussão emocional, fulanizada, mantida pelos jornais e revistas também como um recurso de marketing, têm como maior saldo manter o sistema político tal como é. É impossível uma discussão mais profunda nesses termos: a escandalização da política e a demonização de políticos trata-os como intrinsecamente corruptos, como pessoas de baixa moral que procuram na atividade política uma forma de enriquecimento privado. Ninguém se pergunta como os partidos sobrevivem mantidos por dinheiro privado e que tipo de concessão tem que fazer ao sistema.
Desde Antonio Gramsci, o pensador comunista italiano que morreu na masmorra de Mussolini, a expressão “nenhuma informação é inocente” tem pontuado os estudos sobre o papel da imprensa na formulação de sensos comuns que ganham a hegemonia na sociedade. Gramsci já usava o termo “jornalismo marrom” para designar os surtos de pânico promovidos pela mídia, de forma a ganhar a guerra da opinião pública pelo medo. No Brasil atual, duas grandes crises de pânico foram alimentadas pela mídia tradicional brasileira no passado recente. Em 2002, nas eleições em que o PT seria vitorioso contra o candidato do governo FHC, a mídia claramente mediou a pressão dos mercados financeiros contra o candidato favorito, Luiz Inácio Lula da Silva. Tratava-se, no início, de fixar como senso comum a referência “ou José Serra [o candidato tucano] ou o caos”. Depois, a meta era obrigar Lula e o PT ao recuo programático, garantindo assim a abertura do mercado financeiro, recém-completada, para os capitais internacionais. Em 2005, na época do chamado “mensalão”, o discurso do caos foi redirecionado para a corrupção. Politicamente, era uma chance fantástica para a oposição ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva: a única alternativa para se contrapor a um líder carismático em popularidade crescente era tirar de seu partido, o PT, a bandeira da moralidade. A ofensiva da imprensa, nesse caso, não foi apenas mediadora de interesses. A mídia não apenas mediava, mas pautava a oposição e era pautada por ela, num processo de retroalimentação em que ela própria [a mídia] passou a suprir a fragilidade dos partidos oposicionistas. Ao longo desse período, tornou-se uma referência de poder político, paralelo ao instituído pelo voto.
Eleita Dilma Rousseff, a oposição institucional declinou mais ainda, num país que historicamente voto e poder caminham juntos, e ao que tudo indica a mídia assumiu com mais vigor não apenas o papel de poder político, mas de bancada paralela. Dilma está se tornando uma máquina de demitir ministros. Nas primeiras demissões, a ofensiva da mídia deu a ela um pretexto para se livrar de aliados incômodos, nas complicadas negociações a que o Poder Executivo se vê obrigado em governos de coalizão num sistema partidário como o brasileiro. Caiu, todavia, numa armadilha: ao ceder ministros, está reforçando o poder paralelo da mídia; em vez de virar refém de partidos políticos que, de fato, têm deficiências orgânicas sérias, tornou-se refém da própria mídia.
As ondas de pânico criadas em torno de casos de corrupção, desde Collor, têm servido mais a desqualificar a política do que propriamente moralizar a nossa democracia. Mais uma vez, volto à frase de Gramsci: não existe notícia inocente. O Brasil saído da ditadura já trazia, como herança, um sistema político com problemas que remontam à Colônia. O compadrio, o mandonismo e o coronelismo são a expressão clássica do que hoje se conhece por nepotismo, privatização da máquina pública e falha separação entre o público e o privado. A política tem sido constituída sobre essas bases e, depois de cada momento autoritário e a cada período de redemocratização no país, seus problemas se desnudam, soluções paliativas são dadas e a cultura fica. Por que fica? Porque é a fonte de poderes – poderes privados que podem se sobrepor ao poder público legitimamente constituído.
O sistema político é mantido por interesses privados, e é de interesse de gregos e troianos que assim permaneça. Segundo levantamento feito pela Comissão Especial da Câmara que analisa a reforma política, cerca de 360 deputados, em 513, foram eleitos porque fizeram as mais caras campanhas eleitorais de seus estados. Com dinheiro privado. Em sã consciência, com quem eles têm compromissos? Eles apenas tiveram acesso aos instrumentos midiáticos e de marketing políticos cada vez mais sofisticados porque foram financiados pelo poder econômico. É o interesse privado quem define se o dinheiro doado aos candidatos e partidos é lícito ou ilícito. O dinheiro do caixa dois passou a fazer parte desse sistema. Não existe nenhum partido, hoje, que consiga se financiar privadamente – como define a legislação brasileira – sem se envolver com o dinheiro das empresas; e são remotíssimas as chances de um político financiado pelo poder privado escapar de um caixa dois, porque normalmente é o caixa dois das empresas que está disponível. Num sistema eleitoral onde o dinheiro privado, lícito e ilícito, é o principal financiador das eleições, ocorre a primeira captura do sistema político pelo poder privado. E isso não acaba mais. Esse é o âmago de nosso sistema político. A democratização trouxe coisas fantásticas para a política brasileira, como o voto do analfabeto, a ampla liberdade de organização partidária e a garantia do voto. Mas falhou no aperfeiçoamento de um sistema que obrigatoriamente teria de ser revisto, no momento em que o poder do voto foi restabelecido pela Constituição de 1988.
Num sistema como esse, por qualquer lado que se mexa é possível desenrolar histórias da promiscuidade entre o poder público e o dinheiro privado. Por que isso não entra, pelo menos, em discussão? Acredito que a situação permaneça porque, ao fim e ao cabo, ela mantém o poder político sob o permanente poder de chantagem privado. De um lado, os financiadores de campanhas se apoderam de parcela de poder. De outro, um sistema imperfeito torna facilmente capturável o poder do voto também por aparelhos privados de ideologia, como a mídia. Como nenhuma notícia é inocente, a própria pauta leva a relações particulares entre políticos e o poder econômico, ou entre a máquina pública e o partido político. A guerra permanente entre um governo eleito que tem a oposição de uma mídia dominante é alimentada pelo sistema.
O apoderamento da imprensa é ainda maior. Se, de um lado, a pauta expressa seu imenso poder sobre a política brasileira, ela não cumpre o papel de apontar soluções para o problema. Não existe intenção de melhorá-lo, de atacar as verdadeiras causas da corrupção. Apesar da imensa caça às bruxas movida pela mídia contra os governos, em nenhum momento essa sucessão de escândalos, reais ou não, incluíram seriamente a opinião pública num debate sobre a razão pela qual um sistema inteiro é apropriado pelo poder privado, inclusive e principalmente porque não se questiona o direito de apropriação do poder público pelo poder privado. A mídia tradicional não fez um debate sério sobre financiamento de campanha; não dá a importância devida à lei do colarinho branco; colocou a CPMF, que poderia ser um importante instrumento contra o dinheiro ilícito que inclusive financia campanhas eleitorais, no rol da campanha contra uma pretensa carga insuportável de impostos que o brasileiro paga. Pode fazer isso por superficialidade no trato das informações, por falta de entendimento das causas da corrupção – mas qualquer boa intenção que porventura exista é anulada pelo fato de que é este o sistema que permite à imprensa capturar, para ela, parte do poder de instituições democráticas devidamente constituídas para isso.

(*) Texto apresentado no Seminário Internacional sobre a Corrupção, dia 7 de novembro de 2011, em Porto Alegre.
Fonte: Carta Maior

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O BEIJO DE JUDAS DO ANJO DA MORTE

A Justiça Argentina condenou no dia 26 de outubro à noite 18 militares por crimes contra a humanidade cometida durante a ditadura militar na década de 70. A decisão ocorreu após oito anos do fim das leis de anistia. O julgamento torna-se um marco histórico na luta pelos direitos humanos em América Latina, que revive os anelos das “Mães da Praça de Maio” na procura por justiça, reunindo o maior número de militares como réus desde que as leis que anistiavam os oficiais da última ditadura argentina foram revogadas, em 2003.
As investigações sobre os crimes cometidos na Escola de Mecânica da Armada (Esma) iniciaram-se nos anos 80, após o país ser redemocratizado. O inquérito foi arquivado com as leis do Ponto Final (1986) e da Obediência Devida (1987). As leis que anistiaram os militares acusados de torturas e homicídios foram promulgadas durante o governo do presidente Raul Alfonsín (1983-1989). No entanto, em 2003, o Congresso Nacional aprovou um projeto de lei do então presidente Nestor Kirchner (2003-2007) que permitiu o retorno dos julgamentos, fazendo com que a Justiça declarasse inconstitucionais os indultos dados pelo ex-presidente Carlos Menem (1989-1999) beneficiando repressores e ex-guerrilheiros.
Durante o julgamento, os oficiais foram responsabilizados por torturas e mortes nas dependências da Esma, situada na região central de Buenos Aires, que se plasmou numa condena por crimes contra 86 pessoas, das quais 28 continuam desaparecidas e cinco assassinadas com contornos de crueldade extrema. Tal decisão por parte da Justiça foi resultado de 22 meses de investigação, com mais de 160 testemunhas. No veredito final, a Escola de Mecânica da Armada foi declarada por entidades de direitos humanos como “um dos maiores centros de detenção clandestina e de extermínio” criados pela ditadura militar em solo argentino. Na leitura da sentença, o juiz deixou muito claro que os réus foram “condenados por perseguições, homicídio qualificado e roubo de bens das vítimas”.
Entre estes, encontra-se ex-capitão Alfredo Astiz, conhecido como “Anjo da Morte”. Em dezembro de 1977, Dona Nélida, uma “Mãe da Praça de Maio”, depois de presenciar um seqüestro de vários militantes por um grupo de tarefas da marinha, se lembrou de um rapaz loiro, Gustavo Niño, sempre próximo às mães e suposto irmão de uma desaparecida, que se despediu dela com um beijo no rosto, e que poderia ter sido seqüestrado nesse dia. Quando algum tempo depois soube através do noticiário France Press que Gustavo, além de outros vários nomes e apelidos, entre eles “O Corvo” e o “Angel Loiro”, se chamava Alfredo Astiz, membro dos Serviços de Inteligência da Marinha, infiltrado nos grupos de mães de desaparecidos, sentiu em todo seu corpo o espanto e a violência daquele beijo de Judas. Alfredo Astiz, o “Anjo da Morte”, personifica aquilo que existe de pior num ser humano. Essa figura pavorosa é apenas uma peça na máquina infernal do mundo dos torturadores. A justiça Argentina não está fazendo mais nada do que atualizar e reparar a incapacidade e conivência com os regimes da época, para que isso nunca mais aconteça no futuro.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

EMIR SADER: O SIGNIFICADO DA VITÓRIA DE CRISTINA

Todos os que seguem a situação argentina sabiam, desde pelo menos um ano e meio, que o governo de Cristina Kirchner havia recuperado grande apoio popular e teria continuidade. Só poderia ser “surpresa” para os que foram vítimas dos seus próprios clichês, denegrindo a imagem da Argentina e do seu governo. Agora não sabem como explicar uma vitória tão contundente, no primeiro turno, com uma diferença de mais de 8 milhões de votos para o segundo colocado.
A vitória de Cristina tem o mesmo sentido da vitória de Dilma. Pela primeira vez, nos dois países, uma mesma corrente obtém, pelo voto popular, um terceiro mandato. Vitórias fundadas em políticas econômicas que permitiram a retomada do crescimento da economia – depois das recessões provocadas por governos neoliberais, Menem lá, FHC por aqui – articuladas estruturalmente com políticas sociais de distribuição de renda.
No caso argentino, a crise de 2005 aqui, foi a de 2008 lá, com a reação violenta dos produtores rurais ao projeto de lei de elevação do imposto de exportação. Em aliança com a conservadora classe média de Buenos Aires, fizeram com o que o governo perdesse parte substancial do seu apoio e terminasse derrotado na votação do Congresso. Essa derrota se desdobrou numa derrota eleitoral, quando já se sentiam os efeitos da crise internacional.Tal como aqui, a oposição acreditou que havia desferido um golpe mortal nos Kirchner e se preparava já para voltar ao governo, em meio a disputas enormes entre todas as suas tendências, unidas na oposição e na ambição de sucedê-los no governo.
Para surpresa da oposição, o governo reagiu positivamente – como aqui – diante dos efeitos da crise, com políticas anticíclicas e renovando suas políticas sociais. Os reflexos não tardaram a surgir e o governo passou a reconquistar apoio popular, até que, a partir do ano passado, tendo recuperado iniciativa, voltou a aparecer como o grande agente nacional contra a crise. Dois fatores vieram consolidar essa reação. O primeiro, as comemorações do bicentenário da independência argentina, que despertou grande fervor popular, especialmente em amplos setores da juventude, capitalizados evidentemente pelo peronismo, com sua tradicional marca nacionalista.
O outro, foi a súbita morte de Néstor Kirchner, que alguns previram – lá e cá – que seria um golpe definitivo no kirchnerismo. Nesse momento, Cristina se assumiu como estadista à altura daquele momento crucial da historia argentina, dado que Néstor era o candidato à sua sucessão e o maior dirigente político do processo que ele mesmo havia iniciado. Cristina fez daquela perda um momento de afirmação do processo político protagonizado por Néstor e por ela, no bojo da recuperação do apoio popular, que tinha seu fundamento no sucesso das novas iniciativas de políticas sociais – bolsas para a infância, para a terceira idade, para os desempregados, entre outras iniciativas. Enquanto isso, a oposição se digladiava, conforme via a recuperação do prestígio do governo, na disputa pela sucessão presidencial, em um processo suicida, que veio complementar o cenário político que foi tornando Cristina cada vez mais favorita para triunfar, até mesmo no primeiro turno. As prévias eleitorais de agosto, finalmente, cristalizaram todas essas tendências, permitindo prever as melhores perspectivas para Cristina, que se confirmaram plenamente nas eleições de domingo (23). Cristina teve um triunfo esmagador, além de recuperar a maioria na Câmara e aumentar no Senado, e eleger oito dos nove governos estaduais em jogo.
Ela triunfa e a oposição, dividida entre vários candidatos, sofre sua maior derrota, deixando o campo aberto para novos e grandes avanços do governo. Lá, como aqui, a segunda década do século 21 estende a vigência de um governo que busca alternativas de superação do neoliberalismo, nas condições da herança pesada que ambos receberam, avançando na direção do pós-neoliberalismo. Consolida-se o campo progressista latino-americano, confirmando que essa é a vida das forças populares para a superação das desigualdades e injustiças, para o fortalecimento da integração regional e para a afirmação de uma América Latina soberana.
Por Emir Sader

terça-feira, 9 de agosto de 2011

PLANO BRASIL MAIOR

O novo plano de política industrial apresentado na semana passada pelo governo federal foi, segundo o ministro de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) Fernando Pimentel “uma resposta contemporânea de política de desenvolvimento produtivo”´. Estas palavras encerram um conteúdo simbólico extraordinário, porque representam o epitáfio definitivo do modelo econômico neoliberal nas nossas terras nativas. O lema do Plano Brasil Maior: ”Inovar para competir, competir para crescer”, condensa o ressurgimento de um projeto nacional tantas vezes criminalizado pelos ideólogos do monetarismo e do livre mercado. A retomada do crescimento e do investimento nestes últimos anos não é consequência apenas de um processo linear e a-histórico, e sim resultado de uma constante batalha contra a competição desonesta e a desvalorização artificial do dólar, arma usada recentemente pelos Estados Unidos de forma desleal.
O ministro foi enfático ao dizer que o sucesso da industrialização, distante do que alguns teóricos liberais pensam, não foi por causa da “mão invisível do mercado”, e sim produto do esforço dos povos na construção de “modernos estados nacionais, com poder de comando sobre seu território”. Tal capacidade permitirá ao Brasil desenvolver uma série de estímulos à competitividade da indústria nacional, tais como a desoneração de tributos e redução de impostos sobre produtos industrializados, sem necessidade de se sujeitar ao monitoramento externo ou restrições econômicas, que tradicionalmente pesaram sobre a arrecadação necessária para investimentos e geração de emprego.
Neste contexto, o Brasil começa a desbravar o caminho para um novo salto da produtividade do trabalho por meio da inovação tecnológica. Por um lado, nosso país possui a garantia de um mercado interno em expansão, com vastos recursos energéticos e grande capacidade de compras públicas, além de um formidável vigor empresarial e força potencial de trabalho em franco desenvolvimento.
E por outro, a proteção mais importante que Brasil e os demais países de América Latina conseguiram nestes últimos anos, foi a emergente independência das instituições financeiras tuteladas por Washington, emblematicamente caracterizada na oposição à implantação da Área de Livre Comércio das Américas, sonho corporativista dos Estados Unidos para impor um mercado assimétrico em seu próprio benefício. A profunda crise que aquele país está vivendo, em parte é resultado de haver perdido a hegemonia sobre os países pobres, usando o FMI e o Banco Mundial como forma de ganhar dinheiro fácil, à custa de dívidas eternas e impagáveis. Quando a fonte seca a crise chega de forma incontrolável. O FMI, cujo poder foi supremo nas décadas de 80 e 90, em que América Latina representava 80% da totalidade dos empréstimos dessa instituição, hoje não passa de 1%. Pior ainda, em apenas três anos, os empréstimos do FMI em todo o mundo foram reduzidos de 81 bilhões de dólares para apenas 11,8 bilhões. Ambas instituições transformaram-se em párias globais. O sacrifício descomunal de América Latina contra a extorsão dessa burocracia transnacional, finalmente rende seus frutos.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

quarta-feira, 27 de julho de 2011

CORRUPÇÃO & DESENVOLVIMENTO

O tema da corrupção tomou conta dos principais manchetes e artigos publicados na mídia nacional – fato de grave importância, por sinal – mas que não deve deixar de lado outros acontecimentos que também afetam o cotidiano da população brasileira. Não existe qualquer justificativa para atenuar o comportamento corrupto na política nacional, porém é necessário vincular tal atitude a todo um processo histórico que compromete sucessivos governos anteriores. Só basta lembrar o processo de privatizações escandalosas que permitiram canibalizar grande parte do nosso patrimônio nacional, se for usado o tema como critério de discussão. O articulista Marco Aurélio Weissheimer, de Carta Maior, foi muito claro ao dizer que na falta de alternativas, opta-se por abraçar a bandeira da corrupção, esquecendo-se do compromisso de divulgar outras, de modo que a população possua opções de avaliação para entender a realidade social e econômica do país. Vamos citar alguns fatos recentes que estão mudando a cara do Brasil, em contraste com um mundo derrotado por um modelo inspirado em “picaretas de carteirinha”, artífices do “dreno de bilhões de dólares da economia real”, que penalizaram aqueles que vivem apenas da renda de seu trabalho.
No entanto, apesar da crise do capitalismo globalizado, o Brasil teve em junho a menor taxa de desemprego desde o início da série histórica da pesquisa, em 2002, que corresponde a um índice de 6,2%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. De acordo com o relatório, o número de pessoas com carteira assinada no setor privado foi 10,8 milhões nesse mês. Comparado com o período do ano passado, tal aumento redunda na criação de 634 mil postos de trabalho formal. A menor curva de desemprego está relacionada ao aumento de consumo e da evolução do rendimento, que mostra um ganho real no poder de compra de pessoas com carteira assinada. Não existe mágica nisso, apenas uma melhor organização da economia, poucas vezes observada na história recente do nosso país.
Por outro lado, tal situação se reflete na queda da desigualdade social de forma consecutiva, em relação à metade da população de miseráveis que existiam há oito anos, ou seja, 28 milhões de pessoas – que correspondem em índices a 15,32% dos brasileiros – sendo que tal resultado é consequência de investimentos diretos em educação e em programas sociais.
Falando dos programas sociais, o Bolsa Família, uns dos pilares da luta contra a desigualdade, está sendo estudado pelo governo Chinês com o objetivo de melhorar as condições da população daquele país, tornando-se desse modo, um dos nossos melhores produtos de exportação social. Deve-se também citar o microcrédito, que é um segmento de negócios no qual o Brasil lidera na América Latina. O Banco do Nordeste do Brasil – BNB, mediante o programa Crediamigo, fomenta a inclusão da população carente no processo produtivo da economia, incluindo-os no consumo social. Esta iniciativa, é bom ressaltar, é considerada pela revista “Microfinanzas Américas”, publicada pelo BID, o melhor programa de micro-finanças da América Latina. Orgulho para o Brasil no seu esforço rumo ao desenvolvimento.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

O PODER DA MÍDIA PARTIDÁRIA

Na medida em que a política perde seu conteúdo ideológico, os políticos vão se apropriando desta como plataforma para seus interesses particulares. Tanto é assim, que resulta natural que a prática política se transforme e dependa da exposição mediática para a construção do prestigio eleitoral. Os meios de comunicação de massa, sobretudo a televisão, ocupam um lugar privilegiado para denunciar e produzir uma suposta agenda para o debate na sociedade, escondendo no ritual mediático a comercialização da política, na qual a promessa partidária torna-se a matéria prima da democracia formal.
A política, esvaziada de conteúdo, resume-se a uma luta por cargos e benefícios particulares, onde a disputa dos interesses sociais concretos se dilui num marco institucional corrompido, que sempre coloca fora da discussão os interesses hegemônicos disfarçados pelo discurso progressista. É assim como as posições políticas expressadas pelos respectivos partidos que se submetem ao jogo proposto pela democracia formal, evitam basear-se no confronto de ideias em relação a uma leitura da realidade, muito menos com argumentos que defendam os interesses sociais que representam. Uma das consequências fundamentais do esvaziamento da política é o distanciamento do homem comum desta prática. Sua apatia e indiferença com os processos eleitorais, em que tais democracias condicionadas pelo poder mediático se expressam, terminam provocando o pior que pode acontecer no corpo da sociedade, a separação perigosa entre o sistema político e o coletivo social.
Quando o interesse da população diminui em relação ao mundo da política – aprofundando a desconfiança nos representantes e limitando a filiação aos próprios partidos – os políticos precisam mais do que nunca da influência das forças mediáticas para ganhar e reter o apoio do eleitorado. Uma matéria favorável ou uma aparição na televisão, por exemplo, equivale a uma comunicação gratuita com milhares de indivíduos impactados através da mídia, que tem como resultado um efeito de convencimento maior do que a propaganda paga. Produze-se assim um ciclo realimentado entre a exclusão política e o poder crescente dos grupos mais poderosos da sociedade, que tem na classe política seus principais cúmplices.
A questão democrática sempre foi historicamente um fato central em relação à expressão dos interesses populares. Em outras palavras, as liberdades eleitorais sempre foram, durante décadas, um risco ao continuísmo dos interesses dominantes. Nessa configuração é que devemos encontrar a resposta ao fenômeno das sucessivas ditaduras militares no continente latinoamericano. A contradição entre a democracia formal – que é a outra cara complementar do mercado – e a democracia real, de conteúdo, na qual a política não é alheia ao que sucede ao conjunto do povo, torna-se imprescindível ser entendida politicamente. Estas duas formas distintas de conceber a democracia existem, mas não são idênticas. A formal tem como condicionante o enraizamento da exclusão política. A real, por outro lado, é a que viabiliza a liberdade das maiorias de escolher um governo verdadeiramente popular e democrático.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

A VOLTA DO ESTADO BENFEITOR

Durante muito tempo o povo brasileiro se alimentou de frases feitas para sentenciar qualquer tipo de evento vinculado ao comportamento humano. Os mais intelectualizados citam filósofos gregos para discutir os caminhos da ética e seus limites. Outros, sem esconder o fascínio que lhes produz o império americano, recorrem aos provérbios e citações carregados de clichês de seus sucessivos presidentes, desde Abraham Lincoln até aqueles que permearam durante décadas o imaginário coletivo latinoamericano, sedimentados em grupos com profundo complexo de “vira latas”, incapazes de sentir orgulho de seus heróis nativos.
Não vou negar minha antipatia pelo imperialismo cultural, porém, vou aproveitar este enlace para relembrar parte do discurso de posse do falecido presidente norteamericano Ronald Reagan em 1981: “Na atual crise, o Estado não é a solução para nosso problema; o Estado é o problema”. A partir dessa conceituação, tal senhor assentou as bases de um modelo econômico mundial que, perante seu fracasso incontestável, encaminhou-se na direção de seu próprio suicídio. O capitalismo revisitado tal vez seja a única opção de sobrevivência. A falsidade da frase presidencial encontra-se exatamente no seu contrário: “O Estado não é o problema, o Estado é a solução”.
Como iniciativa de socialização política, o liberalismo volta a colapsar historicamente, no sentido de ser oficializado como modelo organizador da sociedade, principalmente por sua incapacidade de gerenciar o mercado. Nisso consiste a atual crise do capitalismo, marcado pelo fracasso de sua proposta civilizatória, pela fraqueza de seus princípios e pela contradição de suas instituições. O caso norteamericano é um exemplo do esgotamento dos incentivos financeiros injetados nos países ricos de forma a atenuar a crise, da qual o próprio mercado desregulado é o culpável. Em 2009, o governo federal dos Estados Unidos teve um déficit fiscal de 1,5 trilhões de dólares, sendo que a Reserva Federal teve que gastar 1,5 trilhões de dólares para comprar dívidas de hipotecas, de modo a evitar o colapso do mercado. Tais políticas de estímulo para salvar o mundo capitalista de bancarrota estão cercadas por sua própria ineficiência. A explosão da dívida pública grega, não só afeta os países devedores mais vulneráveis, mas também os seus principais credores, principalmente na acumulação de ativos de crédito-lixo. Desse modo, o Estado termina comprometendo sua generosidade através das únicas opções possíveis, cortes de gastos, reduções salariais, aumentos nas taxas de juros, contração produtiva e estagnação econômica, atendendo assim as exigências dos credores globais. O pretenso modelo autorregulatorio neoliberal se desmorona na sua própria construção ideológica. Não estamos falando da volta ao século passado, quando as crises eram resolvidas de forma autoritária através da intervenção e regulação por parte do Estado todo-poderoso. No entanto, como alternativa, pode-se recorrer a medidas políticas adotadas por alguns governos latinoamericanos, que conseguiram ultrapassar a crise e criar novos horizontes econômicos para um futuro sustentável.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

O VIGOR CRIATIVO DE AMÉRICA LATINA

Em 09/05/2007 a revista Veja, com sua soberba característica, publicou um artigo intitulado “O retorno do idiota”, escrito por Álvaro Vargas Llosa, diretor do “Centro para a Prosperidade Global”, no qual fazia uma análise das políticas adotadas por alguns países da região, que explicitamente se confrontavam com as ideias da onda neoliberal vigente na época. Tal artigo tinha como objetivo ridicularizar as iniciativas econômicas dos governantes locais, dedicados, segundo o texto, a criar empecilhos com “métodos ineficazes adotados pelas novas gerações de revolucionários”, que surgiram com promessas populistas para sabotar um projeto assentado na prosperidade e oportunidade para todos. Vargas Llosa finaliza sua análise fajuta criminalizando tais iniciativas, explicando que tal comportamento era resultado do “ego fraco dos nossos povos” “profundamente ressentidos” por não ter acesso à mobilidade social. A realidade recente desmente categoricamente tal argumento, para sorte desta América Latina sofrida e humilhada durante tanto tempo.
O articulista citado reside nos Estados Unidos, e seguramente deve-se sentir incomodado com os cerca de 14 milhões de norte-americanos desempregados, cifra que eleva para 9,1% o total de trabalhadores naquela situação no país, resultado da fraca criação de postos de trabalho por parte do setor privado. No setor público, ao mesmo tempo, foram despedidos desde 2008 cerca de 446 mil funcionários, sobretudo na Educação, além de outros 28 mil trabalhadores estatais e municipais exonerados nestes últimos meses. Junta-se ao desemprego generalizado, o flagelo das pobreza extrema, que atingiu seu auge na cidade de Nova York, que já conta com 1,4 milhões de famintos – dos quais 40% são crianças – conforme revela a Coligação Contra a Fome daquela cidade. Vale ressaltar que o índice de pobreza entre os nova-iorquinos cresceu 14,2 e 15,8% em 2008 e 2009 respectivamente. Imagino em que situação psicológica encontra-se o ego destes indivíduos, sempre confiantes na retórica neoliberal.
Por outro lado, no momento em que escrevo, as frentes de trabalho se espalham por todos os países latinoamericanos. A Organização Internacional do Trabalho – OIT, e a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe - CEPAL, indicam uma forte recuperação econômica da nossa região. Tal constatação pode ser verificada na significativa queda na taxa de desemprego urbano, situada nos 7,3%, o que a transformou no índice mais baixo dos últimos 20 anos. A “nova geração de revolucionários” – epíteto burlesco usado por Vargas Llosa – delinearam vigorosas políticas anticíclicas que permitiram enfrentar a crise financeira internacional de 2008/2009, e que foram decisivas para a redução da vulnerabilidade e a posterior recuperação econômica. Tal iniciativa teve reflexos positivos na oferta de empregos e aumento da renda, concretizando-se num aumento médio de 6% no Brasil, Uruguai, Chile e Nicarágua, e a um nível entre 3% e 5% na Costa Rica, no México, Panamá e Peru. O presidente Obama deveria enviar seus economistas a fazerem um curso intensivo nas melhores universidades de América Latina. Quem sabe assim aprendem.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

O LADO ESCURO DA ECONOMIA LIBERAL

Lembro-me do famoso guru da empresa de consultoria McKinsey, Kenichi Ohmae, quando afirmou, nos finais dos anos 90 que “Os estados-nações converteram-se em unidades de operações artificiais, inviáveis mesmo em uma economia mundial”, ao tempo em que num ufanismo quase religioso sentenciava e enviava para a lixeira da história as identidades nacionais, sepultadas por uma nova era utilitarista e sem ideologias. Nessa oportunidade, o próprio Peter Drucker diria no seu livro “A Sociedade Pós-Capitalista”, que a obsolescência do estado significava um novo mundo sem crenças coletivas e baseado na economia global de mercado.
No entanto, a civilização entrou no terceiro milênio descobrindo que o processo neoliberal tanto alardeado, não passara de um despotismo estrutural que reproduz a tradição ideológica do liberalismo econômico do século 19, que sempre tentou impor as forças irresistíveis do mercado sobre a soberania política das nações. A prova reside na onda de corrupção que atingiram os estados a partir da década de 90, que coincide com a aplicação de uma estratégia neoliberal - estreito noivado entre os delinqüentes públicos e a globalização - que causaram uma violenta concentração de renda por parte de grandes grupos privados não muito longe das organizações criminosas.
A criminalidade que se aprofundou no tecido social constituiu-se numa teia de vínculos complexos entre as elites financeiras, políticos corruptos, traficantes de drogas e quadrilhas de delinqüentes internacionais. A ampla rede de parasitismo mundial numa escala jamais vista na história da humanidade é a hospedeira de seres monstruosos incapazes de qualquer ato civilizado. No leste europeu e na antiga União Soviética, a entrada desenfreada na economia de mercado provocou uma intensa decomposição cultural que propiciou a expansão da criminalidade. Por outro lado, em menos de uma década, o complexo urbano dos países latinoamericanos passou a ser um território ocupado por criminosos tão devastadores como as antigas ditaduras militares, onde grandes contingentes da população mais carente transformaram o crime num modo de sobrevivência, enquanto os grupos mais poderosos usavam as artimanhas do roubo institucionalizado na mais gritante impunidade.
Segundo um relatório da ONU de 2009, as atividades criminosas das redes mafiosas mundiais produziram uma renda anual de um trilhão de dólares, produto de narcotráfico, tráfico de armas, prostituição, jogo clandestino e contrabando em escala infinita. No entanto, se somarmos a esta assustadora estatística os próprios negócios legais que servem para realizar lavagem de dinheiro ilícito, chega-se a valores em torno de quatro trilhões de dólares, o que significa aproximadamente 13% do Produto Mundial Bruto.
Enquanto milhões de seres humanos continuam esperando pelas promessas da “emancipação social” de Peter Drucker ou de Francis Fukuyama, um novo panorama começa a se esboçar na sombra autoritária do sistema financeiro global, que é a descoberta de seu viés criminoso, e que precisa ser combatido de forma honesta pelas novas gerações de políticos comprometidos com a justiça social.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

sexta-feira, 17 de junho de 2011

EXISTE A IMPRENSA LIVRE?

Quando soube que a psicanalista Maria Rita Kehl foi demitida pelo jornal conservador O Estado de São Paulo por causa do artigo intitulado “Dois pesos...”, que falava sobre a "desqualificação" dos votos dos pobres, e considerado por aquele meio como um “delito de opinião”, tal fato me conduziu a fazer o seguinte questionamento: a liberdade de imprensa dos grandes meios de comunicação existe verdadeiramente, ou beneficia aos grupos de poder em detrimento daqueles que questionam sua parcialidade?
Minha pergunta não está atrelada a uma “teoria da conspiração”, e sim a eventos vinculados aos subsistemas da sociedade, invisíveis aos usuários e úteis ao poder mediático. Este poder, por exemplo, exalta um discurso sobre a necessidade de melhores dirigentes políticos, ao mesmo tempo em que simplifica e banaliza todos os temas, procura culpáveis e inocentes, fomentando a frivolidade e estereótipos a seguir. Raramente os meios massivos resgatam o positivo dos governantes que atuam com honestidade, utilizando uma visão maniqueísta destinada a provocar uma participação induzida, geralmente centrada em meras opiniões. Nesse sentido, na medida em que a política é esvaziada ideologicamente e os políticos se apropriam dos partidos para atender seus interesses particulares, resulta lógico que essa prática dependa cada dia mais da alternativa mediática, principalmente daquela mais poderosa. Esta, por sua vez, no lugar de ser um meio de equilíbrio na discussão multipartidária, transforma-se no verdadeiro poder, descaracterizando-se como imprensa livre de atavismos, e o que é pior ainda, erigindo-se na detentora de uma visão unilateral.
Como se logra tal condicionante? A fórmula está centrada no impacto do mediático na política através da construção do discurso. Não apenas pelo temor do discurso inconveniente, apesar de realista, senão também porque se coloca a moderação como regra, a neutralidade ideológica como pauta, e, sobretudo, pelas concessões que devem ser feitas ao modo de dizer as coisas. Na suposta imprensa livre, livre para decidir o que é certo ou errado, o discurso dos dirigentes partidários se disfarça e torna-se refém do politicamente correto. Nunca o discurso é o mais importante, porque sempre aparece como suspeito, viciado pelo pecado emblemático da corrupção intrínseca daqueles que disputam o poder. Tal suspeita jamais atinge aos verdadeiros poderosos grupos econômicos, que, na sua onipotência jornalística, usam a mídia para radicalizar posturas polarizadas, criminalizando ou descaracterizando inimigos, simplificando ao máximo os problemas, prestigiando desse modo aqueles da sua preferência.
Entretanto, o poder mediático vai além do condicionamento do discurso. Reserva para si a confecção da agenda, ou seja, a temática a ser tratada, eliminando aqueles que a contradizem, enquanto veiculam seus posicionamentos como se fossem próprios da “opinião pública”. Raramente optam por causas difíceis de defender, determinando ordem de prioridades que em sua maioria não respondem às necessidades reais da sociedade, e que em seu conjunto jamais coincidem com os interesses dos excluídos.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

BRASIL SEM MISÉRIA

O programa “Brasil sem Miséria”, lançado pela presidenta Dilma Rousseff, e que foi uma das principais promessas enquanto era candidata, tem como objetivo tirar da pobreza extrema 16,2 milhões de pessoas, incluindo-as desse modo, por meio do consumo, às atividades econômicas da sociedade. Tal iniciativa, que excede a formatação do Bolsa Família, centrado em vastos programas de transferência de renda durante o governo anterior – ação imediata para tirar 20 milhões de pessoas da miséria – estabelece uma mudança qualitativa no sentido de incorporar e ampliar o acesso aos serviços públicos, qualificação profissional e oportunidades de emprego formal. A operacionalização do programa não surge apenas de uma conceituação partidária ou voluntarista, e sim da inclusão de todos os agentes públicos, aliados ou não, de modo a criar parcerias nos diferentes Estados da União, que permitam a ampliação do programa através de ações complementares de distribuição de renda e inclusão produtiva.
O quadro atual de pobreza no Brasil está fixado na região Nordeste, que concentra 10 milhões de brasileiros extremadamente pobres, medido através do critério de renda ou de condições de sobrevivência. Os indicadores para avaliar a situação desses indivíduos – cujos recursos não excedem os R$70 por mês – que não possuem renda e vivem em locais sem banheiro próprio ou acesso a rede de água e esgoto, e que comportam uma família com até três crianças com menos de 14 anos, são suficientes para justificar a inclusão de 800 mil famílias no programa de transferência de renda do governo até 2013. Tal iniciativa, conforme o programa destaca, está centrada no objetivo principal de permitir que os extremadamente pobres tenham oportunidade de acesso aos milhões de vagas disponíveis de trabalho no país.
De que forma o governo pretende aplicar na prática tais medidas? Existe um mapeamento preliminar realizado pela pasta da ministra do Desenvolvimento Social, Tereza Campello, que além da qualificação da mão-de-obra dos beneficiários do programa, tem como meta incentivar na área rural o aumento da produção da agricultura familiar, atendendo os agricultores por meio de assistência técnica em parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa, e pagamento de uma bolsa verde de $R 2.400,00. Tal mapa de oportunidades foi elaborado a partir da constatação de que dos 8,6 milhões de indivíduos extremadamente pobres das áreas urbanas, 52% deste total vive no Nordeste e 24% na região Sudeste. De uma população de 30 milhões de brasileiros residentes no campo, 7,59 milhões encontram-se na extrema pobreza, que corresponde a 25,5% desse total. Por outro lado, a extensão do programa “Brasil sem Miséria” para os centros urbanos está vinculada ao financiamento do Banco de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, que envolve os projetos habitacionais “Minha Casa, Minha Vida” e vagas do Programa de Desenvolvimento Produtivo – PDP do governo Federal. Tal é o papel de um Estado soberano: cumprir com a tarefa de resguardar sua capacidade de resposta social, principalmente para aqueles mais desprotegidos e invisíveis aos olhos dos mais privilegiados.

Victor Alberto Danich

Sociólogo

OS FUNDOS ABUTRES

Quando criticamos a política econômica dos nossos governos, muitas vezes esquecemos que durante muito tempo estivemos sujeitos a um processo interminável de reestruturação macroeconômica, acesso restrito a créditos e dolorosos cortes de gastos públicos, com um impacto dramático para aquelas pessoas em situação de pobreza extrema. O fluxo perverso de recursos de América latina para os países ricos teve, durante a “década perdida” de 1980, uma média de U$S 500 por homem, mulher e criança do continente, resultado de ajustes estruturais insuficientes para o crescimento e para uma saída honrosa da situação de inadimplência aos quais seus países estavam submetidos.
Pressionados por protestos públicos, entre eles aquele realizado por 70 mil participantes da campanha do Jubileu 2000, na qual foi feito um círculo humano em torno do local onde estava sendo realizada a Cúpula do G8 em Birmingham, Reino Unido – forçando estes a incluir a questão da dívida na agenda da reunião – teve como resultado o lançamento de um programa de redução da dívida para os países pobres. Tanto é que, apesar dos credores continuarem tentando controlar os termos das negociações, muitos Estados conseguiram negociar melhores condições no trato da dívida. Esse foi o caso da Argentina, que jogou muito duro com o FMI e outros credores na crise de 2002, recuperando desse modo sua economia, que lhe permitiu crescer numa rapidez sem precedentes. Assim mesmo, os setores conservadores neoliberais trataram aquele país como caloteiro. Será mesmo verdade?
Resulta importante relatar alguns acontecimentos no trato do alívio da divida, já que este é frequentemente reduzido pelo valor que os países pobres já pagaram pelos empréstimos contraídos. Foi o caso do governo nigeriano em 2004, que originariamente tinha feito um empréstimo de U$S 17 bilhões, tinha pago U$S 18 e ainda devia U$S 34 bilhões. Em 2005 fez um acordo que cancelou significativamente sua dívida, mas que exigiu que o país pagasse um sinal de U$S 12 bilhões de dólares adicionais. Nesse tipo de tratativas surge o filhote pródigo do modelo neoliberal: os “fundos abutres”.
Em 1999, quando o Zâmbia, país africano, tentava negociar sua dívida com a Romênia, a empresa Donegal International, com sede no paraíso fiscal das Ilhas Virgens Britânicas, apareceu do nada e comprou a totalidade da dívida – avaliada com juros em U$S 30 milhões – por apenas U$S 3,3 milhões. Imediatamente, tal empresa processou o governo de Zâmbia no Reino Unido para receber a totalidade da dívida incluindo os juros, que chegava a cifra espantosa de U$S 55 milhões. Atualmente, ainda circulam no mundo mais de 60 ações desse tipo movidas por “fundos abutres” – que chegam a totalizar U$S 1,9 bilhão – contra países muito pobres e endividados. A governança global, por descaso ou incompetência, é cúmplice desse processo, que representa um sofrimento humano desnecessário, além de exacerbar as crises e aumentar a desigualdade social. Tamanha tragédia é resultado da proteção insana de bancos e instituições capitalistas, que impõem profundos sacrifícios a aqueles menos preparados para enfrentá-los e mais frágeis para continuarem vivendo dignamente.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

A RECONSTRUÇÃO DO PODER

Um dos maiores interrogantes manifestados pelos poucos intelectuais que ainda sobrevivem ao ataque neoliberal é definir o lugar do indivíduo na sua relação com a natureza, principalmente aquele que discute o significado do trabalho na vida individual e social. A redefinição dos critérios de progresso e desenvolvimento deve estabelecer uma escala de prioridades, que promova novos vínculos éticos, sociais e culturais, de modo a superar o estreito espaço da racionalidade e do reducionismo linear. Tal construção intelectual no deve se expressar apenas no mundo das ideias platônicas, senão da disputa concreta de interesses, enfrentando a uma oligarquia mundial disposta a perpetuar-se por meio de todas as artimanhas disponíveis. Tal proposta conduze-nos ao tema do Estado como nação soberana. O que significa isso para nós, cidadãos brasileiros?
A matriz histórica desde Getúlio Vargas, sempre contemplou um forte vínculo entre Estado e Povo, cuja doutrina vertia quase que implicitamente a fusão de seus componentes, no qual um dependia fortemente do outro. O Estado cumpria um papel referencial para todas as ações coletivas, chegando, segundo seus mais furiosos críticos, muito além do limite paternalista que amolecia a iniciativa social. Entretanto, nestes últimos tempos dificilmente se escutam discursos que levantem a necessidade deste vínculo. O que impera de forma devastadora é a retórica que tenta impor ideologicamente a autonomia da sociedade civil em relação ao Estado. Mas esta nova forma de atuação política, confrontado Estado e Povo, terminaram por desnudar a debilidade da sociedade civil perante o mercado, que terminou impondo-lhe sua lógica. Nessa nova discussão que ressurge após o fracasso do estelionato neoliberal, devemos pensar se somos capazes de ajudar a reconstruir um Estado que tenha o suficiente poder em afiançar-se como uma ferramenta para a proteção e promoção dos interesses populares.
Ao contrario do que o neoliberalismo sustentava, que diminuir o Estado era aumentar a nação, na realidade é exatamente o contrário, fortalecer o Estado é fortalecer a nação. Os laços estreitos entre Estado e Povo devem constituir-se na muralha contra o vínculo sociedade civil – mercado, no qual sempre a primeira sai perdendo. A prática da democracia só pode acontecer no seio do Estado efetivo, porque o regime político democrático encontra-se assentado nessa premissa. A democratização deve ser entendida não apenas como as regras formais de gestão da vida política através dos meios que correspondem a um Estado de direito, respeitoso do pluripartidarismo, senão também na construção das relações democráticas no âmbito da vida social. Dito em outras palavras, a condição necessária para corrigir o atual sistema de dominação transnacional, é a efetiva construção de uma democracia participativa, na qual interatuem os partidos políticos, movimentos e organizações populares, e qualquer outra forma de reivindicação enquanto esta não seja contrária aos interesses comunitários. É assim que o poder do povo deve ser reconstruído para que o país ganhe o status de nação soberana.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

ACUMULAÇÃO PRIMITIVA DA DEMOCRACIA

Preocupado ainda com os resquícios autoritários que minam o inconsciente de muitos indivíduos, que aproveitam o surto inflacionário para alertar que precisamos de candidatos “preparados e não carismáticos” com qualidades centradas no “pulso firme e na reputação” e não em função de comportamentos “populistas” que resultem em crises como a apontada recentemente, gostaria de acentuar algumas considerações. Em primeiro lugar, a definição dos problemas originados pela inflação, sempre se configuram inicialmente como um processo de politização partidária, justamente por impactar aqueles setores da sociedade que mais sofrem com tal fenômeno. No entanto, os grupos que produzem o processo inflacionário, articulam o mesmo de tal forma que possam perpetuar seus interesses durante e depois dele, sem se preocuparem em construir um Brasil desenvolvido. De acordo com a avaliação clássica dos economistas, a inflação reduz o poder de compra da população e provoca um processo de inadimplência dos setores mais desprotegidos da sociedade. Se as pessoas pagam mais caro por alimentos, por outros produtos e pelos serviços, sobra menos dinheiro para pagar os empréstimos. Por outro lado, a expectativa de menor crescimento econômico leva à redução da renda e de postos de trabalho, o que também contribui para o crescimento da inadimplência. Tal situação termina sendo o caldo de cultivo para as manifestações de alguns setores de classe média usadas para desqualificar o consumo popular.
Os discursos enlatados em expressões do tipo “quando faço compras, pago a vista” – de modo a evitar – “os juros extorsivos embutidos no produto”, são muito comuns entre indivíduos que ocupam uma situação privilegiada na sociedade, que é a de ter acesso ao consumo sem os limites de um salário restritivo. A grande maioria do povo trabalhador, diga-se de passo, os colaboradores imediatos na construção da riqueza do país, em geral não tem condições de fazerem compras à vista. O único recurso é fazê-lo a prazo. Tal comportamento deve entrar no campo da racionalidade econômica ou naquele do “apelo ao consumo” que o próprio modelo capitalista embute na sua propaganda?
Não obstante, a situação relatada configura alguns dados interessantes. Consultorias que atuam na área econômica, afirmam que a inadimplência neste ano não será muito significativa, estimada em torno de 8%. Tal constatação revela a nova estratégia dos consumidores das classes mais próximas da base da pirâmide social, que está assentada numa visão melhor dos apelos ao consumismo desenfreado. Tal comportamento é resultado dos primeiros intentos na aquisição de bens durante a época de créditos fartos, que levou muitos trabalhadores a se endividarem além de sua capacidade de pagamento. Hoje, esses mesmos indivíduos, depois do imenso sacrifício realizado para entrar no mercado de consumo, podem avaliar o que fazer com o único patrimônio que possuem: seu salário. Não há nenhuma razão para culpá-los por isso. Ao contrário, devemos comemorar a entrada desses setores da sociedade a uma vida exposta apenas nas propagandas, tão aneladas durante décadas de privações, e hoje realizadas.
Ficar atentos a esses contratempos significa estar comprometidos com a mobilidade social dos mais humildes, que são os principais penalizados pelos surtos inflacionários. Deve ficar claro que esse não é o caso das classes médias de renda alta, que têm o privilégio de fazerem aplicações financeiras que dão cobertura sobre a inflação. Tal é a razão porque o Estado tem a obrigação de garantir os direitos mínimos à população, politizando a mesma para que possa ser artífice de suas próprias reivindicações, sem medo de que seus argumentos sejam desqualificados pelos chamados eleitores instruídos. Quando isso acontecer, os discursos preconceituosos daqueles que se sentem ameaçados nos seus privilégios classistas, serão substituídos pela conquista definitiva da verdadeira democracia, tantos anos em fase de acumulação nas entranhas do povo.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

quinta-feira, 12 de maio de 2011

A CORRIDA POR STATUS

Imagino que a maioria das pessoas sabe que a atividade econômica da sociedade está configurada num modelo de produção capitalista. Uma de suas características principais, além de seu objetivo intrínseco assentado na maximização dos lucros, é a existência de diferentes classes sociais, que podem ser identificadas por sua capacidade de poder econômico, político, ou profissional. Por se tratar de um modo produtivo com feições democráticas, pode ser observada nele uma forte tendência à mobilidade social, bastante visível no Brasil nestes últimos anos. Perante tal fenômeno, a sociologia estuda esse mecanismo a partir de uma perspectiva funcional, que identifica certos comportamentos em função da obtenção de um sucesso vinculado a metas futuras. Pelo fato de que tais circunstâncias não estão totalmente sob controle, pela sua própria imprevisibilidade, termina-se implantando no modelo citado um processo neurótico de ansiedade na convivência social.
Nesse contexto, o julgamento que os indivíduos fazem de si próprios em termos de êxitos e fracassos anteriores, cria uma constante incerteza no que pode acontecer mais à frente. Quando a ansiedade corresponde a parâmetros de comportamentos normais, a mesma pode ser integrada na conduta e na personalidade do indivíduo. Mas, quando o fato ambicionado, em função de seu êxito ou fracasso, aparece carregado de incerteza e insegurança, em que a intensidade da frustração é desproporcional com relação aquele significante, surge o fenômeno da corrida desenfreada por status, muitas vezes, a qualquer custo. Normalmente, o temor e a ansiedade estão presentes nos casos de perturbações e conflitos, mas, a ansiedade unida à conquista por status, é expressa através de compulsões infundadas. Em tais casos, a explicação não reside num problema psíquico, senão nos problemas motivacionais comuns das sociedades de classes.
A ansiedade psíquica está vinculada a um temor sem fundamentos, uma idéia fixa ou um ato involuntário que se repete incessantemente. A corrida por status entranha um conflito simbólico, que é a busca de uma meta que está sempre distante e evadida do sujeito. O objeto manifesto não faz mais do que representá-la. Serve como defesa simbólica contra a insegurança de não obter o êxito esperado. A corrida por status sempre é acompanhada de uma fuga para alguma coisa: uma meta ou várias metas a serem alcançadas. O objeto específico não é admitido conscientemente, porque foi reprimido. O propósito comum em todos os casos é evitar a ansiedade provocada pelo possível fracasso. O fracassado numa sociedade de status transforma-se num excluído social. Por esta causa, os indivíduos que convivem neste tipo de sociedade sempre estão presos aos eternos condicionantes de êxitos e fracassos.
Entretanto, como os fracassos e os êxitos nunca são definitivos, os indivíduos convivem com a incerteza e instabilidade que rege o caráter social das comunidades de status. A ansiedade que leva à procura incessante de status é permissível numa sociedade desse tipo, oferecendo certo alívio à ansiedade criada por esse contexto. Enquanto o indivíduo corre atrás do status, não se confronta com sua ansiedade, porque o temor está dentro dele. A ansiedade não pode ser superada pelas fugas na direção das metas, porém pode ser “acalmado”. Desse modo, para que o peso da insegurança não se descarregue encima dele, o indivíduo tem que estar sempre correndo naquela direção, sem fim determinado. Com esta prática ou conduta social, logra diminuir a ansiedade e mantê-la longe da consciência. Os poderosos impulsos que existem por trás da compulsão ou obsessão estão determinados em última instância por uma aguda ansiedade social. A necessidade de sempre estar à procura de status cada vez mais elevado converte-se num meio de fuga de aquilo que se quer realmente evitar: o fracasso. Essa fuga tem uma conotação inconsciente, muito longe de ser percebida pelos atores dessa “comedia humana” de representação de papéis, tão presos ao status ambicionado, e tão distante de um projeto coletivo de ascensão social.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

PLAYA GIRÓN

Perante as guerras focalizadas que ocorrem no Oriente Médio, resulta interessante fazer um histórico das razões ocultas que existem por trás de tais acontecimentos. Os protagonistas diretos das lutas contra o colonialismo conhecem profundamente a saga dos imperialismos na sua avidez por conquistar o mundo. São as gerações atuais que precisam estar atentas à redescoberta das novas estratégias neocoloniais mascaradas com feições humanitárias. Essa é a razão pela qual quero resgatar a história a seguir.
No começo da manhã de 17 de abril de 1961, teve início à invasão da Baía dos Porcos (Playa Girón), quando um grupo de mercenários, refugiados cubanos treinados em bases da CIA e financiados por Washington, desembarca em Cuba para tentar derrocar o governo de Fidel Castro. Nas vésperas do ataque, dois aviões B-26 mascarados com as cores de Cuba, que voaram diretamente da Nicarágua para bombardear o aeroporto cubano, evidenciaram a cumplicidade da CIA na operação paramilitar. Enquanto isso, o chefe da missão norte-americana nas Nações Unidas, Adlai Stevenson, jurava que os pilotos eram desertores da força aérea cubana que estavam lutando do lado dos invasores. Tal afirmação terminou revestindo-se de extremo ridículo, que aprofundou ainda mais o sentimento hostil aos Estados Unidos na Assembléia da ONU. A constatação da existência de forças mercenárias contra Cuba aconteceu quando foi abatido um avião militar norteamericano, que bombardeava a população civil e forças milicianas na região de Central Austrália. O cadáver do piloto Leo Francis Baker, com toda a documentação e plano de vôo, transformou-se na prova definitiva.
A eficiência das forças militares cubanas terminou abortando os ataques aéreos mercenários. De fato, dos onze B-26 que saíram de Porto Cabezas, na Nicarágua, nove foram abatidos. Desse total, seis pilotos norteamericanos, contratados da Guarda Nacional de Alabama, além de cinco pilotos cubanos contra-revolucionários, morreram na invasão da Baía dos Porcos.
A totalidade da força mercenária adestrada pela CIA, teve poucas chances de resistir ao heroísmo dos milicianos de Cuba. Dos 1.400 cubanos anticastristas, que faziam parte das forças invasoras, 100 morreram, cinco conseguiram escapar asilando-se na Embaixada do Brasil, e outros 14 foram resgatados por navios norteamericanos. Entretanto, o total de combatentes treinados pela CIA e mobilizados para a invasão chegava a 2.400, dos quais 1.200 não conseguiram nem sequer desembarcar, retornando às suas bases perante o intenso bombardeio das baterias antiaéreas das milícias postadas na praia.
Conforme o Conselho Revolucionário Cubano, de acordo com o relato do historiador brasileiro Luiz Alberto Moniz Bandeira, e publicado de forma a traçar o perfil dos invasores mercenários, o mesmo mostrou que estes recebiam um pagamento de US$ 175 por mês, além de um adicional de US$ 25 por filho. Entre eles havia 100 latifundiários, 24 grandes proprietários, 67 donos de casas e apartamentos, 112 comerciantes, 35 magnatas industriais, 195 ex-militares de alta patente do governo de Batista e alguns outros sem perfil definido, Todos tentavam lutar para recuperar 914.859 acres de terras, 9.666 casas, 70 fábricas, 5 Minas, 2 Bancos e 10 Engenhos de açúcar. Tais dados demonstram o caráter de classe da composição dos “expedicionários”, francamente em confronto com a situação da imensa maioria do povo cubano, trabalhadores pobres das cidades e “guajiros” do campo. As amplas reformas iniciadas para atender os apelos dos setores mais pobres da sociedade, em apenas dois anos de governo, deram ao governo de Castro o apoio necessário para a luta contrarevolucionária financiada pela CIA. Dos 1.189 invasores restantes, em conjunto com o alto comando da Brigada Expedicionária 2506, se renderam em massa às tropas de Fidel Castro. O comandante Che Guevara, nessa oportunidade, arrematou com seu famoso sarcasmo, que aquele fora “o único exército do mundo que se rendera sem experimentar qualquer baixa”.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

A TEORIA DO PAPEL

O ser humano vive de forma coletiva no meio de uma construção cultural que se chama sociedade. Entretanto, poucos percebem que esta se manifesta como um fato objetivo. Ela existe, e sua existência desempenha uma função externa a nós. O que isso significa? Qual é a razão de sentir-nos cercados na nossa vida por todos os lados? De que forma nos situamos na sociedade? Existe um mecanismo insuspeito de controle social que nos diz como devemos modelar nosso comportamento?
Partindo da certeza de que estamos na sociedade, nossa localização depende da pré-definição de tudo aquilo que fazemos, desde a linguagem até a forma de comportar-nos, desde nossas convicções religiosas até a probabilidade de cometer um ato de natureza anti-social. Nesse contexto, os próprios desejos nunca são levados em conta na questão da localização social. Tanto é, que tudo aquilo que a sociedade aprova ou proíbe, deve ser acatado como correto e sem questionamentos, reprimindo assim o exercício da nossa resistência intelectual a qualquer tipo de posicionamento aceito majoritariamente. Essa é a razão porque a sociedade, como fato objetivo e externo se manifesta na forma de coerção, de modo que suas instituições possam moldar nosso comportamento, e até mesmo as expectativas que tivermos em relação a qualquer iniciativa de mudança social. As sanções da sociedade são capazes de isolar-nos uns dos outros, ridicularizar-nos ou privar-nos do próprio sustento, ou, em última instância, quitar-nos até a própria vida.
A lei e a moralidade da sociedade podem apresentar características diversas. Cada sanção sempre estará acompanhada de uma justificativa, e a grande maioria aprovará que esta seja usada contra nós como castigo por qualquer desvio cometido. Essa é a razão mais clara da nossa localização no tempo e no espaço, de um modo historicamente predeterminado e totalmente distante de qualquer biografia individual. Nossa vida é apenas um episódio no percurso do tempo, no qual a sociedade transforma-nos em reféns de sua própria história. Tal configuração mostra-nos que, conforme os mecanismos de controle impostos pelo universo social, o indivíduo e a sociedade parecem ser duas entidades antagônicas. No entanto, ter uma visão de que os seres humanos estão sujeitos a mecanismos que os forçam à total obediência, não é uma verdade absoluta. Por que a maioria de nós sente a pressão da sociedade como uma forma de coerção medianamente suave? Qual seria a razão para que isso aconteça sem que a gente experimente qualquer sofrimento?
A resposta está situada nos mecanismos sócio-psicológicos do universo comum habitado pelos membros da sociedade. Tal organização nos conduz a um determinismo quase que congênito: sempre desejamos aquilo que a organização espera de nós. Usamos os papéis que a sociedade nos atribui. Queremos, sem querer, obedecer às regras. Por que? Porque a organização social é muito maior do que imaginamos. Esta determina não só o que realizamos, senão também o que somos. Nesse caso, a teoria do papel mostra-nos que a identidade de um indivíduo é atribuída socialmente, sustentada socialmente e modificada socialmente. Em outras palavras, estes condicionantes centrados na localização social, não apenas afeta nossa conduta, ela afeta também nosso inconsciente, transformando-o de acordo com as definições que a maioria das pessoas aceita como válidas. Um papel social pode ser definido como uma resposta modelada a uma expectativa tipificada, na qual a sociedade pré-definiu conforme essa dimensão. Usando o teatro como alegoria, pode-se dizer que a sociedade proporciona o roteiro exato para todos os personagens. Os atores apenas têm que assumir os papéis que lhes foram atribuídos antes de ser levantado o telão. Enquanto estes desempenharem seus papéis corretamente, tal qual indica o roteiro, a representação do drama social funcionará conforme o planejado. O papel, portanto, oferece ao indivíduo o padrão de comportamento que dá funcionalidade a sua identidade social. Gostemos ou não, seu sortilégio nos acompanhará até o final das nossas vidas.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

quarta-feira, 13 de abril de 2011

FAZENDO APOLOGIA DO TERROR

Mais uma vez, a revista Veja na sua insaciável procura por factóides sensacionalistas, publica um artigo com conotações de exagero que beira o ridículo. Tanto é que seus leitores cativos ficam num estado de transe neurótico, imaginando o Brasil inundado por terroristas islâmicos. Não vamos entrar no mérito se há algum ou outro maluco disfarçado de Al Qaeda circulando pelas ruas de São Paulo. Mais uma rede comandada por extremistas que estendem seus tentáculos no Brasil? Parece a mesma história das FARC na época das eleições. Agora muda o endereço. Só faltava publicar nas próximas edições que a presidente Dilma namora Osama Bin Laden, ou que está sendo preparado um atentado ao Cristo Redentor com mísseis palestinos. Na entrelinhas há uma acusação velada ao comportamento da nossa diplomacia, da Polícia Federal e do Tribunal de Justiça do Brasil. Sinceramente, suspeito que os maiores assinantes da revista em questão devam ser o Pentágono, a CIA e o FBI. É possível, já que os mesmos têm centenas de agentes circulando pelo Brasil e além. Seguramente á toa, errando na previsão de seus relatórios. Os leitores acham que estou de gozação? Nada disso. Vamos fazer um pouco de história para entender porque essas agências não são muito confiáveis. A análise psicológica as enquadraria na síndrome do “surto hollywoodiano” muito usado em outras latitudes, mas incapazes de detectar ou denunciar os “inimigos íntimos” dentro do próprio país. Desde 1996, o FBI sabia que Al Qaeda poderia usar aviões em ataques suicidas contra o quartel geral da CIA ou outros grandes edifícios do governo. Nunca levou isso a sério. Bom, o Serviço de Inteligência Americano tinha certeza que no Iraque havia armas de destruição de massa. Os pobres coitados foram arrasados por causa disso. E as armas nunca foram encontradas. Para não ser tão ácido na minha crítica, vou dizer que um agente do FBI, cujo nome ainda permanece em sigilo, relatou ao Comitê do Congresso Americano que seus superiores, no dia 29 de agosto de 2001, algumas semanas antes do 11 de setembro, o proibiram de deter Khalid Al-Midhar, um dos seqüestradores do avião AA77, lançado contra o pentágono. Existem centenas de relatos de militantes islâmicos investigados durante sua estadia nos Estados Unidos, muitos deles participantes dos atentados. A própria CIA tinha o telefone e endereço de Marwan al-Shehhi, o terrorista que pilotava o avião do vôo 175 da United Airlines, que foi arremetido contra o World Trade Center. Apenas 48 horas depois do atentado, o governo norteamericano responsabilizava o saudita Osama Bin Laden como autor intelectual do ato terrorista, com uma rapidez impressionante. Tudo montado ao melhor estilo da “sétima arte”. A brutalidade do atentado do 11 de setembro, tornou propícia a declaração de guerra pelo então presidente George W. Bush, sem saber muito bem contra quem. Depois, num ato de fundamentalismo cristão, declarou que a guerra era do “bem contra o mal”. No entanto, tal acontecimento esconde uma verdade muito mais aterradora, já que isto permitiu ao governo Bush que legitimasse, através de um documento classificado como “Top Secret”, a invasão do Afeganistão e do Iraque, com a justificativa para a guerra global contra o terror. Oficializando o islamismo como o novo inimigo, abriu-se a porta para a conquista dos povos árabes, introduzindo neles, baixo o manto da democracia ocidental, a expansão capitalista. No momento em que Brasil reserva para si mesmo a definição de seus interesses nacionais, livres da tutela de quem seja, tratando de encontrar seu espaço político e econômico, buscando sua autonomia em confronto com as estruturas de poder mundial, estranhamente aparecem artigos que tentam criminalizar seu projeto de estado, enquadrando seu papel geográfico a mero receptáculo de organizações terroristas, que usam seu território para disseminar o extremismo islâmico. Só falta que o governo dos Estados Unidos, com seus olhos no Pré-sal, nos coloque na vala comum do “eixo do mal” e das incertezas futuras.

Victor Alberto Danich

Sociólogo

O IMPÉRIO ATACA DE NOVO

Foi o presidente Obama que deu o sinal verde, desde o Brasil, para atacar a Líbia. Logo continuou seu itinerário por Chile e El Salvador, cumprindo um roteiro inestimável aos interesses norteamericanos, profundamente abalados durante o governo de George H.W. Bush. Assim de simples, entre sorrisos e promessas. A resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas autorizando ataques aéreos contra as forças de Muamar Khadafi foi aprovada com dez votos a favor e cinco abstenções. Tal iniciativa visava a criar uma zona de exclusão aérea de modo a resguardar a vida de civis indefesos. Entretanto, não foi o que realmente aconteceu, já que os ataques se entenderam além dessa limitação, destinada a favorecer os rebeldes armados até os dentes. Não por acaso a abstenção partiu por parte de nações que estão curtidas na luta contra antigos imperialismos, hoje disfarçados de democráticos e defensores dos direitos humanos. Entre eles encontram-se os países do BRIC – Brasil, Rússia, Índia, China, e mais, quem diria, a própria Alemanha. Estes países partem da ideia de que não adianta a condenação com o uso da força nas relações internacionais, e sim através do diálogo. Isso não importa para o império americano. O negócio dele é fazer guerras contra qualquer um, usando como fachada a coalizão da Organização do Atlântico Norte – OTAN, delegando a seus aliados a execução das operações militares com base na resolução do Conselho de Segurança. Uma escapatória elegante para fazer negócios sem correr o risco de reviver o fiasco do Iraque e Afeganistão. Alguns leitores devem imaginar que estou a favor do governo Líbio. Por tanto, torna-se necessário fazer a ressalva. Muamar Khadafi exibe o autoritarismo clássico dos países muçulmanos, resultado de longas disputas tribais pela hegemonia entre famílias ou monarquias. Tanto é assim, que em 2006 os EUA retiraram a Líbia da lista dos países terroristas, facilitando a viabilização de contratos milionários na área energética. O pobre Obama, refém dos republicanos ultraconservadores do Tea Party, é incapaz de confrontar-se com a ideia generalizada de que a guerra faz parte da recuperação política e econômica dos Estados Unidos. Dizer não a isto significa um suicídio político prematuro. Resulta muito melhor dar a ordem para que o ataque lhe garanta uma pós-vida eleitoral. No meio desse teatro operacional, passa inerte a lembrança de um dos maiores crimes cometidos aos direitos humanos no século passado, que ocorreu justamente sob os olhos indiferentes das Nações Unidas, a mesma que hoje autoriza qualquer ataque. O massacre de Ruanda em 1994, país africano sem qualquer importância estratégica para os países ocidentais, viveu um dos maiores genocídios na história do país, no qual morreram perto de um milhão de pessoas. O patético desenlace aconteceu perante a indiferença daqueles que aprovaram a resolução do conselho de Segurança contra a Líbia, que são os Estados Unidos, Grã-Bretanha e França, cada qual com suas justificativas imperiais delirantes. Para falar do século atual, devemos lembrar o que está acontecendo no Bahrein, ocupado por tropas de Arábia Saudita e dos Emirados Árabes. Por outro lado, a revolta no Iêmen onde os manifestantes são dispersos a tiros, não recebeu até agora qualquer manifestação por parte da ONU, reduzida apenas a declarações de condenação moral. Por último, voltando a nossa latinoamérica, o presidente Obama perdeu a chance histórica de pedir desculpas em nome do seu país, pela colaboração criminosa deste nos golpes de Estado e assassinatos de milhares de militantes políticos perpetuados na Argentina, Chile e Uruguai durante a década de 70. No entanto, em vez de criar uma zona de exclusão em torno da Escola de Mecânica da Armada na Argentina ou no Estádio Nacional do Chile, de modo a evitar o massacre de tantos inocentes naquela época, o império optou por financiar os furiosos ditadores de plantão, resguardando a divisão do mundo no eterno maniqueísmo econômico dos fortes contra os fracos.

Victor Alberto Danich

Sociólogo