Quando o sociólogo Max Weber (1864-1920) analisou as diferentes sociedades do mundo ocidental e outras civilizações, principalmente as orientais, onde nada similar ao capitalismo tinha surgido, verificou que “qualquer observação da estatística ocupacional de um país de composição religiosa mista, traz à luz com notável freqüência, um fenômeno que já tem provocado repetidas discussões sobre o fato de os líderes do mundo dos negócios e proprietários do capital, assim como o pessoal técnico e comercialmente especializados, serem preponderantemente protestantes”. A partir dessa questão, Weber passou a investigar os elementos dessas crenças a fim de decifrar o “espírito do capitalismo” que, segundo ele, estava constituído por uma ética peculiar, cujo exemplo clássico foram os discursos de Benjamin Franklin, que representavam a mentalidade pequeno-burguesa dos colonos americanos, quando afirmava que “ganhar dinheiro dentro da ordem econômica moderna é, enquanto for feito legalmente, o resultado e a expressão da virtude e da eficiência de uma vocação”. Essa concepção significava a racionalização do mundo, eliminando assim o pensamento mágico como meio de salvação, e, portanto, a concretização do isolamento espiritual do indivíduo em relação a seu Deus particular.
Relacionando as idéias religiosas fundamentais do protestantismo com as máximas da vida econômica capitalista, Weber analisa pontos cruciais da ética calvinista baseada na afirmação de que “o trabalho constitui, antes de tudo, a própria finalidade da vida”. Os puritanos, por outro lado, sustentavam que “a vida profissional do homem é que lhe dá uma prova de seu estado de graça para a sua consciência, que se expressa no zelo e no método, fazendo com que ele consiga cumprir sua vocação”. Com esses exemplos, Weber demonstrava que o ascetismo secular do protestantismo terminava “libertando psicologicamente a aquisição de bens da ética tradicional, rompendo os grilhões da ânsia de lucro, com o que não apenas a legalizou, como também a considerou como diretamente desejada por Deus”. De certa forma, este pensador, apesar de elaborar uma verdadeira teoria geral capaz de confrontar-se com a de Marx, termina confirmando um dos pilares do pensamento marxista, que sustenta que qualquer fenômeno social, político, religioso ou jurídico não se explica por si próprio, senão que está, em última instância, sujeito à infra-estrutura econômica que rege, sem ser percebido, o destino da superestrutura ideológica. Atualmente resulta penoso ver sendo encontradas malas cheias de dinheiro encaminhadas para um jatinho particular, produto da banalização religiosa operada por seitas, que encontram no “estelionato espiritual” sua maior fonte de riqueza. Na contramão da moral, usa-se o nome de um suposto ser sobrenatural, considerado filho de Deus, para dimensionar uma história que é feita por concepções transmitidas e legadas pelo passado, produto de resíduos mentais de ensinamentos religiosos neuróticos, ou melhor, ainda, de uma maneira perversamente dogmática, tão bem questionada num cartaz escrito no primeiro de maio de 1920, pelos trabalhadores russos quando ainda estavam em guerra civil, que dizia “A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”.
Num mundo dominado por teorias que colocam o Estado como coadjuvante da economia de mercado, o aparelho da legitimação e justificação da dominação abarca a ideologia e a política. Historicamente, no processo de constituição das sociedades nacionais dependentes, as oligarquias que foram entrelaçando seus interesses ao modelo liberal, desenvolveram uma consciência alienada sujeita aos moldes ideológicos e culturais, tanto da Europa como dos Estados Unidos. Para esses grupos oligárquicos, a Nação era algo que devia constituir-se conforme o modelo político daqueles países, centrado numa visão alienada e impregnada de uma vocação hegemônica, pautada numa concepção formal e vergonhosa de soberania territorial.
O atual modelo neoliberal criou uma nova burguesia apátrida, que se expressa não apenas como uma consciência alienada, senão como a exteriorização da mesma em diferentes formas de exploração. Os membros desta “burguesia gerencial” excluíram toda idéia de soberania e de Nação. Sua ideologia parte da multiplicação e da maximização do lucro a qualquer preço. Sua pátria é a sociedade dos negócios que operam indistintamente tanto na América como na Ásia, cuja visão de futuro é a eficácia traduzida em bons dividendos e “choques de gestão”, no qual todo sentimento humano ou toda dimensão da vida real dos povos ou das pessoas se dissolve em função da produtividade. São tecnocratas, administradores, investigadores de mercado, racionalizadores e especuladores, que ligam seu próprio destino aos grandes mercados e as transações globais.
Cidadãos do dinheiro, não estão alienados ao modelo dos centros hegemônicos, senão que são a própria ideologia da eficiência monopólica aplicadas a todo tipo de sociedade, mimetizando sua profissão em qualquer região geográfica, com outro idioma e com outra gente. Nesta nova realidade, a consciência alienada se traslada aos explorados, e os setores oligárquicos começam a ser deslocados pela burguesia gerencial que, ao seduzi-los pelo “canto da sereia” liberal, procuram seguir participando de alguma forma, muitas vezes humilhante, do sistema explorador.
A classe média “pequeno burguesa” que se encontra no meio do caminho dos setores mais explorados da sociedade e daqueles que possibilitam essa exploração, pendura entre a consciência alienada e os valores de seu próprio povo, por um lado submetida ao modelo dominador, e por outro, na procura ideológica de uma inserção no destino comum da nação despojada.
Na sociedade da opressão, as classes dominantes tendem a ligar os sistemas de poder a mecanismos ideológicos e culturais que, indistintamente, procuram homogeneizar a consciência dominadora, legalizando-a e justificando-a como se fosse um fato natural os sistemas de poder. No entanto, a consciência popular, articulada na luta permanente e dolorosa contra a ruptura de sua identidade, deve ter o apoio incondicional e solidário dos intelectuais comprometidos com formas superiores e pragmáticas da verdadeira democracia, que permita, sem condicionantes, uma saída coletiva de igualdade e dignidade para todos.
A revolução tecnológica dos anos 90 enterrou de vez os conceitos de “dependência”, “países periféricos” e outras designações que permearam o estudo das ciências sociais por varias décadas. A justificativa para eliminar tais conceitos foi a euforia ideológica dos novos gurus da globalização, que diziam que tais idéias tinham perdido sua operacionalidade, já que careciam de fundamentos para entender a nova realidade econômica. As brutais disparidades entre países foram disfarçadas por um discurso global que tentava impor a imagem de um planeta supermoderno, ligado por redes inter-relacionadas, longe do controle público e dominado por grupos econômicos transnacionais.
A revolução da informática parecia ser o catalisador destas mudanças em andamento. A melhora e a difusão de uma grande variedade de meios de comunicação, foram apresentadas como o instrumento fundamental para a disseminação social e cultural rumo à democratização global, livre das prisões das fronteiras estatais.
O declínio dos preços e a maior eficiência nas comunicações telefônicas, criaram a ilusão de um mundo no qual a grande maioria dos seres humanos poderia, num futuro próximo, estar interconectados definitivamente. O argumento paraessa possibilidade se concretizar é o barateamento das comunicações telefônicas. Em menos de sete décadas o custo das ligações entre Londres e nova York caiu de 300 para 1 em patamares reais. Todos os processos de informação acompanharam essa tendência, tendo como resultado o desenvolvimento generalizado da informatização nas sociedades do primeiro mundo e nos setores ricos da periferia.
Entretanto, se observamos os “Indicadores de Desenvolvimento Mundial” (Banco Mundial, 1998), vemos que os países considerados de alta renda, com apenas 16% da população mundial, concentram 65% das linhas telefônicas, enquanto os países de baixa renda, que contam com 56% da população mundial, possuem 11% dessas linhas. O mais atordoante é que, se excluímos a China e a Índia do conjunto dos países considerados pobres, verificamos que 1 bilhão de habitantes dispõem de somente 1,5% das linhas (11 linhas telefônicas por 1000pessoas), enquanto os habitantes dos países mais ricos contam com 50% das linhas do mundo todo (565 linhas telefônicas por 1.000 pessoas).
As poucas linhas telefônicas existentes proporcionam um serviço extremamente caro para os habitantes dos países pobres; ao tempo que as pessoas do Primeiro Mundo gozam de comunicações sumamente econômicas. Três minutos de comunicação local nas nações de “alta renda” equivalem a menos de 0,2% do ganho diário por habitante. Em contrapartida, para os países pobres, tal ligação representa 7% da renda diária por habitante; e se excluirmos novamente a China e a Índia deste grupo, o número aumenta para 11%. Para os habitantes dos países de “alta renda”, uma chamada telefônica para os Estados unidos é 176 vezes mais barata do que um país de “baixa renda”, ou 285 vezes mais barata se excluirmos a China e a Índia.
Após quase quatro anos de privatização das telecomunicações no Brasil, problemas similares se repetem de forma dramática no país. Ainda persistem os antigos contratempos no novo modelo de prestação de serviço público essencial (telefonia fixa) agravados com a alta de preços das tarifas, que continuam de forma desenfreada. A partir do início doprocesso de privatização (até meados de julho de 1998), o valor da assinatura residencial cresceumais de 2500%. Segundo o Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC), em 1996 uma assinatura custava R$0,62 centavos e atualmente custa R$26,58. Em julho de 1998, quando o sistema Telebrás foi vendido, a assinatura residencialcustava R$ 13,28 subindo até atingir o patamar de 42,5%, sendo que o INPC do período teve apenas uma variação de 15%. Por outro lado, o aparecimento das inovações tecnológicas, produto de uma modernização reflexa e deformada, agravou as desigualdades regionais. As empresas dos países ricos dispõem de grandes vantagens tecnológicas que lhes permite substituir as dos países pobres, provocando com isso perdas de empregos e esvaziamento de renda. Como seisso não bastasse, as empresas de telecomunicações transnacionais, na sua voracidade ilimitada, tentam recuperar seus investimentos iniciais através de uma política de preços perversa, contrária a qualquer tipo de racionalidade econômica. O país termina pagando umpreço muito alto por uma tecnologia que não acrescenta nada ao desenvolvimento autônomo da nação, e porque a difusão indiscriminada dessas novas tecnologias provocaum desmantelamento e desnacionalização da indústria nacional, no qual o povo mais pobre, como sempre, termina sendo o fiel depositário do círculo vicioso do subdesenvolvimento.
Na década de 1990 surgiu a ilusão de que haveria um processo geral de bem-estar planetário, do qual todas as pessoas seriam seus beneficiários diretos, graças à livre concorrência global. A modernização reflexa levou infinidades de pessoas a carregar celulares em seus bolsos sem saberem qual é sua verdadeira utilidade, principalmente quando são mostrados apenas como signo de “status” e não como ferramentas de trabalho.
É patético ver como nosso povo é induzido a consumir produtos caros e supérfluos, enquanto a verdadeiras necessidades do país são displicentemente esquecidas.
Chegar num churrasco de empresários, de moto e com uma camiseta do Che Guevara pode provocar tal desaprovação a ponto de criar mal-estar em algumas pessoas, que atônitas, não chegam a compreender semelhante ato falho. Outras, mais pragmáticas, tentam conter um sorriso de desdém, como se estivessem olhando para um excêntrico. Alguns, ajustados ao mundo racional do mercado esboçam uma alternativa para aquela imagem, por exemplo, a de Adam Smith, que seria a figura mais conveniente, do ponto de vista ideológico, ao modelo neo-liberal que predomina na atualidade. Não poderia ser de outra forma, já que neste início de século foram decretados pelos economistas políticos, o fim das ideologias e o triunfo do capitalismo. Na sociedade capitalista, a passividade do pensamento acrítico é o princípio da ordem. A sua reprodução histórica depende disso. Para tanto, os representantes da ideologia liberal usam o conceito da “mão invisível” para aliar a lógica do mercado às virtudes conservadoras da sociedade burguesa. Smith dizia que os homens devem ser ferozes na concorrência e humildes perante Deus. O sucesso dessa fórmula estaria no cruzamento do altruísmo e egoísmo, no cuidado meticuloso do cálculo dos custos e benefícios e na prática permanente da moralidade religiosa. Numa imagem que faz de si próprio, o ocidente cristão configura-se como um mundo livre, racional e democrático, sem pretensões totalitárias ou populistas, no qual, todo indivíduo possui o direito de obter a felicidade a partir de seus próprios interesses particulares. Nesse contexto, o fundamentalismo liberal afirma de modo incoerente que o objetivo da produção é atender a falta de bens da população. Entretanto, a verdade é que a produção moderna está focada na maximização do lucro privado, no qual os bens produzidos devem render mais dinheiro do que os custos produtivos. Nada disso está direcionado para cobrir as necessidades sociais, apenas serve para dar sustentabilidade à empresa num sistema de concorrência. Smith, em seu livro “A Riqueza das Nações” já tinha percebido esse fenômeno quando dizia “O interesse dos empresários por qualquer ramo de comércio ou indústria é sempre, em alguns aspectos, diferente e até mesmo oposto aos interesses do povo. Seu interesse é sempre diminuir a concorrência, e só poderá servir para permitir, ao aumentar seus lucros, cobrir, em proveito próprio, um imposto absurdo do resto de seus concidadãos”. Nada mais esclarecedor para dimensionar ideologicamente um pensador que tanto fez para institucionalizar um sistema econômico que hoje predomina sem questionamentos. A estampa do Che Guevara numa camiseta, além de seu conteúdo banalizado pela propaganda inconseqüente, tem a característica, para aqueles que viveram a experiência da convergência da cultura e a política, de perceberem que o poder também pode existir em outros âmbitos da sociedade. O Che foi o emblema da revolta cultural, que permitiu sonhar com a capacidade de resistir ao domínio de classe, de duvidar de sua legitimidade, de contestar sua perpetuação. Nada tem de subversivo andar de moto com uma camiseta com a imagem do Che. Ela está destinada a resgatar os símbolos infiltrados no inconsciente da sociedade, como práxis cultural, muito longe daqueles que pautaram sua vida em ícones pecuniários como meta para sua existência terrena.
Gostaria de encaminhar minha crítica diretamente ao senhor, de modo a explicitar meu desconforto com referência ao desastroso especial sobre o Comandante Ernesto Che Guevara. Comentários de tal natureza, por parte dos autores, de extrema parcialidade e fragmentação histórica, só conseguem reforçar a imagem de um mito universal como é a figura do Che, ícone cultural que representa a síntese dramática de uma época em que a alternativa revolucionária era imaginada como o caminho para uma sociedade diferente, livre do imperialismo colonial que grande parte da humanidade estava padecendo. Talvez porque os símbolos atuais são tão diferentes daqueles que o Che viveu e pelos quais morreu, que hoje parecem sem conteúdo, e são reproduzidos num especial copiado, sem qualquer esforço de pesquisa ampla e imparcial, a partir de um vídeo anticastrista editado nos Estados Unidos, mas que ressuscita, através da desqualificação de um mito, os apavorantes fantasmas internos daqueles que passam a vida atormentados na defesa de seus interesses pecuniários. Tanto é verdade, que existe uma diferença brutal de conteúdo no especial de Dorrit Harazim, publicado na revista Veja da edição 1503 do dia 09/07/1997 com o título “O triunfo final de Che” e a publicação atual, assustada com o surgimento de novas revoltas populares. Nesse caso, o que tal matéria explicitava naquela época? Não era um especial simpático ao Che, já que a direção da revista, conhecida pelo seu conservadorismo, nunca permitiria publicar, e sim como aviso de que com a “busca de seus ossos, ressurgem as idéias e as aventuras do guerrilheiro mitológico”. O destino social da figura do Che no inconsciente coletivo de grande parte da humanidade não pode ser desautorizado por um “especial de pasquim”, destinado a obscurecer os triunfos intelectuais acentuando as falhas do homem de carne e osso. Qual o motivo para publicar um suposto “pedido de misericórdia” e não imaginar que qualquer ser humano, numa situação dessas, está sujeito a negociar a rendição? Porque não ressaltar que, perante a morte evidente, o comandante Guevara se levantou desafiando seu assassino, conforme o relatório secreto do exército norte-americano do dia 28 de novembro de 1967, que diz: “Ouvindo os tiros, pela primeira vez Che pareceu apavorado. Ao ver Teran entrar de novo o prisioneiro se levantou mais uma vez para enfrentá-lo, Teran mandou que ficasse sentado, mas Guevara respondeu – Agora quero ficar de pé. Enfurecido, o sargento o intimou para que se sentasse. Mas Che perdeu a calma – Saiba que está matando um homem”.
Resulta muito interessante que os senhores Diogo Schelp e Duda Teixeira tenham dado tanto ênfase ao tema da freqüência do banho e do cheiro do Che. Tal comentário possui uma conotação freudiana, própria de uma sublimação de gênero muito estranha, dir-se-ia duvidosa, que tem a capacidade de imaginar a existência de um guerrilheiro perfumado. O ato falho dos autores ficou claramente explícito na irrelevância do tema. Também é sumamente tendenciosa a afirmativa de que Guevara tinha uma maníaca necessidade de matar pessoas. Pode-se concordar que os fuzilamentos comandados pelo Che eram desprovidos de um processo respeitoso, mas que devem ser vistos num contexto especial, de ânimos exacerbados perante os excessos dos homens de Batista. Quando a revista cita Huber Matos, esconde que Guevara sugeriu a interposição de uma apelação, depois do julgamento, para que o mesmo não fosse fuzilado. As execuções nunca foram um banho de sangue e, segundo o biógrafo Jorge Castañeda “nem se exterminaram pessoas inocentes em número mesmo minimamente significativo”. A luz das torturas e mortes realizadas pelas ditaduras militares de Pinochet, Videla e outros tantos na América latina, assim como os massacres na África e na Ásia praticados pelas hordas mercenárias e assassinas das potências coloniais, tais acontecimentos significaram pouca coisa. É claro que nada justifica a morte de seres humanos. No entanto, forçar a destruição da imagem de um mito, esgrimindo a desinformação histórica e separando os fatos de maneira fragmentada através da desqualificação dos seus personagens, só serve para levantar a suspeita de interesses espúrios, destinados a desmerecer qualquer iniciativa atual que tenha conotações populares. Nesse caso, vale a pena perguntar, já que a revista cita “o sucesso da máquina de propaganda marxista na elaboração de seu maior e até então intocado mito”, a quem tal publicação serve? Aos interesses do imperialismo cultural, oligárquico e conservador? Ou terá outras motivações desconhecidas do grande público?
Entretanto, perante a linha editorial de extrema-direita capenga da revista, me sugere que não existe nada de mais profundo do que apenas escandalizar os incautos leitores leigos. Tal publicação carece de capacidade conspiratória organizada, já que não sabe muito bem o que publica, apenas está direcionada para atender e configurar o discurso de alguns setores de classes sociais seduzidas pela promessa de mobilidade ascendente, que precisam reforçar suas concepções de desigualdade social como coisas do destino, e não como resultado de ações puramente humanas. Nada melhor do que isso para acalmar o desconforto que significa reconhecer a existência da miséria e da exclusão social, que tal revista, isso sim, esconde com suprema maestria.
Desmerecer o trabalho de Guevara à frente da economia da ilha é uma visão mesquinha de quem só visualiza o sucesso monetário como única saída para o progresso humano. É verdade que o Che, no seu empenho de concretizar desafios inalcançáveis numa economia sitiada e sustentada apenas numa monocultura que era a cana de açúcar, o discurso de desenvolvimento ficou grande parte na retórica. Porém, a revolução alcançou grandes conquistas no campo da educação e da saúde. Os autores não citam nada disso, como também nada dizem dos fatos complicadores do cerco americano, que inviabilizava qualquer sonho de desenvolvimento autônomo. No entanto, na sua grandeza, o Che sempre fez sua autocrítica com referência aos transtornos da economia. É por isso que seus erros não superam a competência administrativa, disciplinada e de esforço particular inestimáveis para um país que vivia o isolamento criminoso de uma potência que se sentia a dona do continente. Também é verdade que a tarefa encomendada ao Che era muito difícil de ser realizada. Sua esperança estava na ajuda da União Soviética e no seu voluntarismo particular. Mas isso não era suficiente, e o Che soube fazer as críticas necessárias aos fracassos econômicos da revolução, assumindo suas responsabilidades. Essa parte de sua vida é suficiente para acabar com o mito? Enganam-se os autores de tal matéria que com isso destruirão a imagem de Ernesto Che Guevara. Ele não foi apenas um dos combatentes que levou a cabo ações militares na Sierra Maestra – em que sua coragem lhe valeu a rápida ascensão a Comandante – senão também um protagonista fundamental de uma década marcada por lutas de descolonização e pela crise da Guerra Fria, que a revista Veja esconde sorrateiramente do público desavisado. Tal época configurou sua conversão em símbolo, uma instância que termina consolidando-se com sua morte na Bolívia. Gostem ou não seus algozes panfletários, sua figura se perpetua através da história dimensionada pela ética revolucionária, pela costumeira rejeição de qualquer tipo de privilégios, por seus escritos e por seus sonhos de um mundo com justiça social.
Tal personificação serve como esperança renovadora perante o fracasso evidente da economia de mercado, configurada como o triunfo do capitalismo, de um mundo globalizado apenas na circulação de dinheiro fácil, concentrador de riqueza, sustentado pelo financeirização da economia, do tráfico de drogas, das armas e da prostituição. É esse o mundo que estamos construindo além dos mitos? Quem são seus autores? Em que paraísos se escondem?
Se os senhores da revista Veja ainda não conseguiram entender porque o rosto do Che foi parar no biquíni de Gisele Bündchen, em pôsteres e camisetas de todo o mundo, então devem começar por reinventar suas identidades, de modo a saber que os anos sessenta, tão novamente atuais neste início de século, marcaram grandes lutas populares e de insurreição cultural. Porque é no campo da cultura que o povo se confronta com a expressão da vontade subjugada, da inteligência alienada, cuja função é reproduzir o despojo mental da dependência cultural, de modo a instrumentalizar a desculturação compulsiva. O mito do Che nasceu nesse tempo, e se perpetua porque a cultura popular não é boba e sempre se revitaliza, renovando-o como um ícone cultural, até para mostrá-lo numa roupa feminina, que tanto afeta a auto-estima quanto a inveja repugnante dos feios deste mundo.