segunda-feira, 9 de julho de 2012

O SOCIALISMO COMO EXPERIÊNCIA COGNITIVA

Falar de socialismo na atualidade não é apenas uma mera retórica academicista e sim a revelação pública de uma prática realizada por meio de ferramentas sociais aplicadas e incorporada pelo próprio capitalismo de pós-guerra. A social-democracia é o exemplo mais claro dessa conceituação. O paroxismo da Guerra Fria dos anos 50 escondeu para o público menos atento as mudanças da economia política que aconteceram no ocidente durante o breve século vinte. Desde as lutas contra o colonialismo até as ideias reformadoras que mudaram a cara do liberalismo econômico do Laissez-faire, que defendia como versão mais pura de capitalismo, aquela no qual o mercado devia funcionar livremente, sem qualquer interferência, principalmente do Estado. Tal conceituação mostrou-se errônea na deflagração da crise de 1929, que se repete de forma similar na atualidade, porém com intensidade muito maior. Basta relembrar que na década de 30, o economista inglês John Maynard Keynes, demonstrou que o mito do mercado auto-ajustado tinha perdido seu sentido ideológico perante a crise, e provou que a interferência do governo na economia através da tributação, dos empréstimos e gastos, poderia salvar o capitalismo das crises cíclicas e do ataque das doutrinas comunistas. A publicação da “Teoria Geral do Emprego, dos juros e da Moeda” mostrou sua eficácia, tanto que foi o modelo adotado no ocidente pela social-democracia através do Estado do Bem-Estar. Curiosamente, Keynes, o salvador do capitalismo, era acusado de comunista.
No entanto, a prosperidade mundial de pós-guerra terminou por esconder a verdadeira origem desse processo. A Escola de Chicago, revigorada pelo Consenso de Washington, voltou a impor nos anos 80 o modelo econômico liberal fantasiado de cara nova. Os gestores desse processo, chamado de “destruição criadora”, Margaret Thatcher e Ronald Reagan, conseguiram transformar os Estados em espectadores falidos, em soberanias apenas nominais, incapazes de sustentar o consumo social, facilitando a desregulamentação, liberalização, flexibilidade, alivio de cargas tributárias e facilitação das transações no mercado financeiro imobiliário e trabalhista, abandonando grande parcela dos trabalhadores à sua própria sorte, condenados sem qualquer sensibilidade a um perverso processo de exclusão social.
Nessa mágica financeira, a única tarefa permitida ao Estado era a realização de um “orçamento equilibrado” deixando ao “ímpeto explorador das corporações” a tarefa da inexorável disseminação das regras do livre mercado. O resultado dessa aventura pode ser observado claramente na atualidade, no seu fracasso retumbante em grande parte do planeta. Por que então os detentores do poder são incapazes de mudar essa situação? Simplesmente porque são os beneficiários diretos desse modelo. As grandes fortunas acumuladas durante estes últimos 30 anos de vigência de uma economia neoliberal, centradas na especulação financeira, muito distante do trabalho produtivo, apenas funcionaram como concentradoras de renda para uma aristocracia globalizada composta de no mais de 360 indivíduos, possuidores de 42% do PIB mundial em suas mãos. Tal acúmulo corresponde a 2,3 bilhões de seres humanos que vivem abaixo de uma linha infernal de pobreza. Imagino que não é esse o capitalismo que queremos. Ou sim?
Um empresário da nossa cidade, pelo qual curto um grande apreço, disse-me no final de uma palestra se o que eu pretendia era que os ricos entregassem seu patrimônio para os pobres. No entanto, eu nunca cogitei coisas dessa natureza. A única maneira de diminuir a desigualdade social é através de políticas públicas de distribuição de renda. Quem é capaz de realizar essa tarefa é o Estado, soberano e democrático. Foi o que tentou fazer o melhor presidente que os Estados Unidos de Norte-América já tiveram – Franklin Delano Roosevelt – durante a crise de 1929. É bom recordar que as elites conservadoras daquele país acusavam-no de ter ligações com os socialistas. A Europa e a Ásia se saíram melhor na aplicação dessas políticas durante o período de crescimento dos anos seguintes à guerra, bem antes de serem atacadas pelo cassino globalizado da década de 90. São justamente essas políticas públicas vigorosas de inserção social que fazem com que o Brasil possa se blindar contra a crise. Não existe nada de sobrenatural nessa afirmação, apenas a reconversão de um modelo monetarista para um novo paradigma desenvolvimentista com distribuição de renda, defendido na atualidade pelo economista Delfim Neto, que, por sinal, para quem não sabe, um grande estimulador da política econômica do nosso país, nos moldes do pensamento de Raúl Prebisch e Celso Furtado.
O desconhecimento dos processos econômicos ao longo da história é causado pela divulgação de dados fragmentados, que impossibilitam questionar a natureza dos próprios modelos vigentes. O obscurantismo ideológico termina confundindo as pessoas que não tem acesso a pesquisas sérias, aquelas que circulam nos meios acadêmicos ou especializados, encarregados de monitorar a circulação do capital financeiro no mundo e suas aplicações, que não são necessariamente no setor produtivo. Desse modo, os indivíduos que apenas acessam a dados dimensionados de forma confusa e burlesca, não percebem que estes mascaram a verdadeira natureza do capitalismo financeiro. A divulgação de “clichês” contextualizados numa parafernália economicista acaba reforçando o próprio sistema, que se apresenta como o único modelo a ser seguido. Por não atacar a fundo o problema principal, que é a concentração da riqueza de maneira monstruosa por uma elite transnacional invisível, longe de qualquer suspeita daqueles que constroem a riqueza deste mundo, as informações se esvaziam do seu conteúdo crítico. Essa é a razão porque alguns indivíduos sentem-se atingidos no cerne de sua própria trajetória empresarial, imaginando que com a construção deste discurso tenta-se criminalizar-los. Nada mais distante. Só basta ler com maior atenção os economistas premiados com o Nobel em 2001 e 2008 respectivamente, Joseph Stiglitz e Paul Krugman, para perceber o eixo de suas críticas ao modelo neoliberal, que os configura como defensores de um capitalismo produtivo, aquele que investe seus recursos no atendimento do consumo social. Qualquer modo de produção que crie bens e serviços direcionados a atender as necessidades da sociedade, fomentando o virtuosismo do trabalho na consolidação da renda e do emprego, de modo a contribuir com a inserção daqueles que ajudam a construir o patrimônio de uma empresa e de uma nação, sempre será bem-vindo.
No entanto, a ação política, além da gestão burocrática e econômica deve, antes de tudo, cumprir um papel conscientizador, já que não existe para os homens e mulheres atuais, outra determinação mais importante do que aquela que surge desta premissa, porque a historicidade do ser humano sempre foi a reprodução de etapas superiores de sua própria humanidade. Tal melhoria como máxima exteriorização de “um comportamento ético”, deve ser, por outro lado, uma atividade direcionada para o exterior. A superação do “ethos” só existe no marco do desenvolvimento das relações externas entre os indivíduos. A atividade transformadora direcionada para o “exterior” é o campo da política, porque o problema do poder totaliza a questão vital da realização humana de cada sociedade. Quando isso não acontece, castra-se essa realização, porque não existe nela a criatividade que transcenda o interesse individual; a criação se direciona a competição com os outros, se expressa na individuação em detrimento do coletivo, no lugar da individuação como enriquecimento do social. A resolução entre as duas formas da consciência: a implícita na prática, que é coletiva e, a outra, superficialmente explícita, expressa uma conjunção de esforços a partir de uma atitude não crítica, que entra em contradição com a primeira porque toda prática significa a ruptura da situação, enquanto a segunda é a legitimação daquilo que não se discute. A resolução dessa contradição resulta numa consciência crítica, uma compreensão da realidade de classe, do indivíduo e das condições dele como sujeito. Surge daí uma prática diferente, porque a atividade transformadora é direcionada a mudar o sistema de poder que legitima essa realidade opressiva. A compreensão crítica viabiliza uma consciência de identificação e ideologia, já que a imaginação precisa da “hegemonia popular” como única forma de universalizar a liberdade humana. Esta é uma concepção do mundo superior e coerente, consolidada na comprovação de que as lutas pela hegemonia, em diversos momentos históricos, sempre teve como resultado um processo de libertação do ser humano. Por isso, apesar de ser identificado como folclórico, continuo acreditando no socialismo.
Prof. Victor Alberto Danich
Sociólogo

terça-feira, 17 de abril de 2012

A FUNÇÃO SOCIAL DOS BANCOS ESTATAIS

Enquanto os governos europeus se debatem no meio de uma catástrofe monetarista, principalmente aqueles expostos ao choque neoliberal, que, entre outras coisas afirmava “que a sociedade civil não existe”, e que o Estado do Bem-Estar Social tinha acabado para dar lugar a uma “sociedade de risco” como panaceia da riqueza ilimitada, terminou por desmascarar os aprendizes de feiticeiros. Numa sociedade de riscos, onde estes mágicos pegavam o dinheiro que os governos investiam em bancos falidos para ressarcir-se com bonificações particulares, só poderia terminar num desastre anunciado.
Enquanto isso, o presidente norteamericano Obama elogia a política econômica brasileira. Diga-se Dilma e sua equipe. Parece retórica diplomática, mas não é. A presidenta foi enfática com os bancos públicos para forçar a redução das taxas de juros e dos pacotes de serviços. O próprio Banco do Brasil tomou a iniciativa de melhorar a tarifa do rotativo do cartão de crédito de 12% para 3%. A mesma estratégia foi anunciada pela Caixa Econômica Federal, cortando a taxa de juros para pessoas físicas e jurídicas. Tais medidas estão destinadas a favorecer as famílias brasileiras no acesso ao crédito, além de melhores condições e financiamento para micro e pequenas empresas, o que se configura como um conjunto de ações que permitirão ampliar os limites e oferta de crédito no contexto da livre opção bancária. De que maneira estas medidas funcionam na prática?
Para os assalariados, maioria quase absoluta da população brasileira, e que são, estatisticamente, os que precisam de um Estado forte e participativo, a taxa de juros do rotativo do cartão de crédito será de 3% ao mês, ante uma taxa média atual de 12,25%. Para as linhas voltadas à aquisição de bens e serviços de consumo, os juros médios serão reduzidos em 45%. No financiamento de veículos, com crédito pré-aprovado e sem tarifas embutidas, a queda será de pelo menos 19%. Assim, o cliente poderá financiar a aquisição de veículos com taxa de juros a partir de 0,99% ao mês. Nesse contexto, as instituições financeiras privadas deverão repensar em novas alternativas de gestão econômica, principalmente quando as prioridades começam a ser centradas na inclusão, na produção e consumo de bens e serviços, e não apenas na maximização de lucros parasitários.
Nesse novo pacote de configuração keynesiana e desenvolvimentista, dimensionado pela presidenta Dilma, os bancos públicos estimularão a economia por meio do consumo e forçarão aos bancos privados a reduzirem suas taxas de juros, sob o risco de perderem mercado. Nesse contexto, o Banco do Brasil sinaliza a cobrança de 3% ao mês no rotativo do cartão de crédito, e a Caixa com 3,97%. No caso do crédito pessoal, um financiamento de R$ 15 mil em 36 meses, as taxas serão entre 2,33% a 2,53% ao mês. Além disso, a Caixa disponibiliza uma linha de crédito de R$ 8 bilhões para capital de giro de modo a atender as micro e pequenas empresas. Para os assustados, vale lembrar que na crise de 2008, quando foram tomadas medidas similares, os dois bancos estatais ganharam dinheiro com a expansão de suas carteiras de crédito, que confirma a presença vigilante, nem sempre visível, do Estado nacional num modelo de produção capitalista.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

A DAMA DE FERRO E AS ILHAS MALVINAS

Quem não gosta de economia politica tem mesmo que assistir o filme de Margareth Thatcher, disse-me um professor amigo. Pergunto-me se perante a crise atual haveria espaço para assistir os flashes de uma senhora senil, ativa precursora do modelo neoliberal, que atualmente se afunda no seu próprio fracasso. No entanto, vale a pena recordar alguns de seus feitos, principalmente a posta em marcha da versão inglesa da Escola de Chicago que terminou conhecendo-se como a “sociedade dos proprietários”. A liberalização da economia inglesa através de privatizações, a restrição do poder dos sindicatos e o ataque ao sistema público britânico de vivendas (council estates), propiciou uma onda de energia econômica tão avassaladora, que o argumento ideológico conservador seduziu grande parte dos inimigos políticos laboristas. Tal projeto de uma economia de extrema direita em democracia quebrou-se em 2008, cujas consequências catastróficas atuais mostram o paradoxo das políticas econômicas iniciadas pelo governo conservador comandado por esta senhora. A história real – omitida no filme – mostra-nos de forma direta o mal-estar de grande parte da população inglesa. Em 1979, a Thatcher concorreu às eleições com o lema “O laborismo não funciona”. Mas em 1982, depois de três anos como primeira ministra, o número de pessoas desempregadas e a taxa de inflação tinham se duplicado. Seus índices de aprovação assim como seu comportamento pessoal tinham caído ao patamar de 25%. Nessa situação, o conjunto do seu gabinete tinha descido ao perigoso limite de 18% de aceitação. A somente um ano das próximas eleições gerais, o thatcherismo estava a ponto de perder fragorosamente nas urnas. Nos primeiros anos da década de oitenta, o neoliberalismo enfrentava a possibilidade sombria de que sua revolução monetarista não sobreviveria a uma nova onda populista no mundo.
No entanto, aconteceu um milagre que ninguém sequer sonhava, nem a Thatcher nem seus “tories” do parlamento. Esse acontecimento mudou o destino da cruzada corporativista da primeira ministra inglesa. O dia 2 de abril de 1982, os militares argentinos invadiram as ilhas Malvinas. Para quem não sabe do que se trata, estas ilhas representam uma ferida profunda no nacionalismo do país vizinho, mas que não passava, aos olhos da época, numa disputa que, segundo o escritor argentino Jorge Luis Borges era apenas “uma briga entre dois carecas por um pente”. No entanto, a guerra das Malvinas proporcionou a Thatcher à oportunidade de recuperar sua popularidade e implantar, por primeira vez na história, um programa de transformação capitalista radical numa democracia liberal ocidental.
Durante o conflito, Margareth Thatcher também lutava pelo seu futuro político. E ganhou de forma espetacular com a rendição dos argentinos, seus inimigos úteis. Esta senhora, desprezada até então, passou a ser tratada como “herói de guerra”. Seus índices de aprovação voltaram a crescer na ordem de 59%. A guerra das Malvinas deu a uma primeira ministra impopular a oportunidade de empreender uma massiva iniciativa privatizadora. O retorno momentâneo a um conflito colonial do passado fez de um personagem sinistro uma figura firme e contundente, para tristeza dos povos e seus pobres.
Victor alberto Danich
Sociólogo 



sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O DISCURSO DOS COLONIZADOS

O livro “Guia politicamente Incorreto da América Latina”, dos jornalistas Leandro Narloch e Duda Teixeira, que cativou muitos leitores por sua linguagem irônica e depreciativa, não passa de uma visão estereotipada e fragmentada da história dos povos latinoamericanos e suas lutas pela descolonização. Nesse amontoado de informações, os autores assumem sem pudor sua repulsa pela cultura do continente desde México a Terra do Fogo, desmerecendo ao longo do texto a construção da identidade social dos nossos povos, não somente desvalorizando-a, senão tentando aniquilá-la por meio da alienação dos discursos típicos das elites colonizadas. O flagrante dessa distorção, manufaturada a duas mãos por meio de juízos de valor, torna-se clara no conteúdo ideológico das citações nas páginas destacadas em preto, que reforça o maniqueísmo que os próprios autores pretendem combater. Para isso destacam uma extensa bibliografia com publicações de pesquisadores progressistas, de modo a criar uma ideia de neutralidade e academicismo. A parcialidade textual desmente tal arranjo bizarro.
Na verdade, o livro não passa de uma crônica feita para vender. Como todo texto moldado nesses padrões literários, seu conteúdo subliminar está direcionado a criminalizar o chamado “falso herói latino-americano”. Torna-se claro que toda a parafernália historiográfica está destinada a atingir indistintamente o Che Guevara, os povos pré-colombianos, Bolívar, os Haitianos, Perón e Evita, Pancho Villa e Salvador Allende, através da exaltação da problemática dos países e os erros humanos dos seus condutores como autoflagelo e atraso do nosso continente rumo ao desenvolvimento.
A soberba do desconhecimento depara-se com o simplismo que o livro retrata ao dizer que América Latina “tornou-se uma ideia vazia quanto abrangente”, surrupiando dos leitores o legado atual dos ícones culturais criados ao longo do tempo, resultado das próprias “veias abertas” da exploração e a desonra. Perante a crise atual do capitalismo, o livro citado tornou-se velho. As novas políticas públicas de inserção social dos nossos governos resgatam as melhores virtudes do populismo clássico, para desconforto e horror destes senhores.
Na verdade, tanto o cronista Leandro Narloch quanto Duda Teixeira (além de seu parceiro Diogo Schelp) são filhos pródigos da revista Veja, que se notabiliza por ser um veículo de desinformação. Ostentar tal currículo para criminalizar tudo aquilo que faz parte da nossa história latinoamericana, é no mínimo suspeito. Usa-se sem restrições o modelo referencial do “pensamento único” tão próprio das novas classes gerenciais que comandam o mundo depois da implosão soviética e o fracasso do socialismo real. Eu lamento que estes senhores se reflitam nesses grupos de poder. Pior ainda, essa proximidade é resultado do intento de aceitação e aproximação com uma classe social categorizada como as dos “incluídos” globalizados. Ganhar prestígio desvendado as fraquezas humanas e descontextualizá-las do momento histórico, só pode confundir aqueles que carecem de amplitude para a leitura, recorrendo a uma única fonte de informação. Basta lembrar que o livro reedita os antigos padrões da “guerra fria” bipolar. A sua intenção mais eloquente é descaracterizar o pensamento popular, tanto quanto desprezado, mas impossível de ser eliminado do imaginário coletivo dos nossos povos.
Victor Alberto Danich
Sociólogo




segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

O BRASIL NORDESTINO

Nestes últimos seis anos está acontecendo um fenômeno migratório interno que merece ser analisado. Durante muito tempo, principalmente na metade do século vinte, a imigração nordestina para os centros urbanos do sul desenvolvido transformou-se num fluxo constante. No entanto, os chamados “paus-de-arara” que transitavam o sertão nordestino rumo a São Paulo, estão começando a mudar essa paisagem exatamente ao inverso. É o que revela a recente pesquisa do Departamento de Economia da Universidade de Paraíba – UFPB. Entre 2002 e 2007, houve um fluxo de mais de 400 mil pessoas nessa direção, que mostra que das 862 mil pessoas que foram morar no nordeste, 47,5% eram indivíduos que estavam voltando a seus locais de nascimento. Por outro lado, apesar de que o retorno acontece, frequentemente, por falta de oportunidades em função da saturação das fronteiras agrícolas ou construção civil, pode-se dizer que existem outros fatores regionais que são determinantes nesse processo de migração interna em direção ao nordeste brasileiro.
A razão fundamental encontra-se no crescimento acentuado dessa região em relação às demais, provocando uma vigorosa urbanização com 70% da população nas cidades. Desse modo, a migração rural passa pelas pequenas localidades e vai diretamente para as grandes. Tal fenômeno se expressa na opção da escolha de uma capital nordestina no lugar de São Paulo. Ainda assim, existem outros condicionantes importantes que merecem ser destacados, que são as melhorias substanciais das condições sociais no nordeste experimentado nestes últimos anos. Mais da metade das famílias pobres recebem algum tipo de benefício federal, tanto da Previdência Social como do Bolsa Família, o que funciona como um mecanismo de contenção da miséria. Segundo a pesquisa, das 14,5 milhões de famílias nordestinas, sete milhões recebem da Previdência e 5,6 milhões do Bolsa Família. Além disso, o salário mínimo que contempla dois terços dos assalariados da região, tem um forte impacto nas atividades econômicas, que redundam num processo vigoroso de inclusão social.
Todos esses componentes, aliados ao surgimento de novos pólos de desenvolvimento, fazem com que as pessoas terminem fortalecendo seus vínculos com a região, no qual o campo da ciência e a tecnologia se encontram em pleno processo de crescimento, com destaque para cidades nordestinas que recebem reconhecimento nacional e internacional pelos seus institutos tecnológicos avançados. Temos o caso de Recife, que possui um pólo de desenvolvimento de softwares, transformado numa referência mundial e reconhecido como o maior parque tecnológico do Brasil, tanto em faturamento como números de empresas abrigadas nesse complexo. Vale destacar Campina Grande, no interior da Paraíba, como uma das cidades que incorporaram um modelo de centro de inovação tecnológica, resultado do fortalecimento da formação acadêmica por meio da Universidade Federal de Campina Grande – UFCG, com destaque nas áreas de engenharia elétrica e computação. Por outro lado, cabe citar o Centro de Biotecnologia e Terapia Celular do Hospital São Rafael, em Salvador, que é o mais moderno e avançado centro de estudos de células-tronco da América Latina, junto com o centro de pesquisa e desenvolvimento da neurociência em Macaíba no Estado de Rio Grande do Norte. Alguém poderia duvidar da capacidade dos nossos irmãos nordestinos?
Victor Alberto Danich
Sociólogo

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

A DURA VIDA DOS ATEUS EM UM BRASIL CADA VEZ MAIS EVANGÉLICO

A parábola do taxista e a intolerância. Reflexão a partir de uma conversa no trânsito de São Paulo. A expansão da fé evangélica está mudando “o homem cordial”?

 O diálogo aconteceu entre uma jornalista e um taxista na última sexta-feira. Ela entrou no táxi do ponto do Shopping Villa Lobos, em São Paulo, por volta das 19h30. Como estava escuro demais para ler o jornal, como ela sempre faz, puxou conversa com o motorista de táxi, como ela nunca faz. Falaram do trânsito (inevitável em São Paulo) que, naquela sexta-feira chuvosa e às vésperas de um feriadão, contra todos os prognósticos, estava bom. Depois, outro taxista emparelhou o carro na Pedroso de Moraes para pedir um “Bom Ar” emprestado ao colega, porque tinha carregado um passageiro “com cheiro de jaula”. Continuaram, e ela comentou que trabalharia no feriado. Ele perguntou o que ela fazia. “Sou jornalista”, ela disse. E ele: “Eu quero muito melhorar o meu português. Estudei, mas escrevo tudo errado”. Ele era jovem, menos de 30 anos. “O melhor jeito de melhorar o português é lendo”, ela sugeriu. “Eu estou lendo mais agora, já li quatro livros neste ano. Para quem não lia nada...”, ele contou. “O importante é ler o que você gosta”, ela estimulou. “O que eu quero agora é ler a Bíblia”. Foi neste ponto que o diálogo conquistou o direito a seguir com travessões.
 - Você é evangélico? – ela perguntou. 
- Sou! – ele respondeu, animado.
 - De que igreja? 
- Tenho ido na Novidade de Vida. Mas já fui na Bola de Neve.
- Da Novidade de Vida eu nunca tinha ouvido falar, mas já li matérias sobre a Bola de Neve. É bacana a Novidade de Vida?
- Tou gostando muito. A Bola de Neve também é bem legal. De vez em quando eu vou lá.
- Legal.
- De que religião você é?
- Eu não tenho religião. Sou ateia
.- Deus me livre! Vai lá na Bola de Neve.
- Não, eu não sou religiosa. Sou ateia.
- Deus me livre!
- Engraçado isso. Eu respeito a sua escolha, mas você não respeita a minha.
- (riso nervoso).
- Eu sou uma pessoa decente, honesta, trato as pessoas com respeito, trabalho duro e tento fazer a minha parte para o mundo ser um lugar melhor. Por que eu seria pior por não ter uma fé?
- Por que as boas ações não salvam.
- Não?
- Só Jesus salva. Se você não aceitar Jesus, não será salva.
- Mas eu não quero ser salva.
- Deus me livre!
- Eu não acredito em salvação. Acredito em viver cada dia da melhor forma possível.- Acho que você é espírita.
- Não, já disse a você. Sou ateia
.- É que Jesus não te pegou ainda. Mas ele vai pegar.
- Olha, sinceramente, acho difícil que Jesus vá me pegar. Mas sabe o que eu acho curioso? Que eu não queira tirar a sua fé, mas você queira tirar a minha não fé. Eu não acho que você seja pior do que eu por ser evangélico, mas você parece achar que é melhor do que eu porque é evangélico. Não era Jesus que pregava a tolerância?
- É, talvez seja melhor a gente mudar de assunto...
O taxista estava confuso. A passageira era ateia, mas parecia do bem. Era tranquila, doce e divertida. Mas ele fora doutrinado para acreditar que um ateu é uma espécie de Satanás. Como resolver esse impasse? (Talvez ele tenha lembrado, naquele momento, que o pastor avisara que o diabo assumia formas muito sedutoras para roubar a alma dos crentes. Mas, como não dá para ler pensamentos, só é possível afirmar que o taxista parecia viver um embate interno: ele não conseguia se convencer de que a mulher que agora falava sobre o cartão do banco que tinha perdido era a personificação do mal.)
Chegaram ao destino depois de mais algumas conversas corriqueiras. Ao se despedir, ela agradeceu a corrida e desejou a ele um bom fim de semana e uma boa noite. Ele retribuiu. E então, não conseguiu conter-se:
- Veja se aparece lá na igreja! – gritou, quando ela abria a porta.
- Veja se vira ateu! – ela retribuiu, bem humorada, antes de fechá-la.
Ainda deu tempo de ouvir uma risada nervosa.  
A parábola do taxista me faz pensar em como a vida dos ateus poderá ser dura num Brasil cada vez mais evangélico – ou cada vez mais neopentecostal, já que é esta a característica das igrejas evangélicas que mais crescem. O catolicismo – no mundo contemporâneo, bem sublinhado – mantém uma relação de tolerância com o ateísmo. Por várias razões. Entre elas, a de que é possível ser católico – e não praticante. O fato de você não frequentar a igreja nem pagar o dízimo não chama maior atenção no Brasil católico nem condena ninguém ao inferno. Outra razão importante é que o catolicismo está disseminado na cultura, entrelaçado a uma forma de ver o mundo que influencia inclusive os ateus. Ser ateu num país de maioria católica nunca ameaçou a convivência entre os vizinhos. Ou entre taxistas e passageiros.
Já com os evangélicos neopentecostais, caso das inúmeras igrejas que se multiplicam com nomes cada vez mais imaginativos pelas esquinas das grandes e das pequenas cidades, pelos sertões e pela floresta amazônica, o caso é diferente. E não faço aqui nenhum juízo de valor sobre a fé católica ou a dos neopentecostais. Cada um tem o direito de professar a fé que quiser – assim como a sua não fé. Meu interesse é tentar compreender como essa porção cada vez mais numerosa do país está mudando o modo de ver o mundo e o modo de se relacionar com a cultura. Está mudando a forma de ser brasileiro.
Por que os ateus são uma ameaça às novas denominações evangélicas? Porque as neopentecostais – e não falo aqui nenhuma novidade – são constituídas no modo capitalista. Regidas, portanto, pelas leis de mercado. Por isso, nessas novas igrejas, não há como ser um evangélico não praticante. É possível, como o taxista exemplifica muito bem, pular de uma para outra, como um consumidor diante de vitrines que tentam seduzi-lo a entrar na loja pelo brilho de suas ofertas. Essa dificuldade de “fidelizar um fiel”, ao gerir a igreja como um modelo de negócio, obriga as neopentecostais a uma disputa de mercado cada vez mais agressiva e também a buscar fatias ainda inexploradas. É preciso que os fiéis estejam dentro das igrejas – e elas estão sempre de portas abertas – para consumir um dos muitos produtos milagrosos ou para serem consumidos por doações em dinheiro ou em espécie. O templo é um shopping da fé, com as vantagens e as desvantagens que isso implica.
É também por essa razão que a Igreja Católica, que em períodos de sua longa história atraiu fiéis com ossos de santos e passes para o céu, vive hoje o dilema de ser ameaçada pela vulgaridade das relações capitalistas numa fé de mercado. Dilema que procura resolver de uma maneira bastante inteligente, ao manter a salvo a tradição que tem lhe garantido poder e influência há dois mil anos, mas ao mesmo tempo estimular sua versão de mercado, encarnada pelos carismáticos. Como uma espécie de vanguarda, que contém o avanço das tropas “inimigas” lá na frente sem comprometer a integridade do exército que se mantém mais atrás, padres pop star como Marcelo Rossi e movimentos como a Canção Nova têm sido estratégicos para reduzir a sangria de fiéis para as neopentecostais. Não fosse esse tipo de abordagem mais agressiva e possivelmente já existiria uma porção ainda maior de evangélicos no país.
Tudo indica que a parábola do taxista se tornará cada vez mais frequente nas ruas do Brasil – em novas e ferozes versões. Afinal, não há nada mais ameaçador para o mercado do que quem está fora do mercado por convicção. E quem está fora do mercado da fé? Os ateus. É possível convencer um católico, um espírita ou um umbandista a mudar de religião. Mas é bem mais difícil – quando não impossível – converter um ateu. Para quem não acredita na existência de Deus, qualquer produto religioso, seja ele material, como um travesseiro que cura doenças, ou subjetivo, como o conforto da vida eterna, não tem qualquer apelo. Seria como vender gelo para um esquimó.
Tenho muitos amigos ateus. E eles me contam que têm evitado se apresentar dessa maneira porque a reação é cada vez mais hostil. Por enquanto, a reação é como a do taxista: “Deus me livre!”. Mas percebem que o cerco se aperta e, a qualquer momento, temem que alguém possa empunhar um punhado de dentes de alho diante deles ou iniciar um exorcismo ali mesmo, no sinal fechado ou na padaria da esquina. Acuados, têm preferido declarar-se “agnósticos”. Com sorte, parte dos crentes pode ficar em dúvida e pensar que é alguma igreja nova.
Já conhecia a “Bola de Neve” (ou “Bola de Neve Church, para os íntimos”, como diz o seu site), mas nunca tinha ouvido falar da “Novidade de Vida”. Busquei o site da igreja na internet. Na página de abertura, me deparei com uma preleção intitulada: “O perigo da tolerância”. O texto fala sobre as famílias, afirma que Deus não é tolerante e incita os fiéis a não tolerar o que não venha de Deus. Tolerar “coisas erradas” é o mesmo que “criar demônios de estimação”. Entre as muitas frases exemplares, uma se destaca: “Hoje em dia, o mal da sociedade tem sido a Tolerância (em negrito e em maiúscula)”. Deus me livre!, um ateu talvez tenha vontade de dizer. Mas nem esse conforto lhe resta.
Ainda que o crescimento evangélico no Brasil venha sendo investigado tanto pela academia como pelo jornalismo, é pouco para a profundidade das mudanças que tem trazido à vida cotidiana do país. As transformações no modo de ser brasileiro talvez sejam maiores do que possa parecer à primeira vista. Talvez estejam alterando o “homem cordial” – não no sentido estrito conferido por Sérgio Buarque de Holanda, mas no sentido atribuído pelo senso comum.
Me arriscaria a dizer que a liberdade de credo – e, portanto, também de não credo – determinada pela Constituição está sendo solapada na prática do dia a dia. Não deixa de ser curioso que, no século XXI, ser ateu volte a ter um conteúdo revolucionário. Mas, depois que Sarah Sheeva, uma das filhas de Pepeu Gomes e Baby do Brasil, passou a pastorear mulheres virgens – ou com vontade de voltar a ser – em busca de príncipes encantados, na “Igreja Celular Internacional”, nada mais me surpreende.
Se Deus existe, que nos livre de sermos obrigados a acreditar nele. 
Eliane Brum
Escritora e jornalista