quarta-feira, 29 de julho de 2009

A NAVALHA DE OCCAM

Existem infinidades de situações que acontecem na nossa vida que podem ser resolvidas facilmente. No entanto, o processo cultural ao qual estamos submetidos, leva-nos a comportar-nos, perante qualquer ocorrência inesperada, da maneira mais complexa para tentar resolvê-la. Felizmente, a simplicidade é uma das principais qualidades da ciência, com fora demonstrado por William de Occam, um teólogo franciscano inglês do século XIV, que se tornou famoso por defender com veemência a ideia de que as ordens religiosas não deveriam ter riquezas ou propriedades. Podem imaginar o que aconteceu com ele. Foi excomungado e expulso da Universidade de Oxford, onde lecionava.
Mais sua maior contribuição para a ciência foi ter enunciado a seguinte frase em latim “pluralitas non est ponenda sine necessitate”, que significa que a pluralidade não deve ser proposta sem necessidade. Tal definição estava centrada em que, se existirem duas teorias rivais, ou explicações de igual valor, a mais simples é aquela que tem mais possibilidades de ser a correta. Vamos imaginar, por exemplo, que depois de uma tempestade noturna, de manha encontramos uma casa totalmente destruída, e não há qualquer indício de como isso aconteceu. Uma hipótese mais complicada seria que um avião lançou uma bomba incendiária sobre a vivenda. O fogo a seguir teria eliminado qualquer indício de evidência material. Ao utilizar a navalha de Occam, você percebe que a hipótese da tempestade resulta numa explicação mais provável do que a bomba, por ser mais simples. A navalha de Occam não da garantia de uma resposta certa, mais nos encaminha na direção dela.
As teorias da conspiração, muito utilizadas durante a “Guerra Fria” entre os Estados Unidos e a União Soviética, desprezavam as explicações simples da navalha de Occam em favor de teorias intrigantes e misteriosas. Tal delírio imaginativo deixou o mundo próximo de uma catástrofe atômica. Teria sido muito mais fácil partir para uma “detente” com foi feito no final dos anos oitenta. Uma geração inteira viveu o drama do holocausto nuclear sem saber como superar tamanho desconforto. Apenas alguns telefonemas e acertos geográficos dividindo o mundo entre as grandes potências, e os problemas foram resolvidos. Todos puderam dormir tranqüilos sem necessidade de questionar ideologias. Por outro lado, é justamente a área da saúde que utiliza com destreza o conceito da navalha de Occam. Aqueles médicos que se encontram em situações limites, e que devem optar por uma decisão rápida para salvar o paciente, usam tal artifício quando estão diagnosticando uma doença, que diz simplesmente: “Quando ouvir o sons de cascos, pense em cavalos, e não em zebras”
Victor Alberto Danich – Sociólogo

VIVA O CÂNCER!

No dia 26 de julho de 1952, ao meio-dia, Eva Duarte de Perón entrava em coma. Ao anoitecer, quando finalmente morre, “Evita” entra para a imortalidade. “A Eva” – como a chamavam, quase com repugnância, aqueles que a excluíam do paraíso social – é a clara materialização da luta de classes. Se tivesse sido somente uma bastarda ambiciosa, ou uma especuladora, ou, se tivesse construído uma vida impecável e altruísta, sem aqueles excessos tipicamente humanos, não haveria alcançado a dimensão histórica que teve. No entanto, o pior de tudo é ficar cristalizada na figura reversa que mostra a cara de uma puta ou de uma virgem, segundo a ideologia do observador. Sua origem pobre, sua arbitrariedade, sua garra e sua patética luta contra o “destino”, está fixada no seu verbo exasperado, na sua palavra irreverente, na sua justiça primitiva e na sua imolação. Por que atacam a Evita Profana? Porque seu derradeiro primitivo e sanguíneo desajusta a racionalidade burguesa. Resulta indigno e intolerável. Evita é como o parente pobre; provoca repúdio e mal-estar pela exigência de mudanças; encoleriza com sua “irracionalidade”. Ela fere aqueles que se aferram aos privilégios e se reconhecem nesse gozo egoísta. No entanto, por que tantos cantam o nome da “sagrada Evita”? Porque o mito desperta compaixão, mas não incomoda. Seu incendiário discurso (pobres, luta, povo, excluídos, imperialismo) já não representa qualquer perigo. Ela, a santa, a virgem, é “algo belo que tivemos e que nunca mais teremos”. Só resta chorar.
Porém, Evita não é um mito. É a própria encarnação da utopia. Uma fervorosa utopia traduzida numa desesperada procura de justiça, num obstinado reconhecimento do direito do outro, numa profunda vocação inclusiva através de um otimismo militante. A Evita não lhe assiste a razão, senão a paixão. Astúcia, paixão, sangue: todas as palavras femininas, vinculadas ao primitivo, ao selvagem, ao censurável. Ela sonhou com “voltar e ser milhões”. Não contou com a astúcia da razão pós-moderna, nem com a tirania dos economistas. Não contou com a incompreensão daqueles que a odiavam. Sempre pensou que poderia ser respeitada pelos seus sonhos. O nome de Evita transformou-se na imagem do Estado Benfeitor. Enquanto começa a cimentar-se o mito da santa, alimentado pela tragédia de sua doença e sua virtual imolação na plenitude da vida, seus algozes se deleitam escrevendo nas paredes, nos recantos dos bairros elegantes de Buenos Aires, a frase que condensaria a raiva das elites argentinas: “Viva o câncer!”. Na medida em que crescia a desfaçatez opositora, mais se reafirmava o amor dos pobres. Suas últimas palavras foram para Perón: “Juan, cuida dos operários, e não te esqueças dos mais humildes. Por eles, vale a pena continuar lutando”.
Victor Alberto Danich - Sociólogo

VOCÊ GOSTA DA DESIGUALDADE?

Imagino que alguma vez na sua vida você se perguntou sobre a validade desta pergunta. Seguramente vai dizer que, na sociedade, tal conceito é entendido como a antítese da igualdade, no seu sentido dual, daquilo que os seres humanos estão dispostos a defender como a melhor forma de organizar a própria convivência. Será mesmo?
Vamos aceitar a ideia de que as desigualdades naturais existem, ou como diria o pensador político Norberto Bobbio, que os seres humanos são iguais quanto desiguais: “São iguais diante da morte porque todos são mortais, mas são desiguais diante do modo de morrer porque cada um morre de modo particular, diferente de todos os demais”. Podemos conjeturar que, apesar de sermos educados para defender uma suposta igualdade, internamente ambicionamos em diferenciarmos dos nossos semelhantes a partir de atributos particulares. A pergunta surge por definição: Somos iguais ou desiguais em relação ao que? Rousseau considerava que os indivíduos nascem iguais, mas, a sociedade os torna desiguais através de um processo cultural artificialmente construído. O filósofo Nietzsche, contradizendo tal sugestão, parte da definição de que os seres humanos são por natureza desiguais, e culpa ao gregarismo moral da sociedade, assentada na religiosidade que enaltece a compaixão e a resignação, como a forma compulsiva de torná-los iguais. Vivemos num mundo maniqueísta, no qual nos movimentamos de acordo aos nossos interesses de classe. A sutileza de tal afirmação mostra-nos que o indivíduo que ocupa uma posição privilegiada na sociedade, aceite com absoluta naturalidade a desigualdade social e, aquele que se encontra em situação de classe inferior, sem forças suficientes para mudar tal situação, discorde, na sua impotência, de tal premissa.
Não podemos ignorar tal realidade. Ela está presente em todas nossas atitudes, inconsciente ou não. Não basta identificar-nos com discursos ou modos culturais de agir. Somos reféns de nossa classe social. Entretanto, devemos ser capazes de optar por escolhas, apesar das diferenças. Ser progressista ou conservador não significa querer destruir ou preservar os modelos vigentes, ou, em todo caso, viver de acordo com aqueles com os quais somos solidários, como justificativa da nossa ideologia. O problema é de consciência, que deve estar assentada no conceito relevante da inclusão-exclusão. Se por um lado, o ideal da inclusão é característica do pensamento progressista, o pensamento conservador, sem sombra de dúvidas, é notadamente excludente. Norberto Bobbio resume com maestria sua justificativa para ser um homem de esquerda: “A liberdade pode ser considerada um bem individual, diversamente da igualdade que é sempre apenas um bem social” Seria bom fazer um exercício mental para descobrir, com todas suas implicâncias, o risco de repensar o significado da pergunta inicial.
Victor Alberto Danich - Sociólogo

terça-feira, 30 de junho de 2009

CHUTANDO A ESCADA: COMO A HISTÓRIA E O PENSAMENTO ECONÔMICO CAPITALISTA FORAM REESCRITOS PARA JUSTIFICAR O NEOLIBERALISMO

Há atualmente uma grande pressão para que os países em desenvolvimento adotem um conjunto de "boas políticas" e "boas instituições" - como liberalização do mercado e para investimentos estrangeiros e estritas leis de patentes - para promover o desenvolvimento econômico. Quando alguns países em desenvolvimento se mostram relutantes em aceitar tais políticas, os proponentes deste receituário geralmente acham difícil de entender esta estupidez do que entendem ser uma já tentada e testada receita para o desenvolvimento. Afinal, argumentam os países desenvolvidos, estas práticas e instituições já foram usadas no passado com sucesso. Sua crença nas próprias prescrições é tão absoluta que a seu ver, tais medidas deveriam ser impostas aos países em desenvolvimento através de fortes pressões bilaterais ou multilaterais, ainda que encontrem resistência.
Naturalmente, são acalorados debates sobre quando estas políticas recomendadas são ou não apropriadas para os países em desenvolvimento. Entretanto, mesmo muitos daqueles que são céticos quanto à aplicabilidade destas políticas e instituições aos países em desenvolvimento, curiosamente tomam por dadas estas práticas que recomendam, aceitando-as como parte de seu passado quando caminhavam para o desenvolvimento. Ao contrário da sabedoria convencional, os fatos históricos mostram que os países ricos não se desenvolveram tendo por base as políticas e instituições que, agora, prescrevem e, freqüentemente, forçam aos países em desenvolvimento. Infelizmente, este fato é pouco conhecido nos dias de hoje por conta da atuação de "historiadores oficiais" do capitalismo, historiadores que foram bem sucedidos no processo para reescrever sua própria história.
Praticamente todos os países atualmente ricos usaram de proteções tarifárias e subsídios para desenvolver suas indústrias. Interessantemente, Grã-Bretanha e Estados Unidos da América, dois países que atingiram o pináculo da economia mundial através do seu livre-mercado e política de livre comércio, são atualmente os com as mais agressivas práticas de subsídio e proteção do mercado interno.
Contrário ao mito popular, Grã-Bretanha foi um combativo usuário e em certos setores, o pioneiro, em ativismo de políticas que intencionavam promover suas indústrias. Tais políticas, ainda que limitadas em escopo, datam do século 14 (com Edward III) e século 15 (com Henry VII) em relação à manufatura de lã, a principal indústria da época. A Inglaterra então era um exportador de lã crua dos Países Baixos e Henry VII, por exemplo, tentou alterar estas relações. Henry VII passou a taxar as exportações enquanto, ao mesmo tempo, atraía trabalhadores qualificados dos Países Baixos.
Particularmente entre a reforma da política de comércio do Primeiro Ministro Robert Walpole em 1721 e a adoção do livre mercado por volta de 1860, a Grã-Bretanha usou de políticas extremamente dirigistas para o comércio e indústria, envolvendo medidas muito similares às de países como Coréia e Japão usadas posteriormente com os mesmos objetivos. Durante este período, a Inglaterra protegeu suas indústrias ainda mais intensamente do que a França, comumente apresentada com um contraponto de dirigismo estatal contra o sistema de livre-mercado. Tendo estes fatos em mente, Friedrich List, importante economista alemão no século 19, afirmou que a Grã-Bretanha, ao defender o livre-comércio aos países menos desenvolvidos como Alemanha e EUA, atuava "chutando a escada" que havia utilizado para atingir o topo.
Nos dias de hoje, pouco é sabido sobre a interação intelectual entre EUA e Alemanha que não acabou aí. A Escola Histórica alemã, representada por Wilhem Roscher, Bruno Hildebrand, Karl Knies, Gustav Scmoller e Werner Sombart, atraiu muitos economistas estadunidenses em fins do século 19. O santo padroeiro da escola neoclássica dos EUA, John Bates Clark, em cujo nome é dado o prestigioso premio para jovens economistas, foi para a Alemanha em 1873 onde estudou a Escola Histórica Alemã sob os cuidados de Roscher e Knies, embora tenha gradualmente se afastado dela. Richard Ely, um dos principais economistas estadunidenses no período, também estudo com Knies e influenciou a Escola Institucionalista Americana através de seu discípulo, John Commons. Ely foi um dos fundadores da Associação Estadunidense de Economia e o maior seminário público no encontro anual da associação é feito em seu nome, embora poucos dos membros presentes saibam quem Ely foi.
Entre a Guerra Civil e a Segunda Guerra Mundial, os EUA eram, literalmente a mais protegida economia no mundo. Neste contexto, é importante destacar que a Guerra Civil nos EUA foi travada em decorrência da questão tarifária, tanto quanto, se não mais, do que pela abolição da escravatura. Dois assuntos eram divisores entre o Norte e Sul: o Sul tinha mais a temer na trincheira das tarifas do que nas trincheiras da escravidão. Abraham Lincoln era um famoso protecionista que construiu sua carreira política sob o carismático político Henry Clay no Partido Whig, que advogava o "Sistema Estadunidense", baseado no desenvolvimento infra-estrutural e protecionismo (então reconhecendo que o livre comércio era de interesse da Inglaterra). Um dos maiores assessores econômicos de Lincoln era Henry Carey, reconhecido por ser um economista protecionista e descrito como "o único economista estadunidense de importância" por ninguém menos que Marx e Engels em 1850 e agora quase desaparecido na história do pensamento econômico americano. Por outro lado, Lincoln pensava que os afro-americanos eram racialmente inferiores e que a emancipação dos escravos era uma proposta idealista sem perspectivas de implementação imediata - diz-se que ele teria aprovado a abolição como um passo estratégico para vencer a Guerra ao invés de que por algum traço de convicção moral.
Na proteção de suas indústrias, os estadunidenses foram contra os ensinamentos de proeminentes economistas como Adam Smith e Jean Baptiste Say, que viam o futuro dos EUA na agricultura. Entretanto, os estadunidenses sabiam exatamente qual era o jogo. Eles entenderam perfeitamente que a Inglaterra havia atingido o máximo de proteção e subsídios e que, portanto, eles precisavam fazer o mesmo se quisessem chegar em algum lugar. Criticando os britânicos em defesa do livre mercado, Ulysses Grant, um herói da Guerra Civil e Presidente dos EUA entre 1868-1876, respondeu grosseiramente que "em 200 anos, quando os EUA tiver obtido tudo que puder da proteção de seus mercados, aí sim adotaremos o livre mercado". Quando seu país atingiu o topo, logo após a Segunda Guerra Mundial, começou o processo de "chutar a escada" com sua apologia ao livre comércio, constrangendo países menos desenvolvidos a adotá-lo.
O Reino Unido e os EUA são exemplos mais dramáticos, mas praticamente todo o restante dos países desenvolvidos de hoje usaram de tarifas, subsídios e outros meios de proteger suas indústrias nos estágios iniciais do seu desenvolvimento. Casos como a Alemanha, Japão e Coréia já são reconhecidos por estas medidas, mas mesmo a Suécia, que tardiamente veio a representar a "pequena economia aberta" para muitos economistas, usou taticamente de tarifas, subsídios, cartéis e apoio estatal para pesquisa e desenvolvimento para estimular setores chaves de seus segmentos indústrias, especialmente o têxtil, metais e engenharia.
Houve algumas exceções, como a Holanda e a Suíça que mantiveram o livre mercado desde o fim do século 18. Entretanto, estes países já eram os mais tecnologicamente avançados no período e, por esta razão, não precisavam de muita proteção. Além disto, deve ser destacado que a Holanda empregou uma impressionante variedade de medidas intervencionistas até o século 17 com o objetivo de construir e assegurar sua supremacia marítima e comercial. Além do mais, a Suíça não tinha leis de patentes até 1907, indo em contradição direta com a ortodoxia de hoje, que defende direitos de propriedade intelectual. Mais interessante ainda é notar que a Holanda aboliu sua lei de patentes (de 1817) em 1869 alegando que patentes eram monopólios politicamente estabelecidos e inconsistentes com os princípios do livre mercado - uma posição que hoje chocaria muitos dos economistas que advogam o laissez faire. Outra lei de patentes só foi reintroduzida tardiamente, em 1912.
A história é similar se olharmos para o desenvolvimento institucional. Nos primeiros estágios do seu desenvolvimento, os países hoje desenvolvidos não tinham sequer as ditas instituições "básicas" como funcionalismo público profissional, banco central ou lei de patentes (como já dito). Foi somente após a Lei Pendleton em 1883 que o governo federal dos EUA começou a recrutar empregados através de processos seletivos. O banco central, uma instituição tão querida aos economistas do livre mercado de hoje, sequer existia nos países mais ricos até o começo do século 20 - não apenas por causa da condenação dos economistas do livre mercado da época, que diziam ser um mecanismo que injustamente assegurava pagamentos de emprestadores imprudentes. O banco central dos EUA (Federal Reserve Board) foi estabelecido apenas em 1913 enquanto o italiano não tinha sequer o monopólio para emissão de cédulas até 1926. Muitos países permitiam o patenteamento de invenções estrangeiras até o fim do século 19. Como já mencionado, a Suíça e Holanda se recusavam a introduzir uma lei de patentes apesar da pressão internacional até 1907 e 1912, respectivamente, o que, conseqüentemente, permitia livremente o "roubo" de tecnologias estrangeiras. Os exemplos poderiam seguir adiante.
Uma conclusão importante que podemos extrair da história do desenvolvimento institucional é que foram anos para que os países atualmente ricos adotassem as medidas que sugerem. Instituições geralmente levam décadas, algumas vezes, gerações para se desenvolverem. Apenas para dar um exemplo, a necessidade de um banco central foi considerada em alguns círculos no século 17, mas o primeiro "verdadeiro" banco central, o Banco da Inglaterra, foi instituído apenas em 1844, cerca de dois séculos depois.
Outro ponto importante é que, nos primórdios, o nível do desenvolvimento institucional dos países hoje desenvolvidos, era muito inferior se comparado com o nível dos hoje países em desenvolvimento. Por exemplo, medido pelo (aceito como altamente imperfeito) nível de renda, o Reino Unido em 1820 era pouca coisa melhor que a Índia de hoje. E pior: não tinha muitas das instituições mais "básicas" que a Índia tem hoje. A Inglaterra não tinha, por exemplo, sufrágio universal (nem mesmo sufrágio universal masculino), um banco central, imposto sobre renda, responsabilidade pública, uma legislação generalizada de falência e mesmo mínima normatividade trabalhista (exceto por algumas reduzidas e nunca observadas leis regulando o trabalho infantil).
Se as políticas e instituições que hoje os países ricos estão recomendando para os países pobres não são as mesmas que eles mesmos usaram quando estavam em igual condição, o que está acontecendo? Nós só podemos concluir que os países ricos estão chutando a escada que os permitiu alcançar as posições que hoje ocupam. Não é coincidência que o desenvolvimento econômico se tornou mais difícil nas últimas duas décadas quando os países atualmente desenvolvidos começaram a pressionar os países em desenvolvimento para adotar o chamado "padrão global" de políticas e instituições.
Durante este período, a média de crescimento econômico per capita anual para os países em desenvolvimento reduzida à metade: de 3% nas duas décadas anteriores (1960-1980) para 1.5%. Em particular, a América Latina virtualmente parou de crescer enquanto a África Subsaariana e a maioria dos países do antigo bloco soviético têm experimentado uma queda na renda absoluta. Instabilidade econômica vem se acentuando notadamente como provam as dúzias de crises financeiras que temos testemunhado na última década sozinha. A desigualdade de renda também cresceu em muitos dos países em desenvolvimento, assim como a pobreza, que ao invés de se reduzir, tem se aumentado em número significante de países.
O que pode ser feito para mudar isto?
Primeiramente, os fatos históricos que evidenciam as experiências dos países desenvolvidos deveriam ser largamente divulgados. Não é apenas uma questão de aprender a "verdadeira história", mas de permitir que os países em desenvolvimento possam tomar decisões amparadas em mais informações.
Posteriormente, as condicionantes impostas como requisitos para a assistência financeira bilateral ou multilateral precisam ser radicalmente alterados. Deve ser aceito que o receituário ortodoxo não está funcionando e que não pode haver "melhores práticas" a serem seguidas igualmente por todos.
Terceiro, as regras da Organização Mundial do Comércio deveriam ser reescritas de modo que os países em desenvolvimento possam mais ativamente usar tarifas e subsídios para seu próprio desenvolvimento industrial. Eles deveriam ser autorizados a adotarem leis menos estritas de patentes e propriedade intelectual.
Quarto, devem ser encorajadas melhorias nas instituições, mas isto não pode ser aceito como sendo a imposição de um conjunto fixo e pré-determinado de instituições em todos os países (instituições hoje inspiradas no modelo anglo-americano, fato que não encontra bases no passado). Atenção especial deve ser tomada para não se exigir uma excessivamente rápida transformação institucional nos países em desenvolvimento, especialmente dado que (1) alguns destes países já têm estas instituições consideravelmente maduras quando comparadas com as dos países hoje desenvolvidos em seus estágios iniciais de crescimento e (2) que são altamente custosos o estabelecimento e manutenção de novas instituições.
Ao se permitir a adoção de políticas e instituições que são mais adequadas às suas reais condições, espera-se que os países em desenvolvimento terão a oportunidade de se desenvolverem mais rapidamente. Isto irá também beneficiar os países desenvolvidos em longo termo, uma vez que ampliará suas oportunidades de mercado e investimento. Esta questão, de que os países desenvolvidos não consigam enxergar estes fatos, é a tragédia do nosso tempo.

Ha-Joon Chang é professor na Faculdade de Economia da Universidade de Cambridge, no Reino Unido

sexta-feira, 5 de junho de 2009

A DONZELA QUE SE LIVROU DOS ÍNCUBOS

Assim que o papa Inocêncio VIII, na sua bula de 1484, autorizou à acusação, tortura e execução de todas as “bruxas” da Europa, os inquisidores Kramer e Sprenger, colocaram em prática, através das regras do “Malleus malificarum”, a mais impiedosa perseguição as mulheres acusadas de copularem com o demônio. Na Grã-Bretanha, os caçadores de bruxas, chamados de “alfinetadores” eram premiados para cada mulher ou menina que entregavam para execução. Imaginem vocês, moças do século 21, se estivessem sujeitas a tais acusações. O que fariam?
Em 1765, uma jovem salvou-se contando a seguinte história, nas palavras do próprio inquisidor “Num dia de festa, uma jovem, virgem devota, foi chamada por uma bruxa velha a acompanhá-la até sua casa. Num dos quartos do andar de cima estavam reunidos alguns jovens belos. A bruxa insistiu para que subisse. A virgem consentiu. E, enquanto subiam as escadas, a velha, que ia a frente, advertiu-lhe para que não fizesse o Sinal-da-Cruz. Embora a moça concordasse, benzeu-se sem que a velha visse. Pois que ao entrarem no quarto, ninguém havia: os demônios que lá se encontravam eram incapazes de se mostrar nas suas formas criaturais. A velha voltou-se então para ela, repreendendo-a – Vai embora em nome de todos os demônios! Por que te benzeste? – este foi o relato que obtive daquela boa e honesta donzela”.
Podemos presumir que superamos estes condicionantes religiosos, ou ainda guardamos no inconsciente o mal-estar de sentirmos impuros? Por que ainda fingimos que os relacionamentos humanos se estabelecem sem considerar a sexualidade um elemento primordial? As justificativas dos inquisidores para acusar mulheres supostamente possuídas pelo demônio, estavam assentadas em elementos misóginos e eróticos, próprios de uma sociedade sexualmente reprimida e dominada pelos homens. Não por acaso, os juízes vingadores eram, na sua maioria, padres supostamente puritanos e celibatários, que transformavam suas próprias frustrações em delírios religiosos. Nos julgamentos sumários efetuados pela Santa Inquisição, eram discutidas até a exaustão a quantidade e qualidade dos supostos orgasmos que as mulheres acusadas tiveram com os demônios, chamados de “Íncubos, que as contaminavam com seus atos obscenos e as distanciavam da verdadeira santidade”. Que dureza, não?
Para consolo das damas, de modo a não se sentirem culpadas, a crença em lucíferes era difundida muito antes da Inquisição. Sócrates dizia que sua inspiração filosófica era resultado de um demônio pessoal e benigno, e acrescentava: “todo o demoníaco é intermediário entre Deus e os mortais” e continuava “só por meio do demoníaco é que se estabelecem as relações entre os homens e os deuses”. Talvez seja esse o segredo de porque as mulheres preferem os expertos aos bobos.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

sexta-feira, 29 de maio de 2009

SANTO AGOSTINHO E O UNIVERSO

O cientista Stephen Hawking conta que, numa conferência sobre astronomia, o palestrante estava descrevendo como a Terra gira em torno do Sol, e como este gira em torno do centro de uma imensa galáxia de características quase infinitas. No final da conferência, uma senhora baixinha e idosa levantou-se, falando em voz alta:
“O que o senhor acaba de nos dizer é tolice. O mundo, na verdade, é um objeto achatado, apoiado nas costas de uma tartaruga gigante”.
O conferencista imediatamente replicou: “E sobre o que se apóia a tartaruga?”
“Você é muito experto, rapaz, muito experto” – dize a velinha – “mas existem tartarugas marinhas por toda a extensão embaixo dela”.
Apesar de esta história ser relativamente recente, a preocupação com a configuração do universo vem sendo discutida há muito tempo. O filósofo grego Aristóteles, 340 anos antes de Cristo, já argumentava a ideia de que a Terra era uma esfera e não um corpo achatado. É claro que após ele, surgiram infinidades de teorias etnocêntricas, principalmente para justificar a posição geográfica que o ser humano, feito a imagem e semelhança com Deus, ocupava como figura central do universo. Tal modelo foi adotado pela Igreja Católica porque correspondia às descrições bíblicas, além de dar espaço suficiente, fora da esfera das estrelas, a visão maniqueísta do céu e o inferno. Nada melhor que uma explicação simples e valorativa para tranqüilizar os fiéis tementes de Deus.
Entretanto, o mais interessante desta história do pensamento humano, é aquela que se refere ao começo de tudo. Na tradição judaico-cristão-muçulmana, o universo tem sua origem num passado recente por meio de uma “causa inicial”. Santo Agostinho, em seu livro “A cidade de Deus”, sustentava que a data da criação do universo era de 5000 anos antes de Cristo, conforme o livro do Gênesis. Contrariamente, Aristóteles não concordava com a teoria da criação, porque achava que ela continha índicos de intervenção divina. O filósofo Immanuel Kant no seu trabalho “Crítica da razão pura”, questionava que o conceito do tempo não tinha sentido antes do começo do universo, já que, se por acaso, tivesse surgido a partir de um tempo infinito antes dele, porque deveria ser criado num momento particular?
Nessa espetacular luta de conceitos, Santo Agostinho, pela primeira vez, especulou sobre: “O que Deus fazia antes de criar o universo?”. Muitos dirão que Jeová, na sua onipotência, seria capaz de criar tudo em qualquer instante. A pergunta a esse interrogante seria: Por que Ele faria isso escolhendo leis conhecidas e demonstradas pela ciência, e não de forma arbitrária? Será que vivemos num mundo culturalmente formatado, no qual, o apego doentio ao sobrenatural, serve para acalmar a falta de conhecimento da realidade concreta dos fenômenos da física, tal qual aquela velinha?
Victor Alberto Danich
Sociólogo

sexta-feira, 22 de maio de 2009

A TRANSFORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA

Qualquer atividade intelectual torna-se estimulante a partir do momento em que se transforma numa rota de descoberta. Em alguns campos do conhecimento, tais condicionantes são precedidos pelo insólito de descobrir fatos anteriormente impensados ou impensáveis. Nesse sentido, a realidade social apresenta-se como possuidora de muitos níveis de significado, e a descoberta de cada novo nível modifica a percepção de todo, e essa perspectiva nos leva a ver sob nova luz o próprio mundo em que todos co-existimos. Isso significa também uma transformação súbita da consciência. No entanto, as pessoas que preferem evitar descobertas chocantes, acreditando que a sociedade é exatamente aquilo que aprenderam na escola, de modo a proteger-se na segurança das regras, satisfazendo-se apenas com suas próprias construções conceituais, nunca poderão participar da paixão de questionar “um mundo aceito sem discussão”. O fato de perguntar-nos porque devemos estar interessados em olhar além das ações humanas comumente aceitas ou oficialmente definidas, pressupõe certa consciência de que aquelas ações possuem diferentes níveis de significado, alguns dos quais ocultos à percepção do cotidiano. Não querer aceitar tais condicionantes, é resultado do próprio mal-estar que significa não entender as diversas representações da realidade.
O que significa isso? Que a própria natureza humana torna-se um artifício destituído de liberdade. Uma pessoa passa a criar fantasias dentro de um mundo mitológico em que todos os seres humanos estão presos as suas próprias designações sociais. A sociedade proporciona ao indivíduo um gigantesco mecanismo através do qual ele pode ocultar a si mesmo sua própria liberdade. Somos seres sociais e nossa existência está vinculada a localizações sociais específicas. Se por alguma razão, alguém atua fora desses padrões, à punição surge imediatamente. A própria organização social, criada e reforçada por nós mesmos, está presente para lembrar-nos com suas sanções. Quaisquer que sejam nossas possibilidades de liberdade, ela não se concretizará se continuarmos a pressupor que o “mundo aprovado” da sociedade seja o único que existe, além de desestimular-nos da possibilidade de qualquer mudança na procura de novos valores ou significantes sociais.
Tanto é assim, que as nossas identidades são atribuídas pela sociedade. É necessário ainda que a sociedade as sustente com regularidade, de modo que nossas vidas se desenrolem dentro de uma complexa trama de reconhecimentos e não-reconhecimentos. Somos reféns do nosso comportamento, porque todo ato de ligação social resulta numa escolha de identidade. Na sua simplicidade filosófica, o homem do campo acrescentaria: “os pássaros da mesma plumagem vivem juntos não por luxo, mas por necessidade”
Victor Alberto Danich - Sociólogo