terça-feira, 30 de junho de 2009

CHUTANDO A ESCADA: COMO A HISTÓRIA E O PENSAMENTO ECONÔMICO CAPITALISTA FORAM REESCRITOS PARA JUSTIFICAR O NEOLIBERALISMO

Há atualmente uma grande pressão para que os países em desenvolvimento adotem um conjunto de "boas políticas" e "boas instituições" - como liberalização do mercado e para investimentos estrangeiros e estritas leis de patentes - para promover o desenvolvimento econômico. Quando alguns países em desenvolvimento se mostram relutantes em aceitar tais políticas, os proponentes deste receituário geralmente acham difícil de entender esta estupidez do que entendem ser uma já tentada e testada receita para o desenvolvimento. Afinal, argumentam os países desenvolvidos, estas práticas e instituições já foram usadas no passado com sucesso. Sua crença nas próprias prescrições é tão absoluta que a seu ver, tais medidas deveriam ser impostas aos países em desenvolvimento através de fortes pressões bilaterais ou multilaterais, ainda que encontrem resistência.
Naturalmente, são acalorados debates sobre quando estas políticas recomendadas são ou não apropriadas para os países em desenvolvimento. Entretanto, mesmo muitos daqueles que são céticos quanto à aplicabilidade destas políticas e instituições aos países em desenvolvimento, curiosamente tomam por dadas estas práticas que recomendam, aceitando-as como parte de seu passado quando caminhavam para o desenvolvimento. Ao contrário da sabedoria convencional, os fatos históricos mostram que os países ricos não se desenvolveram tendo por base as políticas e instituições que, agora, prescrevem e, freqüentemente, forçam aos países em desenvolvimento. Infelizmente, este fato é pouco conhecido nos dias de hoje por conta da atuação de "historiadores oficiais" do capitalismo, historiadores que foram bem sucedidos no processo para reescrever sua própria história.
Praticamente todos os países atualmente ricos usaram de proteções tarifárias e subsídios para desenvolver suas indústrias. Interessantemente, Grã-Bretanha e Estados Unidos da América, dois países que atingiram o pináculo da economia mundial através do seu livre-mercado e política de livre comércio, são atualmente os com as mais agressivas práticas de subsídio e proteção do mercado interno.
Contrário ao mito popular, Grã-Bretanha foi um combativo usuário e em certos setores, o pioneiro, em ativismo de políticas que intencionavam promover suas indústrias. Tais políticas, ainda que limitadas em escopo, datam do século 14 (com Edward III) e século 15 (com Henry VII) em relação à manufatura de lã, a principal indústria da época. A Inglaterra então era um exportador de lã crua dos Países Baixos e Henry VII, por exemplo, tentou alterar estas relações. Henry VII passou a taxar as exportações enquanto, ao mesmo tempo, atraía trabalhadores qualificados dos Países Baixos.
Particularmente entre a reforma da política de comércio do Primeiro Ministro Robert Walpole em 1721 e a adoção do livre mercado por volta de 1860, a Grã-Bretanha usou de políticas extremamente dirigistas para o comércio e indústria, envolvendo medidas muito similares às de países como Coréia e Japão usadas posteriormente com os mesmos objetivos. Durante este período, a Inglaterra protegeu suas indústrias ainda mais intensamente do que a França, comumente apresentada com um contraponto de dirigismo estatal contra o sistema de livre-mercado. Tendo estes fatos em mente, Friedrich List, importante economista alemão no século 19, afirmou que a Grã-Bretanha, ao defender o livre-comércio aos países menos desenvolvidos como Alemanha e EUA, atuava "chutando a escada" que havia utilizado para atingir o topo.
Nos dias de hoje, pouco é sabido sobre a interação intelectual entre EUA e Alemanha que não acabou aí. A Escola Histórica alemã, representada por Wilhem Roscher, Bruno Hildebrand, Karl Knies, Gustav Scmoller e Werner Sombart, atraiu muitos economistas estadunidenses em fins do século 19. O santo padroeiro da escola neoclássica dos EUA, John Bates Clark, em cujo nome é dado o prestigioso premio para jovens economistas, foi para a Alemanha em 1873 onde estudou a Escola Histórica Alemã sob os cuidados de Roscher e Knies, embora tenha gradualmente se afastado dela. Richard Ely, um dos principais economistas estadunidenses no período, também estudo com Knies e influenciou a Escola Institucionalista Americana através de seu discípulo, John Commons. Ely foi um dos fundadores da Associação Estadunidense de Economia e o maior seminário público no encontro anual da associação é feito em seu nome, embora poucos dos membros presentes saibam quem Ely foi.
Entre a Guerra Civil e a Segunda Guerra Mundial, os EUA eram, literalmente a mais protegida economia no mundo. Neste contexto, é importante destacar que a Guerra Civil nos EUA foi travada em decorrência da questão tarifária, tanto quanto, se não mais, do que pela abolição da escravatura. Dois assuntos eram divisores entre o Norte e Sul: o Sul tinha mais a temer na trincheira das tarifas do que nas trincheiras da escravidão. Abraham Lincoln era um famoso protecionista que construiu sua carreira política sob o carismático político Henry Clay no Partido Whig, que advogava o "Sistema Estadunidense", baseado no desenvolvimento infra-estrutural e protecionismo (então reconhecendo que o livre comércio era de interesse da Inglaterra). Um dos maiores assessores econômicos de Lincoln era Henry Carey, reconhecido por ser um economista protecionista e descrito como "o único economista estadunidense de importância" por ninguém menos que Marx e Engels em 1850 e agora quase desaparecido na história do pensamento econômico americano. Por outro lado, Lincoln pensava que os afro-americanos eram racialmente inferiores e que a emancipação dos escravos era uma proposta idealista sem perspectivas de implementação imediata - diz-se que ele teria aprovado a abolição como um passo estratégico para vencer a Guerra ao invés de que por algum traço de convicção moral.
Na proteção de suas indústrias, os estadunidenses foram contra os ensinamentos de proeminentes economistas como Adam Smith e Jean Baptiste Say, que viam o futuro dos EUA na agricultura. Entretanto, os estadunidenses sabiam exatamente qual era o jogo. Eles entenderam perfeitamente que a Inglaterra havia atingido o máximo de proteção e subsídios e que, portanto, eles precisavam fazer o mesmo se quisessem chegar em algum lugar. Criticando os britânicos em defesa do livre mercado, Ulysses Grant, um herói da Guerra Civil e Presidente dos EUA entre 1868-1876, respondeu grosseiramente que "em 200 anos, quando os EUA tiver obtido tudo que puder da proteção de seus mercados, aí sim adotaremos o livre mercado". Quando seu país atingiu o topo, logo após a Segunda Guerra Mundial, começou o processo de "chutar a escada" com sua apologia ao livre comércio, constrangendo países menos desenvolvidos a adotá-lo.
O Reino Unido e os EUA são exemplos mais dramáticos, mas praticamente todo o restante dos países desenvolvidos de hoje usaram de tarifas, subsídios e outros meios de proteger suas indústrias nos estágios iniciais do seu desenvolvimento. Casos como a Alemanha, Japão e Coréia já são reconhecidos por estas medidas, mas mesmo a Suécia, que tardiamente veio a representar a "pequena economia aberta" para muitos economistas, usou taticamente de tarifas, subsídios, cartéis e apoio estatal para pesquisa e desenvolvimento para estimular setores chaves de seus segmentos indústrias, especialmente o têxtil, metais e engenharia.
Houve algumas exceções, como a Holanda e a Suíça que mantiveram o livre mercado desde o fim do século 18. Entretanto, estes países já eram os mais tecnologicamente avançados no período e, por esta razão, não precisavam de muita proteção. Além disto, deve ser destacado que a Holanda empregou uma impressionante variedade de medidas intervencionistas até o século 17 com o objetivo de construir e assegurar sua supremacia marítima e comercial. Além do mais, a Suíça não tinha leis de patentes até 1907, indo em contradição direta com a ortodoxia de hoje, que defende direitos de propriedade intelectual. Mais interessante ainda é notar que a Holanda aboliu sua lei de patentes (de 1817) em 1869 alegando que patentes eram monopólios politicamente estabelecidos e inconsistentes com os princípios do livre mercado - uma posição que hoje chocaria muitos dos economistas que advogam o laissez faire. Outra lei de patentes só foi reintroduzida tardiamente, em 1912.
A história é similar se olharmos para o desenvolvimento institucional. Nos primeiros estágios do seu desenvolvimento, os países hoje desenvolvidos não tinham sequer as ditas instituições "básicas" como funcionalismo público profissional, banco central ou lei de patentes (como já dito). Foi somente após a Lei Pendleton em 1883 que o governo federal dos EUA começou a recrutar empregados através de processos seletivos. O banco central, uma instituição tão querida aos economistas do livre mercado de hoje, sequer existia nos países mais ricos até o começo do século 20 - não apenas por causa da condenação dos economistas do livre mercado da época, que diziam ser um mecanismo que injustamente assegurava pagamentos de emprestadores imprudentes. O banco central dos EUA (Federal Reserve Board) foi estabelecido apenas em 1913 enquanto o italiano não tinha sequer o monopólio para emissão de cédulas até 1926. Muitos países permitiam o patenteamento de invenções estrangeiras até o fim do século 19. Como já mencionado, a Suíça e Holanda se recusavam a introduzir uma lei de patentes apesar da pressão internacional até 1907 e 1912, respectivamente, o que, conseqüentemente, permitia livremente o "roubo" de tecnologias estrangeiras. Os exemplos poderiam seguir adiante.
Uma conclusão importante que podemos extrair da história do desenvolvimento institucional é que foram anos para que os países atualmente ricos adotassem as medidas que sugerem. Instituições geralmente levam décadas, algumas vezes, gerações para se desenvolverem. Apenas para dar um exemplo, a necessidade de um banco central foi considerada em alguns círculos no século 17, mas o primeiro "verdadeiro" banco central, o Banco da Inglaterra, foi instituído apenas em 1844, cerca de dois séculos depois.
Outro ponto importante é que, nos primórdios, o nível do desenvolvimento institucional dos países hoje desenvolvidos, era muito inferior se comparado com o nível dos hoje países em desenvolvimento. Por exemplo, medido pelo (aceito como altamente imperfeito) nível de renda, o Reino Unido em 1820 era pouca coisa melhor que a Índia de hoje. E pior: não tinha muitas das instituições mais "básicas" que a Índia tem hoje. A Inglaterra não tinha, por exemplo, sufrágio universal (nem mesmo sufrágio universal masculino), um banco central, imposto sobre renda, responsabilidade pública, uma legislação generalizada de falência e mesmo mínima normatividade trabalhista (exceto por algumas reduzidas e nunca observadas leis regulando o trabalho infantil).
Se as políticas e instituições que hoje os países ricos estão recomendando para os países pobres não são as mesmas que eles mesmos usaram quando estavam em igual condição, o que está acontecendo? Nós só podemos concluir que os países ricos estão chutando a escada que os permitiu alcançar as posições que hoje ocupam. Não é coincidência que o desenvolvimento econômico se tornou mais difícil nas últimas duas décadas quando os países atualmente desenvolvidos começaram a pressionar os países em desenvolvimento para adotar o chamado "padrão global" de políticas e instituições.
Durante este período, a média de crescimento econômico per capita anual para os países em desenvolvimento reduzida à metade: de 3% nas duas décadas anteriores (1960-1980) para 1.5%. Em particular, a América Latina virtualmente parou de crescer enquanto a África Subsaariana e a maioria dos países do antigo bloco soviético têm experimentado uma queda na renda absoluta. Instabilidade econômica vem se acentuando notadamente como provam as dúzias de crises financeiras que temos testemunhado na última década sozinha. A desigualdade de renda também cresceu em muitos dos países em desenvolvimento, assim como a pobreza, que ao invés de se reduzir, tem se aumentado em número significante de países.
O que pode ser feito para mudar isto?
Primeiramente, os fatos históricos que evidenciam as experiências dos países desenvolvidos deveriam ser largamente divulgados. Não é apenas uma questão de aprender a "verdadeira história", mas de permitir que os países em desenvolvimento possam tomar decisões amparadas em mais informações.
Posteriormente, as condicionantes impostas como requisitos para a assistência financeira bilateral ou multilateral precisam ser radicalmente alterados. Deve ser aceito que o receituário ortodoxo não está funcionando e que não pode haver "melhores práticas" a serem seguidas igualmente por todos.
Terceiro, as regras da Organização Mundial do Comércio deveriam ser reescritas de modo que os países em desenvolvimento possam mais ativamente usar tarifas e subsídios para seu próprio desenvolvimento industrial. Eles deveriam ser autorizados a adotarem leis menos estritas de patentes e propriedade intelectual.
Quarto, devem ser encorajadas melhorias nas instituições, mas isto não pode ser aceito como sendo a imposição de um conjunto fixo e pré-determinado de instituições em todos os países (instituições hoje inspiradas no modelo anglo-americano, fato que não encontra bases no passado). Atenção especial deve ser tomada para não se exigir uma excessivamente rápida transformação institucional nos países em desenvolvimento, especialmente dado que (1) alguns destes países já têm estas instituições consideravelmente maduras quando comparadas com as dos países hoje desenvolvidos em seus estágios iniciais de crescimento e (2) que são altamente custosos o estabelecimento e manutenção de novas instituições.
Ao se permitir a adoção de políticas e instituições que são mais adequadas às suas reais condições, espera-se que os países em desenvolvimento terão a oportunidade de se desenvolverem mais rapidamente. Isto irá também beneficiar os países desenvolvidos em longo termo, uma vez que ampliará suas oportunidades de mercado e investimento. Esta questão, de que os países desenvolvidos não consigam enxergar estes fatos, é a tragédia do nosso tempo.

Ha-Joon Chang é professor na Faculdade de Economia da Universidade de Cambridge, no Reino Unido

sexta-feira, 5 de junho de 2009

A DONZELA QUE SE LIVROU DOS ÍNCUBOS

Assim que o papa Inocêncio VIII, na sua bula de 1484, autorizou à acusação, tortura e execução de todas as “bruxas” da Europa, os inquisidores Kramer e Sprenger, colocaram em prática, através das regras do “Malleus malificarum”, a mais impiedosa perseguição as mulheres acusadas de copularem com o demônio. Na Grã-Bretanha, os caçadores de bruxas, chamados de “alfinetadores” eram premiados para cada mulher ou menina que entregavam para execução. Imaginem vocês, moças do século 21, se estivessem sujeitas a tais acusações. O que fariam?
Em 1765, uma jovem salvou-se contando a seguinte história, nas palavras do próprio inquisidor “Num dia de festa, uma jovem, virgem devota, foi chamada por uma bruxa velha a acompanhá-la até sua casa. Num dos quartos do andar de cima estavam reunidos alguns jovens belos. A bruxa insistiu para que subisse. A virgem consentiu. E, enquanto subiam as escadas, a velha, que ia a frente, advertiu-lhe para que não fizesse o Sinal-da-Cruz. Embora a moça concordasse, benzeu-se sem que a velha visse. Pois que ao entrarem no quarto, ninguém havia: os demônios que lá se encontravam eram incapazes de se mostrar nas suas formas criaturais. A velha voltou-se então para ela, repreendendo-a – Vai embora em nome de todos os demônios! Por que te benzeste? – este foi o relato que obtive daquela boa e honesta donzela”.
Podemos presumir que superamos estes condicionantes religiosos, ou ainda guardamos no inconsciente o mal-estar de sentirmos impuros? Por que ainda fingimos que os relacionamentos humanos se estabelecem sem considerar a sexualidade um elemento primordial? As justificativas dos inquisidores para acusar mulheres supostamente possuídas pelo demônio, estavam assentadas em elementos misóginos e eróticos, próprios de uma sociedade sexualmente reprimida e dominada pelos homens. Não por acaso, os juízes vingadores eram, na sua maioria, padres supostamente puritanos e celibatários, que transformavam suas próprias frustrações em delírios religiosos. Nos julgamentos sumários efetuados pela Santa Inquisição, eram discutidas até a exaustão a quantidade e qualidade dos supostos orgasmos que as mulheres acusadas tiveram com os demônios, chamados de “Íncubos, que as contaminavam com seus atos obscenos e as distanciavam da verdadeira santidade”. Que dureza, não?
Para consolo das damas, de modo a não se sentirem culpadas, a crença em lucíferes era difundida muito antes da Inquisição. Sócrates dizia que sua inspiração filosófica era resultado de um demônio pessoal e benigno, e acrescentava: “todo o demoníaco é intermediário entre Deus e os mortais” e continuava “só por meio do demoníaco é que se estabelecem as relações entre os homens e os deuses”. Talvez seja esse o segredo de porque as mulheres preferem os expertos aos bobos.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

sexta-feira, 29 de maio de 2009

SANTO AGOSTINHO E O UNIVERSO

O cientista Stephen Hawking conta que, numa conferência sobre astronomia, o palestrante estava descrevendo como a Terra gira em torno do Sol, e como este gira em torno do centro de uma imensa galáxia de características quase infinitas. No final da conferência, uma senhora baixinha e idosa levantou-se, falando em voz alta:
“O que o senhor acaba de nos dizer é tolice. O mundo, na verdade, é um objeto achatado, apoiado nas costas de uma tartaruga gigante”.
O conferencista imediatamente replicou: “E sobre o que se apóia a tartaruga?”
“Você é muito experto, rapaz, muito experto” – dize a velinha – “mas existem tartarugas marinhas por toda a extensão embaixo dela”.
Apesar de esta história ser relativamente recente, a preocupação com a configuração do universo vem sendo discutida há muito tempo. O filósofo grego Aristóteles, 340 anos antes de Cristo, já argumentava a ideia de que a Terra era uma esfera e não um corpo achatado. É claro que após ele, surgiram infinidades de teorias etnocêntricas, principalmente para justificar a posição geográfica que o ser humano, feito a imagem e semelhança com Deus, ocupava como figura central do universo. Tal modelo foi adotado pela Igreja Católica porque correspondia às descrições bíblicas, além de dar espaço suficiente, fora da esfera das estrelas, a visão maniqueísta do céu e o inferno. Nada melhor que uma explicação simples e valorativa para tranqüilizar os fiéis tementes de Deus.
Entretanto, o mais interessante desta história do pensamento humano, é aquela que se refere ao começo de tudo. Na tradição judaico-cristão-muçulmana, o universo tem sua origem num passado recente por meio de uma “causa inicial”. Santo Agostinho, em seu livro “A cidade de Deus”, sustentava que a data da criação do universo era de 5000 anos antes de Cristo, conforme o livro do Gênesis. Contrariamente, Aristóteles não concordava com a teoria da criação, porque achava que ela continha índicos de intervenção divina. O filósofo Immanuel Kant no seu trabalho “Crítica da razão pura”, questionava que o conceito do tempo não tinha sentido antes do começo do universo, já que, se por acaso, tivesse surgido a partir de um tempo infinito antes dele, porque deveria ser criado num momento particular?
Nessa espetacular luta de conceitos, Santo Agostinho, pela primeira vez, especulou sobre: “O que Deus fazia antes de criar o universo?”. Muitos dirão que Jeová, na sua onipotência, seria capaz de criar tudo em qualquer instante. A pergunta a esse interrogante seria: Por que Ele faria isso escolhendo leis conhecidas e demonstradas pela ciência, e não de forma arbitrária? Será que vivemos num mundo culturalmente formatado, no qual, o apego doentio ao sobrenatural, serve para acalmar a falta de conhecimento da realidade concreta dos fenômenos da física, tal qual aquela velinha?
Victor Alberto Danich
Sociólogo

sexta-feira, 22 de maio de 2009

A TRANSFORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA

Qualquer atividade intelectual torna-se estimulante a partir do momento em que se transforma numa rota de descoberta. Em alguns campos do conhecimento, tais condicionantes são precedidos pelo insólito de descobrir fatos anteriormente impensados ou impensáveis. Nesse sentido, a realidade social apresenta-se como possuidora de muitos níveis de significado, e a descoberta de cada novo nível modifica a percepção de todo, e essa perspectiva nos leva a ver sob nova luz o próprio mundo em que todos co-existimos. Isso significa também uma transformação súbita da consciência. No entanto, as pessoas que preferem evitar descobertas chocantes, acreditando que a sociedade é exatamente aquilo que aprenderam na escola, de modo a proteger-se na segurança das regras, satisfazendo-se apenas com suas próprias construções conceituais, nunca poderão participar da paixão de questionar “um mundo aceito sem discussão”. O fato de perguntar-nos porque devemos estar interessados em olhar além das ações humanas comumente aceitas ou oficialmente definidas, pressupõe certa consciência de que aquelas ações possuem diferentes níveis de significado, alguns dos quais ocultos à percepção do cotidiano. Não querer aceitar tais condicionantes, é resultado do próprio mal-estar que significa não entender as diversas representações da realidade.
O que significa isso? Que a própria natureza humana torna-se um artifício destituído de liberdade. Uma pessoa passa a criar fantasias dentro de um mundo mitológico em que todos os seres humanos estão presos as suas próprias designações sociais. A sociedade proporciona ao indivíduo um gigantesco mecanismo através do qual ele pode ocultar a si mesmo sua própria liberdade. Somos seres sociais e nossa existência está vinculada a localizações sociais específicas. Se por alguma razão, alguém atua fora desses padrões, à punição surge imediatamente. A própria organização social, criada e reforçada por nós mesmos, está presente para lembrar-nos com suas sanções. Quaisquer que sejam nossas possibilidades de liberdade, ela não se concretizará se continuarmos a pressupor que o “mundo aprovado” da sociedade seja o único que existe, além de desestimular-nos da possibilidade de qualquer mudança na procura de novos valores ou significantes sociais.
Tanto é assim, que as nossas identidades são atribuídas pela sociedade. É necessário ainda que a sociedade as sustente com regularidade, de modo que nossas vidas se desenrolem dentro de uma complexa trama de reconhecimentos e não-reconhecimentos. Somos reféns do nosso comportamento, porque todo ato de ligação social resulta numa escolha de identidade. Na sua simplicidade filosófica, o homem do campo acrescentaria: “os pássaros da mesma plumagem vivem juntos não por luxo, mas por necessidade”
Victor Alberto Danich - Sociólogo

SÍMBOLOS E CARROS

Quando era criança, sonhava em ter um carro para desmontá-lo inteiro. Fantasiava com possuir os melhores automóveis e, como não podia, os desenhava para logo fabricá-los com epóxi em pequena escala. Quando fui ficando adulto, comecei a descobrir o significado dos símbolos, e assim perdi o que restava da minha inocência. Atualmente, todo estilo de vida está pautado em sistemas de status com forte apelo à mobilidade social, de modo a colocar os símbolos numa perspectiva adequada para todos. Nesse caso, a aquisição de um automóvel é considerada crucial para viver a possibilidade da posse de um símbolo. O carro, como símbolo de status social ou elemento de consumo, cumpre a função onírica de criar, tanto para os adultos como para os adolescentes, um novo mundo sustentado na percepção de um sujeito sem limitações. Este é o entrave psicológico mais difícil de superar para organizar o mundo automobilístico. Do ponto de vista psicanalítico, a mais significativa função do automóvel é expressar poder e agressividade. Leva o sujeito a idéia da supremacia sobre os outros, num processo de subestimação inconsciente por aqueles que não fazem parte desse imaginário. Deve-se lembrar com isto, a eterna luta entre automobilistas, motociclistas e pedestres.
A razão principal das atitudes de desdém e subestimação é o que se constitui no símbolo de status mais específico e transcendental da sociedade contemporânea. A qualidade expressa na divulgação das características de beleza e potência dos carros atuais, dizem às claras os componentes de agressividade e poder que o veículo transmite para o sujeito. A velocidade, o acelerador, os cavalos de força, as estradas, permitem descarregar os impulsos agressivos, os sentimentos de fuga, que significam poder circular sem obstáculos e sem limitações.
Os novos automóveis conseguiram levar estes instintos até a perfeição. Lograram alcançar altas velocidades, dando a sensação de superação dos limites, apesar de que na maioria das estradas não é permitido mais do que 110 km por hora. Nesse caso, a satisfação torna-se mais onírica que real, no sentido de saber que existe a possibilidade de exceder-se enquanto se estiver livre de punições. O carro novo gratifica o Eu com uma forte dose de dominação. Um carro de muitos cavalos de força dá ao condutor maior potência e masculinidade. A “potência mecânica” é incorporada na personalidade do sujeito, que se insinua através da necessidade de experimentar o poder de um mundo sem regras nem limitações. Resulta constrangedor perceber que somos submetidos inconscientemente aos desejos dos instintos, negligenciado, dessa forma, a lógica do coletivo em favor do logro individual.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

quarta-feira, 6 de maio de 2009

O DIÁLOGO DE GALILEU

Como você se sentiria se fizesse uma descoberta abrumadora e ninguém acreditasse? E se estivesse sujeito a ser excomungado por causa de sua certeza? Nesse caso, seria capaz de sustentar a veracidade de suas experiências perante aqueles que pautavam suas crenças em função de dogmas explícitos? O conflito entre ciência e religião no contexto histórico da primeira metade do século XVII, no qual se desenvolveu a batalha entre Galileu e a Igreja católica, que acabou na condenação do mesmo pelo Santo Ofício em 1633, não foi apenas produto da negação do modelo geocêntrico do cosmo, senão de questões ideológicas envolvendo a teologia cristã, cruciais para a sobrevivência da supremacia medieval da Igreja, fundamentada principalmente numa visão aristotélica do mundo.
O concílio de Trento (1545-1563) se encarregou de não permitir qualquer interpretação da Bíblia diferente da oficial, o que provocou entre outras tantas, a execução na fogueira do filósofo Giordano Bruno, por suas dúvidas com referência a interpretações teológicas da substancialidade da alma humana e seu apoio as idéias de Copérnico.
No entanto, os diabólicos verdugos da Santa Inquisição podiam fazer uso de juízos de valores pessoais na interpretação da passagem do Livro de Josué: “...porque se fosse permitido aos espíritos malignos alterar a influência dos corpos celestes sobre o universo, a ordem geral e o bem comum sofreriam sério prejuízo. Pelo que as alterações astrais encontradas no antigo e no Novo Testamento foram causadas por Deus, por exemplo, quando o sol ficou parado para Josué, o foi encoberto, de forma sobrenatural, na Paixão de Cristo. Mas, em todos os demais fenômenos, os demônios são capazes de interferir, com a permissão de Deus, seja por conta própria, seja por intermédio de bruxas....”.
É justamente nesse contexto histórico-cultural que Galileu lançou-se na sua batalha contra o modelo ptolomaico do Universo. Motivado por uma grande ambição pessoal, convicto do apoio de seu grande admirador, o papa Urbano VIII, publica em 1632 as primeiras cópias do “Diálogo”, iniciando assim um desafio aberto contra a hegemonia da Igreja, num momento de pleno poder da inquisição religiosa, que terminou no famoso episódio de sua sentença. O “Diálogo” foi proibido, e Galileu, num ato de perversa humilhação, foi obrigado a abjurar as idéias de Copérnico (que a Terra gira em torno do Sol), sendo condenado a prisão domiciliar no resto de sua vida, repetindo diariamente durante três anos sete salmos penitenciais, recitados por sua filha Maria Celeste, freira carmelita. Apenas em 1992, 360 anos depois, e a 23 de o homem pisar na lua, numa lenta peregrinação escolástica, o papa João Paulo II revoga oficialmente a condenação de Galileu pela Igreja.
Victor Alberto Danich - Sociólogo

OS BASTIDORES DA ECONOMIA DE MERCADO

Quando Friedrich Hayek, um dos ideólogos do liberalismo econômico da Escola de Chicago, visitou o Chile em 1981, ficou maravilhado com a política neoliberal implantada por Augusto Pinochet naquele país. Ao regressar à terra de Ronald Reagan, imediatamente sentou-se a escrever uma carta para sua amiga Margareth Thatcher, primeira ministra da Inglaterra. Nela sugeria que deveria usar como modelo a ditadura chilena para transformar a economia de bem-estar britânica. Devemos lembrar que Thatcher e Pinochet mantiveram durante muito tempo uma sólida amizade, principalmente quando este se encontrava sob arresto domiciliar na Inglaterra, acusado de genocídio, tortura e terrorismo de estado.
A “dama de ferro” estava profundamente convencida com o “êxito fantástico da economia chilena” acrescentando publicamente que: “tal política era um impactante exemplo de reforma econômica da qual poder-se-ia tirar bons exemplos”. Como de costume, nos bastidores da política as coisas são bem diferentes. Apesar da admiração que a Thatcher tinha por Pinochet, quando Hayek sugeriu que fosse aplicada a mesma metodologia de política econômica imposta no Chile, a ministra teve que dar uma freada a tais pretensões. Em fevereiro de 1982, a Thatcher respondeu sem rodeios ao seu interlocutor monetarista numa carta privada: “Tenho certeza que o senhor entenderá que, na Inglaterra, de acordo com nossas instituições democráticas, além da necessidade de um alto nível de consenso, algumas das medidas adotadas no Chile são totalmente inaceitáveis. Nossas reformas devem ser adotadas conforme as tradições e a Constituição do nosso país”
A conclusão da primeira ministra era que, numa democracia como o Reino Unido, seria impossível executar uma política econômica ao estilo da preconizada pela Escola de Chicago. Para Hayek e seu comparsa Milton Friedman, aquele balde de água fria foi uma decepção. As políticas econômicas desenvolvidas e apoiadas pelas ditaduras militares no Cone Sul, tiveram como resultado ganâncias exuberantes para alguns pequenos grupos, dando oportunidade para a abertura de novas “fronteiras a serem manufaturadas” pelas empresas transnacionais, na procura incessante de transferir os ativos e recursos públicos para mãos privadas.
Numa coisa o economista Milton Friedman acertou de cheio, sem perceber quão proféticas seriam suas palavras: “Só uma crise – real ou percebida como tal – produz uma verdadeira mudança. Quando ocorrem estas crises, as ações que se empreendem dependem das ideias existentes naquele momento” E parece ser verdade mesmo, o modelo neoliberal de livre mercado está sendo remodelado através de uma nova configuração mundial, baseado, talvez, no restabelecimento de alternativas econômicas democráticas e solidárias.
Prof. Victor Alberto Danich
Sociólogo