quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

EM NOME DE UM DEUS

A história da humanidade torna evidente que o ser humano precisa da existência de um deus como objeto de devoção, expressado na sabedoria superior que dirige o curso das coisas. Curso esse atribuído a seres divinos que também o criaram, ou melhor, a um ser divino no qual, em nossa civilização ocidental, todos os deuses da antigüidade foram condensados. Entretanto, a relatividade cultural sempre frustrou a idéia de um deus genérico que conseguisse nivelar os defeitos e os males da civilização, “excetuando”, é claro, o eurocentrismo religioso elaborado pela civilização branca e cristã, que acreditava ter chegado ao “conhecimento do Deus único e verdadeiro”.
A extrema diversidade das sociedades humanas raramente se apresentou aos homens como um fato e,sim, como um desvio de idéias aberrantes que precisavam ser modificadas, expulsando da cultura para a natureza todos os que não faziam parte do projeto cultural do ocidente cristão e “civilizado”. Entre os critérios utilizados pelos europeus a partir do século 14 para julgar se os índios mereciam estatuto humano, figuravam os tipos de crenças, o comportamento alimentar, aparência física e a forma de linguagem. Assim, não acreditando em Deus, não tendo alma, não tendo acesso à linguagem, os selvagens foram colocados na degradante categoria de “bestas pecadoras”.
Quando Hernan Cortez chegou a Tenochtitlán, a fabulosa capital asteca de 300 mil habitantes, ficou horrorizado com os sacrifícios humanos realizados pelos nativos em oferenda aos deuses. Porém, não se preocupou em dizer que tinha chegado à América “para servir a Deus e a sua Majestade e também por haver riquezas”. Os conquistadores espanhóis liam para os nativos, sem intérprete e na frente de um escrivão público, um longo “requerimento” em que eram exortados a converter-se à fé católica, sob pena de serem condenados à escravidão ou à morte, como simples justificativa para a febre que provocava, nas hostes da conquista, o deslumbramento dos tesouros do novo mundo.
A cobiça e o terror despertado pelos conquistadores provocaram um dos maiores genocídios da história da humanidade, no qual uma população pré-colombiana de 90 milhões foi, em apenas um século e meio, reduzida para 3,5 milhões de habitantes, dizimada pela exploração, pelas doenças até então desconhecidas e pelos espantosos tormentos a que era submetida. No século 17, como corolário de semelhante infâmia, o padre Gregório Garcia sustentava que os índios eram de “ascendência judaica”, porque, como os judeus, “eram preguiçosos, não acreditavam nos milagres de Jesus Cristo e não eram gratos aos espanhóis por todo o bem que lhes fizeram”. Não é de estranhar que o padre Bartolomeu de las Casas, fervoroso defensor dos índios, comentasse que eles “preferiam ir ao inferno a se encontrar com os cristãos”.
Podemos observar que em toda a história da conquista do novo mundo, o uso de um deus “europeu” não serviu como projeto de evangelização, porque nunca foi respeitado o conceito de alteridade cultural. Esse conceito deveria ser focado mais na inumanidade dos conquistadores do que na humanidade dos conquistados, como maneira de questionar a visão que o ocidente cristão sempre teve da própria humanidade – a de se negar a reconhecer a existência da pluralidade cultural como eixo articulador das diferentes sociedades. Parece passado, mas a destruição de culturas milenares ainda pode ser vista nos rostos tristes e desfigurados dos descendentes de povos que um dia tiveram o orgulho de possuir suas próprias civilizações e seus próprios deuses.

Prof. Victor Alberto Danich



O SISTEMA PENAL E O ROUBO

Vamos imaginar um maltrapilho roubando numa feira. Seguramente ele é aprisionado de maneira rápida e eficiente. A prisão é apenas um procedimento socialmente aceito como punição a um ato delitivo. As maiorias das pessoas apóiam de maneira entusiasta as sentenças e as condenações. Esses atos exemplares restauram a ordem e consolida a lógica da própria lei. Todos se sentem aliviados, a segurança pessoal está novamente a salvo.
Entretanto, todos sabemos que o sistema penal, na maioria das vezes, pune a base e não o topo da sociedade. Existe uma explicação para isso; os legisladores possuem uma idéia seletiva do que significa a preservação da ordem. É muito mais fácil enquadrar no código criminal aquelas pessoas que cometem delitos dentro de parâmetros específicos contemplados na lei. O flagrante visível é a principal arma. Roubar a poupança e os recursos das nações é chamado de “mercado livre” ; tirar os meios de subsistência de milhões de trabalhadores é chamado de “flexibilização” ou “racionalização”. Nada disso até hoje está enquadrado como ato criminoso a ser passível de punição.
Não existe nada de ofensivo nesta questão, imagino que muitos legisladores devem-se sentir impotentes pela falta de mecanismos legais que punam este tipo de coisas. Os atos ilegais realizados nos setores mais altos da escala social, são invisíveis como uma substância etérea, parecem existir apenas virtualmente. Nas grandes transações a escala mundial, onde imperam atividades focadas no ganho pessoal a custa dos outros, a tênue e imprecisa linha que separa os atos delituosos dos legais, em nada se assemelha ao roubo de um pedaço de frango numa feira.
Não é de estranhar que as prisões estejam cheias de indivíduos identificados como “o setor excluído da sociedade” e catalogados na ordem específica de crimes tradicionais. Os crimes realizados “no topo da escala social” dão a impressão de acontecerem sem a participação de indivíduos, como se fossem sobrenaturais, sem substância física. É tão vasta a rede de cumplicidade, de poder financeiro e procedimentos sofisticados, que estes atos criminosos ocorrem numa abstração tal, que se tornam impossíveis de serem detectados. É possível imaginar que nesse “corporativismo criminoso” a origem de grandes fortunas seja através de operações dolosas, mas demonstrá-lo significaria um risco sumamente perigoso.
Temos claros exemplos de “crimes de colarinho branco” que raramente são levados aos tribunais e ao conhecimento da opinião pública, ainda assim com a ajuda exaustiva da imprensa oral e escrita, como no caso recente do Juiz Nicolau e do Senador Luiz Estevão, ou os ex-presidentes Menem da Argentina e Fujimori do Peru, acusados por desvios do patrimônio público e formação de quadrilha. No entanto, fraudadores, estelionatários, autores de desfalques, mafiosos, grandes traficantes, e todo tipo de autores de “crimes empresariais”, possuem uma capacidade ilimitada de realizarem acordos fora dos tribunais do que qualquer delinqüente que faz parte da “base da sociedade”. O que ocorre durante os processos de julgamento dos “ladrões de alto nível” desafia a imaginação mais fértil até os limites da ciência ficção, infinitamente longe do drama cotidiano daquele simples ladrão de galinhas.

Victor Alberto Danich
Sociólogo/ Jaraguá do Sul

O RETORNO DOS ESPERTOS

A revista “Veja” (09/05/2007) publicou um artigo de Álvaro Vargas Llosa, diretor do pomposo Centro para a Prosperidade Global, chamado de “O retorno do idiota” no qual faz uma análise das novas políticas adotadas por alguns países da região. Tal artigo reproduz uma visão totalmente comprometida com os interesses de um modelo que associa o mito liberal à globalização irreversível, marcada pela economia de mercado, expressão capenga do progresso indefinido da velha ilusão do século XIX, hoje revitalizada. Tal artigo, veiculado por uma revista suspeita, ridiculariza qualquer tipo de iniciativa dos governos locais, como também intelectuais de peso no cenário mundial. O que quer que aconteça, além das tragédias ocasionadas pela onda neoliberal da década de 90, os ideólogos de tal modelo nos dizem que o mundo está no caminho do capitalismo integral. O único empecilho são os “métodos ineficazes das novas gerações de revolucionários” que tentam sabotar um projeto assentado na prosperidade e oportunidade para todos. Apesar de que a realidade desmente tal crença, lá estão os gurus para explicar que tal leitura é falsa, resultado do “ego fraco dos nossos povos” “profundamente ressentidos” por não ter acesso à mobilidade social. Tal retórica tenta eliminar para sempre contribuições importantes para entender a história latino-americana. Entre elas se encontra o fenômeno do desenvolvimento e subdesenvolvimento, principalmente a teoria do imperialismo. Essa manobra serve apenas para ocultar os ideais progressistas dos anos setenta, que se apresentavam como a esperança de um mundo mais justo e fraterno. Os astutos espertos, donos das riquezas concentradas globalmente, calam o fracasso da euforia neoliberal dos anos 90 de governos mascarados de democracia formal, mais que na realidade eram manejados por grupos elitistas e corruptos. O que temos hoje? Um mundo dominado por monstruosas megaempresas sem fronteiras, consumos fantasiosos e grande concentração de riqueza no centro e nas periferias. O lado oposto desse poder é a expansão da miséria, das rebeliões islâmicas, dos indígenas de Chiapas, dos excluídos e refugiados da Europa Oriental, do parasitismo financeiro e da ascensão global das redes mafiosas. O projeto de decomposição cultural realizado por publicações de tal natureza, que tenta substituir as crenças coletivas igualitárias fundamentadas nas identidades nacionais, por outras centradas nas diversas formas de egoísmo individualizante e depreciativas, apenas serve para justificar o parasitismo predador das forças produtivas, sustentada por uma ideologia destruidora de qualquer iniciativa que tente impedir os “espertos” de continuar construindo seus mundos de riquezas particulares.
Victor Alberto Danich
Sociólogo – Prof. Do Centro Universitário de Jaraguá do Sul - UNERJ

SEXUALIDADE, SOCIEDADE E FRUSTRAÇÃO

Toda a civilização, dizia Freud, repousa numa compulsão ao trabalho e numa renúncia as pulsões. O fato de uma pulsão não poder ser concretizada transforma-se numa frustração. A norma pela qual esta frustração ocorre chama-se proibição, produto de algum tipo de privação usada como forma de dominar os próprios desejos instintivos, que liberados, levam ao ser humano a quebrar as regras estabelecidas, condenando-o ao opróbrio. No “O futuro de Uma Ilusão”, de 1927, Freud destacou que as religiões prestaram grandes serviços à civilização, no sentido de introduzir elementos valiosos para a convivência humana. Proporcionaram mecanismos de unificação e solidariedade, além de princípios éticos orientadores para a vida de um indivíduo. Entretanto, principalmente as doutrinas ocidentais, também se ocuparam de introduzir o exercício da culpa em relação ao sexo.
Na sociedade vitoriana, impregnada de moral puritana e hipocrisia social, as mulheres “decentes” não tinham direito ao prazer sexual e faziam sexo apenas como um “dever” para com seus maridos. Assim, como naquela época, a maioria das restrições sexuais atuais é conseqüência da instituição e controle de grandes grupos, através da inoculação do sentimento de culpa. Sexo, impureza e pecado, foram colocados, através desse controle, no mesmo nível de comparação. A incorporação histórica dessas idéias terminou por se institucionalizar no inconsciente coletivo da sociedade, tornando-as sumamente difíceis de transformar.
O problema da “culpa” se agrava por causa da ignorância, da repressão, da distorção dos conceitos, que embora na atualidade não exista de forma declarada, se faz sentir de forma profunda dentro do psiquismo. Muitos homens e mulheres recorrem à instituição matrimonial, não apenas porque desejam estar juntos, senão também como “tábua de salvação” para garantir a autorização social das relações sexuais.
Numa sociedade pequena e conservadora, como aquela do filme “Nunca saberão quanto te amei”, estrelando Frank Sinatra e Shirley MacLaine, que conta à história de um escritor sumamente talentoso, que voltando da guerra da Coréia, e não conseguindo se encaixar nos rígidos esquemas de controle social da comunidade, é rejeitado pela professora “livre de qualquer suspeita” que, apesar de estar apaixonada por ele, não logra ultrapassar a pressão social e o preconceito dos habitantes da cidade.
Essa história parece muito distante, foi rodada em 1956. Hoje, nenhum homem perde a reputação se uma mulher o rejeita, e nenhuma mulher é condenada socialmente porque se entrega a um desregrado. Entretanto, os mecanismos de sedução e de manipulação, a idealização fantasiosa dos sentimentos alheios para entender suas ações e tirar partido deles, ainda existem. De uma maneira menos cruel e até mais escondido. Mas esse mecanismo pode ser reconhecido no mexerico confidencial. Fica-se aturdido quando se houve as mulheres falarem da vida particular de seus amigos e conhecidos circunstanciais. Destes, geralmente, os homens conhecem o comportamento profissional, enquanto que as mulheres sabem com detalhe, e de maneira surpreendente, os seus comportamentos mais íntimos. Sabem que fulano tem uma amante, como ele a conquistou, em que horário se encontram, o vestido, o carro e o local para onde estão se dirigindo. Mas a poderosa fantasia, preconceituosa e gratuita, é a descrição cheia de detalhes e artifícios, que surpreende por sua elaboração: uma pequena história das intenções dele, das manobras dela, do perigo do relacionamento, do desenlace e das frustrações. Existem mulheres com uma capacidade ilimitada de descrever, com precisão espantosa, a totalidade da vida amorosa de uma cidade.
Na realidade, as frondosas fantasias amorosas das mulheres, mostra-nos claramente que elas sempre estão em busca do homem eleito. Quando ele as ignora, descarregam sua frustração transformando-o num ser sem qualidades. Seus erros amorosos são desqualificados sem piedade, e a moral vitoriana, com seus fartos condicionantes eróticos, se reproduz inconscientemente na mistura explosiva entre desejo e reprovação, como a pequena história de Paul Watzlawick: “Uma mulher que mora à beira do rio foi à polícia dar queixa de uns moços que tomavam banhos pelados, diante de sua casa. O policial mandou os rapazes a tomarem banho mais adiante, rio acima, onde não há mais casas, e não defronte da casa da mulher. No dia seguinte, a senhora telefonou novamente: ela ainda conseguia ver os rapazes. O policial foi até lá novamente e mandou-os para mais longe. Dias depois, a mulher indignada, voltou a delegacia, queixando-se ao delegado: Da janela do sótão da casa ainda conseguia vê-los de binóculo”.

Victor Alberto Danich
Sociólogo

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

SOBRE O CHE DAS FINANÇAS

Prezado Senhor Diretor de Redação da Revista Veja,
Estou escrevendo novamente para o senhores de forma direta porque não confio nos textos encaminhados via e-mail, já que suponho que os mesmos são depurados pela tropa de choque que preserva os interesses ideológicos da revista. Não sei se o senhor leu minha tréplica a sua resposta anterior enviada via e-mail, na qual são esclarecidos mais profundamente alguns posicionamentos ideológicos. Entretanto, gostaria de citar um novo artigo publicado nesta última edição chamado “O Che das finanças”, escrito na seção de economia (p.53) pela Sra. Julia Duailibi.
Gostaria de fazer algumas considerações com referência a tal artigo. Primeiramente, do ponto de vista metodológico, tal texto é de uma elaboração sumamente confusa e desarticulada, já que o relato fragmentado dos fatos torna-o uma “fofoca de pasquim”, ao invés de um tema centrado numa seqüência lógica que explique os aspectos econômicos de tal ocorrência. Qualquer pessoa criteriosa que tenha lido o artigo, seguramente deverá recorrer a outras fontes para entender o significado do mesmo, que de texto econômico não tem nada.
Por outro lado, se a articulista tem a intenção de dar prosseguimento à campanha de desmistificação e difamação do Comandante Guevara, deveria primeiro estudar a história latino-americana profundamente, que por sinal, é um dos defeitos mais graves do nosso povo, para então, a partir daí, entender melhor o contexto político daquela época, assim como o significado das alternativas revolucionárias como formas de libertação. Fazer uso de juízos de valor para traçar semelhanças entre um operador de mercado picareta inserido no meio financeiro capitalista, e a trajetória da luta revolucionária e intelectual do comandante Ernesto Guevara de la Serna, se configura como um disparate delirante de uma pessoa que, para agradar à linha editorial da revista, obrigar-se a escrever as pressas qualquer coisa (ou qualquer lixo).
Espantado com tamanho desconhecimento do significado cultural dos processos de descolonização que caracterizaram a segunda metade do século vinte, sinto-me a vontade de oferecer aulas gratuitas de sociologia à distância para tal articulista, ou sugerir seu retorno às aulas de história na universidade.
O senhor pode observar através do meu discurso, que o maior patrimônio que o ser humano possui é a capacidade de exercitar a dialética do conhecimento. Para tanto, já que o senhor é o Diretor de Redação, gostaria que repassasse a sua subordinada alguns dados sobre a gestão do Comandante à frente das atividades econômicas de Cuba, que nada tem de criminosa, e sim de uma ferrenha vontade de construir um país solidário e livre das garras de qualquer imperialismo (tanto soviético como americano).
Não é intuito de este comentário esconder o resultado ou o fracasso das políticas guevaristas à frente da economia cubana, e sim dizer que o Comandante promoveu a rápida nacionalização e centralização da economia, e já na primavera de 1961 a economia cubana era quase totalmente estatal, não muito diferente de alguns países capitalistas latino-americanos desenvolvimentistas. Nesse contexto, o Comandante Guevara se opunha as propostas soviéticas de promover a autonomia relativa, a flexibilidade financeira e a ênfase em maiores incentivos materiais. Para o Che, e que fique bem claro para a senhora Duailibi, as orientações soviéticas eram visualizadas como uma ameaça aos incentivos morais que deviam ser, a seu critério, a forma predominante para a construção do socialismo em Cuba.
Por que o Comandante Guevara pensava assim? Porque o Che no foi um teórico do trabalho voluntário, senão que o praticou com um fervor rigoroso. No Ministério da Indústria, o trabalho voluntário chegou a transformar-se num aspecto fundamental para a educação dos dirigentes. O batalhão vermelho, criado por ele, tinha como meta as duzentas quarenta horas semestrais, uma exigência altíssima levando em conta às dezesseis horas trabalhadas no ministério. Isso significava que para cumprir com as metas era necessário trabalhar na produção nos fins de semana, completando as metas com horas noturnas em fábricas e outros centros de trabalho. A ética do trabalho voluntário encontra-se no lugar oposto daqueles que se sentam numa poltrona de couro, e usam o computador para especular financeiramente e, sem qualquer sensibilidade, furiosamente contentes por seus ganhos imediatos, jogam na exclusão social milhões de seres indefensos, parias de um modelo que os elimina compulsoriamente.
Diferente daqueles que buscam ganhar dinheiro a qualquer custo, inclusive para “compensar as deficiências de formação”, como é o caso de Jérôme Kerviel, o Comandante criou em Cuba o Sistema Orçamentário de Financiamento, baseado no uso do dinheiro aritmético e a não utilização do crédito bancário. Sustentava que eram inconcebíveis relações mercantis dentro do setor estatal de uma economia socialista. Daí a centralização da produção e dos fundos em efetivo de todas as empresas administradas pelo Estado, de modo que todas as indústrias depositassem os ingressos num fundo comum, para logo receberem os recursos necessários para seu desenvolvimento, de acordo com as prioridades fixadas pela planificação centralizada. Dessa forma, esperava-se resolver o problema da carência de fundos de algumas empresas que, por seu tamanho ou falta de organização, não podiam depender de seus ingressos.
Tem mais ainda: O Comandante Guevara, em 1959 já tinha sérias dúvidas sobre a ajuda do Fundo Monetário Internacional, quando dizia com tom certeiro: “O FMI cumpre a função de assegurar o controle de toda América Latina por parte de uns poucos capitalistas, que se encontram instalados fora de seus países. Os interesses do FMI são os grandes interesses internacionais que hoje parecem que estão assentados e tem sua base de operações no Wall Street”.
Já se passaram quase cinqüenta anos destas palavras, e a senhora Duailibi, sua subordinada, ainda insiste em comparar o Che com um filhote pródigo da imoralidade capitalista. O impacto do pensamento de Ernesto Guevara de la Serna, equivocado ou não, teve um alto vôo teórico, tanto em aspectos doutrinários como econômicos. Torna-se importante ressaltar essa característica, já que suas criações conceptuais não ficam aquém de suas virtudes de combatente. Esconder do público desavisado tais atributos é uma falta de ética jornalística da pior espécie.
Espero que o senhor, que na sua juventude ainda sonhava com um mundo melhor, possível de ser transformado através da leitura rigorosa e do conhecimento pleno, possa vencer seu estoicismo e livrar-se da incompetência intelectual de alguns de seus colaboradores.
Atenciosamente,

Prof. Victor Alberto Danich
Gerente Executivo da Incubadora
de Projetos Tecnológicos - JaraguaTec


terça-feira, 22 de janeiro de 2008

O PRECONCEITO CONTRA LULA NO JORNALISMO BRASILEIRO

Um dia encontrei Lula, ainda no Instituto Cidadania, empolgado por um livro de Câmara Cascudo sobre os hábitos alimentares dos nordestinos. Lula saboreava cada prato mencionado, cada fruta, cada ingrediente. Lembrei-me desse episódio ao ler a coluna recente do João Ubaldo Ribeiro, "De caju em caju", em que ele goza o presidente por falar do caju, "sem conhecer bem o caju." Dias antes, Lula havia feito um elogio apaixonado ao caju, no lançamento do Projeto Caju, que procura valorizar o uso da fruta na dieta do brasileiro.
"É uma pena que o presidente Lula não seja nordestino, portanto não conheça bem a farta presença sociocultural do caju naquela remota região do país...", escreveu João Ubaldo. Alegou que Lula não era nordestino porque tinha vindo ainda pequeno para São Paulo. E em seguida esparramou-se em citações sobre o caju, para mostrar sua própria erudição. Estou falando de João Ubaldo porque, além de escritor notável, ele já foi um grande jornalista.
Outro jornalista ilustre, o querido Mino Carta, escreveu que Lula "confunde " parlamentarismo com presidencialismo. ."Seria bom", disse Mino, "que alguém se dispusesse a explicar ao nosso presidente que no parlamentarismo o partido vencedor das eleições assume a chefia do governo por meio de seu líder..." Essa do Mino me fez lembrar outra ocasião, no Instituto Cidadania, em que Lula defendeu o parlamentarismo. Parlamentarista convicto, Lula diz que partidos são os instrumentos principais de ação política numa democracia.
Pelo mesmo motivo Lula é a favor da lista partidária única e da tese de que o mandato pertence ao partido. Em outubro de 2001, o Instituto Cidadania iniciou uma série de seminários para o Projeto Reforma Política, que Lula fazia questão de assistir do começo ao fim.Desses seminários resultou o livro de 18 ensaios, Reforma Política e Cidadania, organizado por Maria Victória Benevides e Fábio Kerche e prefaciados por Lula.
Se pessoas com a formação de um Mino Carta ou João Ubaldo sucumbiram à linguagem do preconceito, temos mais é que perdoar as dezenas de jornalistas de menos prestígio que também dizem o tempo todo que "Lula não sabe nada disso, nada daquilo". Acabou virando o que em teoria do jornalismo chamamos de "clichê". É muito mais fácil escrever usando um clichê porque ele sintetiza idéias com a quais o leitor já está familiarizado, de tanto que foi repetido.
O clichê estabelece de imediato uma identidade entre o que o jornalista quer dizer e o que o leitor quer compreender. Por isso, o clichê do preconceito "Lula não entende" realimenta o próprio preconceito. Alguns jornalistas sabem que Lula não é nem um pouco ignorante, mas propagam essa tese por malandragem política. Nesse caso, pode-se dizer que é uma postura contrária à ética jornalística, mas não que seja preconceituosa. Aproveitam qualquer exclamação ou uso de linguagem figurada de Lula, para dizer que ele é ignorante.
"Por que Lula não se informa antes de falar?", escreveu Ricardo Noblat, quando Lula disse que o caso da menina presa junto com homens no Pará "parecia coisa de ficção”. Quando Lula disse, até com originalidade, que ainda faltava à política externa brasileira achar "o ponto G", William Waack escreveu: "Ficou claro que o presidente brasileiro não sabe o que é o ponto G". .
Outra expressão preconceituosa que pegou é "Lula confunde". A tal ponto que jornalistas passam a usar essa expressão para fazer seus próprios jogos de palavras. "Lula confunde agitação com trabalho", escreveu Lúcia Hipólito. Ou usam o confunde para desqualificar uma posição programática do presidente com a qual não concordam. "O presidente confunde choque de gestão com aumento de contratações", diz José Pastore. Confunde coisa alguma. Os neoliberais querem reduzir o tamanho do Estado, o presidente quer aumentar. Quer contratar mais médicos, professores, biológos para o Ibama. É uma divergência programática.
Carlos Alberto Sardenberg diz que Lula confundiu a Vale com uma estatal. "Trata-a como se fosse a Petrobrás, empresa que segundo o presidente não pode pensar só em lucro, mas em, digamos, ajudar o Brasil". Esse caso é curioso porque no parágrafo seguinte o próprio Sardenberg pode ser acusado de confundir as coisas, ao reclamar da Petrobrás contratar a construção de petroleiros no país, apesar de custar mais. Não tem confusão nenhuma, assim como Lula também não fez confusão. Lula acha que tanto a Vale quanto a Petrobrás tem que atender interesses nacionais. Sardenberg acha que ambas devem pensar primeiro na remuneração dos acionistas.
A linguagem do preconceito contra Lula sofisticou-se a tal ponto que adquiriu novas dimensões entre elas a de que Lula tem até problemas de aprendizagem ou compreensão da realidade. Ora, justamente por ter tido pouca educação formal, Lula só chegou onde chegou por captar rapidamente novos conhecimentos, além de ter memória de elefante e intuição.
Mas na linguagem do preconceito, "Lula já não consegue mais encadear frases com alguma conseqüência lógica", como escreveu o Paulo Ghiraldelli , apresentado como filósofo na página de comentários importantes do Estadão. Ou, como escreveu Rolf Kunz, jornalista especializado em economia e também professor de filosofia: "Lula não se conforma com o fato de, mesmo sendo presidente, não entender o que ocorre à sua volta".
Como nasceu a linguagem do preconceito? As investidas vêm de longe. Mas o predomínio dessa linguagem na crônica política só se deu depois de Lula ser eleito presidente, e a partir de falas de políticos do PSDB e dos que hoje se autodenominam Democratas. "O presidente Lula não sabe o que é pacto federativo", disse Serra, no ano passado. E continuam a falar: "O presidente Lula não sabe distinguir a ordem das prioridades", escreveu Gilberto de Mello. "O presidente Lula em cinco anos não aprendeu lições básicas de gestão", escreveu Everardo Maciel na Gazeta Mercantil.
A tese de que Lula confunde presidencialismo com parlamentarismo foi enunciada primeiro por Rodrigo Maia, logo depois por César Maia, e só então repetido por jornalistas. Um deles, dias depois dessas falas, escreveu que "só mesmo Lula, que não sabe a diferença entre presidencialismo e parlamentarismo, pode achar que um governante ter a aprovação da maioria é o mesmo que ser uma democracia no seu sentido exato".
O preconceito é juízo de valor que se faz sem conhecer os fatos. Em geral é fruto de uma generalização ou de um senso comum rebaixado. O preconceito contra Lula tem pelo menos duas raízes: a visão de classe, de que todo operário é ignorante, e a supervalorização do saber erudito, em detrimento de outras formas de saber, tais como o saber popular ou o que advém da experiência ou do exercício da liderança. Também não aceitam a possibilidades das pessoas transitarem por formas diferentes de saber.
A isso tudo se soma o outro preconceito, o de que Lula não trabalha. Todo jornalista que cobre o Palácio do Planalto sabe que é mentira, que Lula trabalha 12 a 14 horas por dia. Mas ele é descrito com freqüência por jornalistas como uma pessoa indolente.
Não atino com o sentido dessa mentira, exceto se o objetivo é difamar uma liderança operária, o que é, convenhamos, uma explicação pobre. Talvez as elites e com elas os jornalistas não consigam aceitar que o presidente, ao estudar um problema com seus ministros, esteja trabalhando, já que ele é "incapaz de entender" o tal problema. Ou achem que, ao representar o Estado ou o país, esteja apenas passeando, porque onde já se viu um operário, além do mais ignorante, representar um país?

Bernardo Kucinski, jornalista e professor da Universidade de São Paulo, é colaborador da Carta Maior e autor, entre outros, de “A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro” (1996) e “As Cartas Ácidas da campanha de Lula de 1998” (2000).

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

PEDAGOGIA DO OPRESSOR

Victor Alberto Danich
Mestre em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Bacharel em Ciências Políticas e Sociais pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul – IMES, Professor de Graduação do Centro Universitário de Jaraguá do Sul – UNERJ e Gerente da Incubadora de Projetos Tecnológicos, do Núcleo de Desenvolvimento Integrado de Incubação – JaraguaTec.

1 Introdução

Neste trabalho, apresenta-se uma abordagem crítica do Artigo “Pedagogia do Oprimido?”, de autoria de Marco Aurélio Antunes, publicado em Mídia Sem Máscara (2004), no sentido de exemplificar, de maneira pedagógica, como a construção ideológica da realidade social pode ser feita através de determinados juízos de valor, cujo ponto de partida e objetivos são sempre, mesmo de modo inconsciente, a apologia da ordem de coisas existentes ou, pelo menos, a “demonstração de sua imutabilidade”, tentando-se suprimir desse modo, todo processo de evolução histórica centrado num relato da sociedade como realidade concreta.
Num modo de produção capitalista, negar a existência de classes é negar a própria dinâmica dos processos históricos, no qual a “consciência”, como sujeito concreto, é o único meio pelo quais os homens podem relatar cada momento de sua existência. Nas sociedades pré-capitalistas, as classes não podiam ser destacadas da realidade histórica, a não ser por meio de uma interpretação “das conexões complicadas e ocultas” daqueles modelos sociais. Isso acontecia porque os interesses econômicos de classe só surgiram com o advento do capitalismo, no qual, os momentos econômicos tornam-se uma realidade concreta presente na própria consciência de seus gestores. Com o aparecimento do capitalismo e a conseguinte extinção da estrutura estamentária o feudal, surgiu uma nova sociedade de articulações puramente econômicas, na qual a lutas sociais refletiram-se num confronto ideológico entre a descoberta ou a dissimulação do caráter de classe desse modelo social.
Segundo Lukács (1979), a consciência de classe é “ao mesmo tempo uma inconsciência de sua própria situação econômica histórica e social, determinada de conformidade com a classe”. Essa situação é dada como uma relação estrutural condicionada a partir de uma “ilusão ideológica”, que não permite perceber a diferença entre a passividade de uma classe e o caráter dominador de outra. Isso significa que, a vocação de uma classe para dominar a sociedade, vai depender como a mesma organizará o conjunto dos interesses de classe num determinado momento histórico. Entretanto, esses interesses permanecem ocultos por trás dos móveis dos homens que atuam nesse processo, já que o mesmo deve ser apresentado com um caráter a – histórico, no qual as forças produtivas da sociedade se apresentam apenas como leis da própria natureza, e não como instrumentos sujeitos a decisões puramente humanas.
O trabalho de Paulo Freire, excepcional na sua metodologia e extraordinário no seu conteúdo, expressa, de um ponto de vista pedagógico, a mazelas da sociedade capitalista, assim como também as relações de poder que se instalam na própria organização burguesa da sociedade. Parte da idéia fundamental de que educador e educandos são sujeitos indissolúveis na tarefa de recriar o conhecimento. Ao desvelá-lo através da reflexão histórica, supera-se a concepção “bancária” como instrumento de opressão, e parte-se para a construção de uma nova forma de pensar o mundo, que privilegie “a presença dos oprimidos na busca de sua liberdade”, por meio da transformação da sociedade através da conscientização educadora.

2 A construção ideológica da realidade

Mostra-se evidente, que o texto de Marco Aurélio Antunes, encontra-se muito longe de uma interpretação baseada em argumentos históricos. Suas colocações não passam de uma análise superficial de acontecimentos fragmentados, levando-o a fazer uma leitura incorreta do pensamento de Paulo Freire enquanto significado do termo “opressor” e “oprimido”, usando, para isso, o argumento da inexistência de classes sociais como categoria histórica.
Ao afirmar que “para que exista classe social não basta haver diferenças de renda” senão que “é preciso que as pessoas de um determinado grupo social se reconheçam como uma unidade, que tenham os mesmos propósitos” está, curiosamente, apenas confirmando alguns dos requisitos para a sua existência. Esse erro conceitual desmorona o edifico ideológico com o qual o autor tenta sustentar seu discurso, principalmente ao dizer que “para provar a existência das classes sociais, é necessário provar que elas estão em conflito”.
Não é a ocupação, nem o montante dos rendimentos, nem o estilo de vida, que constitui o principal critério para definir uma classe social, embora todos sejam critérios secundários para sua identificação. Esses aspectos, assim como o poder político, não são mais do que fatores dependentes que refletem a característica fundamental das classes sociais.
Lênin, citado por Ossowski (1964, p.89) expôs o conceito de uma forma muito clara:
“Chamam-se classes sociais aos grandes grupos de homens que se distinguem pelo lugar que ocupam num sistema historicamente definido de produção social, por sua relação (na maioria das vezes fixada e consagrada por lei) com os meios de produção, por seu papel na organização social do trabalho e, conseqüentemente, pelos meios que têm para obter a parte da riqueza social de que dispõem e o tamanho desta. As classes são grupos de homens, dos quais um pode apropriar-se do trabalho de outro, em virtude da posição diferente que ocupam num regime determinado da economia social”.

As classes sociais, como categorias históricas, sempre estiveram ligadas à evolução e ao desenvolvimento da sociedade; encontram-se no interior das estruturas sociais constituídas historicamente. As diferentes classes existem em formações sócio-históricas particulares, e nunca foram imutáveis no tempo: formam-se, desenvolvem-se, modificam-se na medida em que a sociedade se transforma. Representam, ao contrário da opinião de Antunes, as contradições principais da sociedade; são o resultado dessas contradições e, por sua vez, contribuem para o desenvolvimento das mesmas.
Entre as classes e a sociedade e entre elas mesmas existe um movimento dialético constante, cujas particularidades só podem ser descritas através da investigação empírica. É exatamente isso que Paulo Freire (2001, p.126) quer dizer ao expressar que “não há nada, contudo, de mais concreto e real do que os homens no mundo e com o mundo. Os homens com os homens, enquanto classes que oprimem e classes oprimidas”.
Antunes, ao negar a existência das classes sociais está, sem perceber, mascarando a realidade social através de juízos de valor, próprios dos interesses de classe que tentam obscurecer aquele conceito. As oposições entre as classes não acontecem apenas no campo acadêmico, também se manifestam em todos os níveis da ação social, sobretudo no campo político e econômico. As classes, não são apenas elementos estruturais e inofensivos da sociedade. Também são agrupamentos e grupos de interesses político-econômicos particulares que, em determinadas circunstâncias, adquirem consciência de si mesmos e partem para a conquista do poder, colocando os aparelhos ideológicos do Estado a seu serviço. (ALTHUSSER, 2001).
Por tanto, contrariamente ao que Antunes sustenta, ao dizer que os fatos históricos não demonstram haver conflitos entre as classes, poder-se-ia verificar, ao contrário, que as lutas e os conflitos entre as classes são a expressão concreta das contradições internas de sistemas sócio-econômicos específicos. As relações que existem numa época determinada entre as classes da sociedade, se refletem na estrutura do poder e no Estado. Se bem que o Estado representa, quase sempre, os interesses da classe dominante, este pode na prática, muitas vezes, assumir um papel mediador entre as diferentes classes ou categorias sociais, passando uma impressão de neutralidade. Por outro lado, as revoluções sociais, em sua qualidade de transformações das estruturas sócio-econômicas, implicam a substituição no poder duma classe por outra. Mas nem todas as substituições desse tipo implicam revoluções sociais radicais. Existem alternativas para intervir no sentido de modificar o curso do desenvolvimento social.
A “revolução” de Paulo Freire é a conscientização através da alfabetização. É a revelação da essência da sociedade, transformando-se na teoria objetiva da consciência de classe rumo a sua possibilidade real. Essa revolução estaria centrada na mudança dos antigos valores por novos desígnios culturais, que leve as massas à conquista de sua liberdade. Qual conquista seria essa? A desmistificação do mito burguês, aquele ao qual Freire se refere:

“O mito, por exemplo, de que a ordem opressora é uma ordem de liberdade. De que todos são livres para trabalhar onde queiram. Se não lhes agrada o patrão, podem então deixa-lo e procurar outro emprego. O mito de que “esta ordem” respeita os direitos da pessoa humana e que, por tanto, é digna de todo apreço. O mito de que todos, bastando não ser preguiçosos, podem chegar a ser empresários – mais ainda, o mito de que o homem que vende, pelas ruas, gritando: “doce de banana e goiaba” é um empresário tal qual o dono de uma grande fábrica. O mito do direito à educação... O mito da igualdade de classe, quando “o sabe com quem está falando?”é ainda uma pergunta dos nossos dias. O mito do heroísmo das classes opressoras, como mantenedoras da ordem que encarna a “civilização ocidental e cristã” que elas defendem da “barbárie materialista”.... O mito da operosidade dos opressores e o da preguiça e desonestidade dos oprimidos. O mito da inferioridade “ontológica” destes e o da superioridade daqueles” (FREIRE, 2001, p.137)


3 Uma pequena história do trabalho assalariado

Torna-se importante fazer um pequeno parêntese neste item, de modo a entender porque é necessário abordar a opinião de Antunes quando diz que “Paulo Freire não é um investigador que quer saber como é a realidade; ele quer moldá-la segundo as suas taras ideológicas” e cita “Se toda compra e venda de trabalho é escravidão, então os trabalhadores de países desenvolvidos, que recebem bons salários, são tão escravos quanto os miseráveis dos países atrasados?” .
Colocar esta afirmação fora do contexto histórico do desenvolvimento capitalista, representa uma audácia sem limites. Um leitor desprevenido até poderia ser convencido com tal argumentação. Entretanto, é importante relembrar alguns fatos históricos da acumulação primitiva do capital como forma de desmascarar tal posicionamento ideológico. É importante analisar com detalhes o que segue.
Desde tempos remotos, na Inglaterra do século XII, os camponeses empregaram vários modos de regular o uso da terra em função de práticas comunitárias que, restringindo certas práticas e aplicando certos direitos, serviram para distribuir os frutos da terra de maneira mais eqüitativa, e geralmente, para ajudar os membros menos favorecidos da comunidade. Aquelas práticas consuetudinárias permitiram que a propriedade privada das terras estivesse sujeita as algumas regras comunitárias, na qual os membros da comunidade tinham o direito de colher sobras das lavouras, da pastagem ou o direito de apanhar lenha nas terras particulares. Entretanto, a partir do século XVIII, surge uma imensa pressão por parte dos latifundiários e fazendeiros capitalistas para que as terras ficassem livres dos direitos consuetudinários de maneira de não interferirem no processo de acumulação capitalista, efeumisticamente chamado de “uso produtivo e lucrativo das propriedades”. A partir dessa premissa, o cercamento das terras traz uma redefinição dos direitos de propriedade, que além extinguir os direitos comunais históricos, conquistou as terras para a agricultura capitalista, lançando milhões de camponeses a uma vida de mendicância e vagabundagem, além de entregarem “à indústria das cidades os braços dóceis de um proletariado sem lar e sem pão”.
A legislação contra a vadiagem promulgada no fim do século XVI, em grande parte da Europa, tratou o novo proletariado como criminosos voluntários, na qual, a antiga população das terras comunais, violentamente expropriada e reduzida à mendicância, deveu-se submeter à disciplina que exige o trabalho assalariado através de leis desumanas e grotescas: “o açoite, a marca com ferro no fogo, a tortura e a escravidão”.
A Legislação sobre o trabalho assalariado, “Statute of Labourers” em 1349, foi inaugurada na Inglaterra pela Câmara dos Comuns (ou seja, os compradores de trabalho), que estabelecia o máximo legal acima do qual o salário não podia ser elevado, deixando de lado, sem problemas de consciência, a prescrição do mínimo legal. Eduardo VI, em 1547 ordenou, através de um estatuto no primeiro ano de seu reinado, que todo indivíduo refratário ao trabalho seja julgado como escravo da pessoa que o tenha denunciado como “vadio”, obrigando-o, por direito, aos serviços “mais repugnantes por meio do chicote e da corrente”. John Strype, citado por Marx, em seus “Annals of the Reformation and Establishment of Religion”, refere-se aos indivíduos que circulavam pelo país mendigando eram imediatamente declarados vagabundos e, os Juízes de Paz, em sua maioria proprietários de terras, manufatureiros, pastores protestantes ou outros membros das classes mais privilegiadas, “investidos de jurisdição criminal em suas sessões ordinárias”, podiam usar as leis para açoitá-los publicamente e condená-los a seis meses de prisão ou, se for o caso, à execução sumária sem qualquer tipo de compaixão.
Em 1871, finalmente foi reconhecida a existência legal das sociedades operárias de resistência – “Trade Unions”, porém subordinadas as leis contra as associações, regulamentadas por uma legislação de exceção, interpretada e manipulada pelos patrões na sua condição de Juizes de Paz. Encontramo-nos no século XXI, e as atrocidades relatadas parecem coisas do passado. No entanto, milhões de trabalhadores ainda circulam pelos continentes “sem lar e sem pão” sujeitos a um modelo burguês de justiça do trabalho, inconscientemente reprodutor das velhas práticas, porém disfarçado de contemporaneidade, que se empenha em dar prioridade “aos modelos burocráticos de gestão” do que cumprir com seu papel fundamental, que é resguardar a dignidade dos trabalhadores que são, em última instância, os produtores diretos da riqueza deste mundo. Será que Paulo Freire, como educador, tinha uma visão deformada desta realidade social?.

4 Dependência e liberalismo econômico

Paulo Freire tenta ser desqualificado por Marco Aurélio Antunes quando cita que: “Para Freire, a economia é um jogo de soma zero, em que o enriquecimento de um país é resultado da exploração dos mais pobres” – e continua – “É uma teoria completamente ridícula, só defendida por pessoas que ignoram as mais básicas noções de economia” – e conclui – “A história contemporânea desmente a “teoria da dependência” e outros delírios dos socialistas”. Curiosamente, tal teoria é obra do ex-presidente e sociólogo Fernando Henrique Cardoso, uns dos principais articuladores da política neoliberal implantada no Brasil durante seu governo.
O erro conceitual de associar o fracasso das economias planificadas ao suposto triunfo do capitalismo mostra, por parte de Antunes, um absoluto desconhecimento do desenvolvimento histórico desses modelos econômicos. Deve-se lembrar que o capitalismo foi salvo na década de 30 pelas políticas de interferência do governo na economia. Durante esse período, o economista inglês John Maynard Keynes, em plena crise da Bolsa de Valores, demonstrou que o auto-ajustamento do mercado era apenas um mito, influenciando aos governos a utilizarem uma política de tributação, de empréstimos e gastos, com clara intervenção estatal. Por outro lado, o pretenso “atraso econômico” latino-americano não é produto da incapacidade de seus povos ou das esquerdas utópicas, e sim de uma história de pilhagem e espantosos tormentos devidos à brutal expansão do capitalismo.
A ideologia neoliberal se lambuza com o fracasso da economia planejada do “socialismo real” e se vangloria pelo avassalador triunfo da economia de mercado. Entretanto, vale a pena perguntar-se o que é o “capitalismo real” nessa contingência histórica. Ele não consiste apenas no desenvolvimento criativo e privado das forças produtivas. Seu lado sombrio sempre é disfarçado quando se trata de impor a idéia do progresso, da eficiência e da produtividade. A expansão do capitalismo sempre esteve vinculada a um processo histórico de espoliação e colonialismo. Durante estes últimos duzentos anos, a chantagem financeira e tecnológica somou-se à concorrência desleal e livre do poderoso frente ao fraco. Para isto, não é necessário relembrar o muro econômico que dividia as “duas Alemanhas”. Basta olhar para o muro construído recentemente, que separa a opulência americana dos pobres que habitam o imenso território que vai do México à Terra do Fogo.
Bastaria acrescentar que a característica mais perversa do modelo neoliberal que vigora na atualidade é a espoliação das economias dependentes. Há exemplos desoladores da aplicação de políticas liberais de privatização e financeirização da economia, como é o caso da Argentina, que teve uma imensa classe média intelectualizada e poderosa até a década de setenta, que esfumou-se por arte de mágica durante o regime militar, cuja tarefa foi preparar o terreno para o modelo neoliberal dos anos 80. Isso quer dizer que não existem exemplos lineares que procurem artifícios para justificar a pobreza dos povos.
É evidente que a idéia de democracia burguesa e liberalismo faz sentido para o seleto grupo das famílias mais ricas do Brasil, que possuem “privadamente” em suas mãos, nada menos que o 75% do PIB brasileiro. Certamente que a palavra liberalismo é uma palavra mágica para apenas 5 mil famílias que, sozinhas, detêm 45% da riqueza produzida em um ano no Brasil. Essas pessoas não são seres diabólicos prestes a tirar o sangue dos pobres. São seres humanos que circulam dentro de uma realidade construída socialmente, que está direcionada para atender os interesses de classe à qual pertencem. O surgimento de movimentos de esquerda nacionalistas e estatizantes, que o jargão de direita chama pejorativamente de populistas, é a resposta, tal vez cambaleante, ao fracasso do modelo neoliberal como alternativa social. Esse fracasso é resultado da procura voraz de acumulação financeira e concentração de renda de maneira eticamente desprezível.
Nesse paradigma ideológico, a democracia que imaginamos deve estar assentada em mecanismos políticos que garantam, com feições humanas, o prevalecimento dos valores coletivos sobre os individuais ou, como diz Paulo Freire “A ação cultural, ou está ao serviço da dominação – consciente ou inconscientemente por parte de seus agentes – ou está a serviço da libertação dos homens”.
5 Sobre modelos de sociedade

Marcos Aurélio Antunes refere-se a “pedagogia do oprimido” como uma doutrinação ideológica, que resultaria na imposição de uma ditadura comunista, usando como argumento uma crítica feroz ao pensamento de esquerda que predominava nos movimentos sociais da década de 60. Parte do pressuposto do fracasso das economias socialistas e das previsões erradas dos intelectuais de esquerda daquela época dizendo que “a esdrúxula idéia de ser para si na verdade é uma abstração vazia, que nada significa”.
Antunes elabora um exemplo detalhado, citando fontes estatísticas, do fracasso da Revolução Russa e suas implicações sociais. Entretanto, o colapso comunista na antiga União Soviética e no Leste Europeu ainda continua provocando acaloradas discussões intelectuais com sabor de vitória, como se tudo não passasse de uma mera competição ideológica, que confirmou na prática o fracasso de um modelo alternativo para a economia mundial.
O prazer da lembrança está centrado na crítica ao suposto irrelevante saudosismo de alguns sonhadores ingênuos, esperançosos do alcance da prosperidade material num mundo construído com justiça social. No entanto, a essência da crítica intelectual deve estar direcionada, além das instâncias do passado, também para a análise das conseqüências advindas de um mundo que, até então polarizado ideologicamente, entra numa fase contraditória entre democracia e um tipo de sociedade que funda sua sustentabilidade apenas na maximização do lucro. Na atualidade, existem muitas razões para fazer uma revalorização crítica do fracasso da experiência do socialismo estatista e da burocracia coletivista que caracterizou ao modelo soviético, fundamentalmente na idéia de concebê-lo a partir da construção de um socialismo pluralista e democrático. Mas para isso é necessário entender que a volatilização das ilusões que estimularam as fantasias da globalização neoliberal, centrada no renascimento econômico dos países subdesenvolvidos, da transição para o capitalismo da Europa Oriental, do surgimento dos tigres asiáticos e, sobretudo, da prosperidade ilimitada dos Estados Unidos, terminou por mostrar a verdadeira cara de um modelo em que todos os agentes econômicos dependem do mercado, nos quais os requisitos da competição e a maximização do lucro são colocados como regras fundamentais da vida e do progresso. Se essa alternativa se configurar como sempre acontece, em crises econômicas cíclicas, ela termina afetando o grosso do trabalho da sociedade gerado por trabalhadores sem posses que, vendendo sua força de trabalho no mercado a fim de subsistirem, terminam condenados a um humilhante processo de exclusão social.
Porém, a pesar das fraquezas e as contradições do sistema capitalista, seus defensores são incapazes de mudar a convicção de que não existe nem poderá haver qualquer alternativa a esse paradigma econômico. Essas idéias são respaldadas não apenas pelo feitiço ideológico neoliberal, senão por crenças dogmáticas que apresentam as leis do movimento histórico como essencialmente capitalista. Certamente, pensadores e poetas perseguidos no regime comunista tinham poucas chances de sonhar, o realismo soviético coletivizava sua individualidade. No sistema capitalista, por outro lado, todos, inclusive poetas e pensadores, que também são produtores diretos em relação ao mercado, terminam subordinando seu intelecto a regras bem definidas, que transforma sua força de trabalho intelectual numa simples mercadoria, entregada a um modelo de alienação que impõe o mais rigoroso limite ao possível sonho singular de um mundo sem explorados. O pensamento de Paulo Freire existe para confirmar essa tendência.

6 Alguns dados estatísticos que mostram o fracasso do liberalismo econômico


A partir dos anos 70, de acordo com Roldán (2000), a avalanche financeira sepultou por completo as estruturas de produção material e propiciou a terceirização nas economias mais poderosas. Foi justamente nos Estados Unidos que esse processo mais avançou, transformando-se num parasitismo colossal, com suas fases especulativas, que terminou provocando uma ruptura cultural dramática. A nova economia global do imaginário burguês terminou substituindo o engenheiro industrial pelos operadores de bolsa. O mundo dos produtos tangíveis perdeu terreno diante da “economia virtual”, de acordo com as necessidades estratégicas da burguesia gerencial que começava a perfilar-se no novo cenário mundial.

A desregulamentação econômica não necessariamente significa um passo no avanço civilizatório. Os gestores desse processo, chamado de “destruição criadora”, Margaret Thatcher e Ronald Reagan, conseguiram transformar os Estados em espectadores falidos, em soberanias apenas nominais, incapazes de sustentar o consumo social, facilitando a desregulamentação, liberalização, flexibilidade, alivio de cargas tributárias e facilitação das transações no mercado financeiro imobiliário e trabalhista, abandonando uma grande parcela dos trabalhadores à sua própria sorte, condenados sem qualquer sensibilidade, a um perverso processo de exclusão social. A única tarefa permitida ao Estado é a realização de um “orçamento equilibrado” deixando ao “ímpeto explorador das empresas” a tarefa da inexorável disseminação das regras do livre mercado.

Acompanhando esse novo “paradigma econômico”, Ohmae (1997), afirma que “os estados-nações se converteram em unidades de operação artificiais, inviáveis mesmo em uma economia mundial”, substituindo definitivamente a ultrapassada idéia de “soberania política” como também a “democracia liberal como aquela aplicada no ocidente”, já que ambos os conceitos seriam um empecilho para o desenvolvimento da economia global, numa clara justificativa das “promessas de prosperidade” do novo modelo neoliberal.

Entretanto, Beinstein (2001) recusa essa visão dizendo que o processo de globalização em andamento “carece da ética necessária para sustentar-se politicamente”, citando que as transações financeiras intercambiais puramente especulativas, chegaram em 1998 a um volume diário de US$ 1,3 bilhão, cinqüenta vezes mais que o volume de trocas comerciais, e quase o mesmo que a soma das reservas de todos os “Bancos Centrais” do mundo, que é de US$ 1,5 bilhão. Nenhum Estado é capaz de resistir tamanha pressão especulativa sem perder sua autonomia técnico-financeira. Por outro lado, a rede global de comunicação que supostamente deveria ser uma forma de compartilhar “emoções e dinheiro” é na realidade usada de maneira seletiva. Os pobres do mundo, sejam do velho ou do novo, hereditários ou frutos da computação, dificilmente terão a possibilidade de participar numa esfera onde novas fortunas, nascem, crescem e florescem na realidade virtual, totalmente aléias da rude realidade dos excluídos. Na antiga economia Keynesiana, os ricos precisavam dos pobres para enriquecer-se. Os novos ricos do mundo global não mais precisam deles. O sonho liberal do operário descartável está próximo de concretizar-se. Este fato está muito bem detalhado por Beinstein (2001), quando cita o Relatório do Banco Mundial de 1999, Sobre o Desenvolvimento, que indica que a riqueza total dos 358 maiores “bilionários globais” equivale à renda somada dos 2,3 bilhões mais pobres, que corresponde a 42% da população mundial. O informe acrescenta que só 22% da riqueza global pertencem aos chamados “países em desenvolvimento” que representam 80% da população mundial, conforme a figura 1.


Países Participação na população mundial Participação no Produto Mundial Bruto
Alta Renda 15% 78,4%
G7 11,5% 65,1%
Média e baixa renda 85% 21,6%

Figura 1 – Países centrais e periféricos na economia mundial – 1999. (BEINSTEIN, 2001).
Se estas estatísticas forem analisadas a partir da parcela de renda global, pode-se observar que em 1991, 85% da população mundial recebiam apenas 15% desse total. Em termos de evolução do PIB mundial que chegou a 28.940 bilhões de dólares em 1994, contra 8.280 em 1960, verifica-se que cerca de 50% desse PIB está concentrado nas mãos dos países desenvolvidos. Estes países, por outro lado, captam 80% dos investimentos produtivos, sendo que para o resto do mundo sobram os restantes 20%. É evidente que esse quadro econômico faz parte da nova economia global (que o autor coloca como única alternativa de revitalização básica do capitalismo avançado). Por outro lado, aceitar de forma contundente essa realidade significaria assumir um outro tipo de posicionamento ideológico, evidentemente contrário às estratégias do mercado global capitalista, e muito longe das intenções do senhor Antunes, já que colocariam em tela de juízo os fundamentos de seu discurso, que estaria direcionado a justificar sua “pedagogia do opressor”, destinada a mascarar essa própria realidade.

8 O horror do Che Guevara

Na verdade, Paulo Freire refere-se a Guevara como um líder revolucionário capaz de transformar a realidade através de uma ação intelectual e combativa. A figura grandiosa do “Che” transformou-se num ícone cultural que, apesar de seus erros, espalhou-se em todos os continentes como símbolo de rebeldia. Essa é a origem do horror que sua imagem causa nas mentes “pequeno-burguesas” de uma sociedade que fundamenta seu estilo de vida numa única missão: preservar a qualquer custo a “propriedade privada” como meta de sucesso individual.
Do ponto de vista sociológico, circular na rua com uma camiseta do Che Guevara pode provocar tal desaprovação a ponto de criar mal-estar em algumas pessoas, que atônitas, não chegam a compreender semelhante ato falho. Outras, mais pragmáticas, tentam conter um sorriso de desdém, como se estivessem olhando para um excêntrico. Alguns, ajustados ao mundo racional do mercado esboçam uma alternativa para aquela imagem, por exemplo, a de Adam Smith, que seria a figura mais conveniente, do ponto de vista ideológico, ao modelo neoliberal que predomina na atualidade. Não poderia ser de outra forma, já que neste início de século foram decretados pelos economistas políticos, o fim das ideologias e o triunfo do capitalismo. Na sociedade capitalista, a passividade do pensamento acrítico é o princípio da ordem. A sua reprodução histórica depende disso. Para tanto, os representantes da ideologia liberal usam o conceito da “mão invisível” para aliar a lógica do mercado às virtudes conservadoras da sociedade burguesa. Smith dizia que os homens devem ser ferozes na concorrência e humildes perante Deus. O sucesso dessa fórmula estaria no cruzamento do altruísmo e egoísmo, no cuidado meticuloso do cálculo dos custos e benefícios e na prática permanente da moralidade religiosa.
Numa imagem que faz de si próprio, o ocidente cristão configura-se como um mundo livre, racional e democrático, sem pretensões totalitárias ou populistas, no qual, todo indivíduo possui o direito de obter a felicidade a partir de seus próprios interesses particulares. Nesse contexto, o fundamentalismo liberal afirma de modo incoerente que o objetivo da produção é atender a falta de bens da população. Entretanto, a verdade é que a produção moderna está focada na maximização do lucro privado, no qual os bens produzidos devem render mais dinheiro do que os custos produtivos.
Nada disso está direcionado para cobrir as necessidades sociais, apenas serve para dar sustentabilidade à empresa num sistema de concorrência. Smith, em seu livro “A Riqueza das Nações” já tinha percebido esse fenômeno quando dizia “O interesse dos empresários por qualquer ramo de comércio ou indústria é sempre, em alguns aspectos, diferente e até mesmo oposto aos interesses do povo. Seu interesse é sempre diminuir a concorrência, e só poderá servir para permitir, ao aumentar seus lucros, cobrir, em proveito próprio, um imposto absurdo do resto de seus concidadãos”. Nada mais esclarecedor para dimensionar ideologicamente um pensador que tanto fez para institucionalizar um sistema econômico que hoje predomina sem questionamentos.
A estampa do Che Guevara numa camiseta, além de seu conteúdo banalizado pela propaganda inconseqüente, tem a característica, para aqueles que viveram a experiência da convergência da cultura e a política, de perceberem que o poder também pode existir em outros âmbitos da sociedade. O Che foi o emblema da revolta cultural, que permitiu sonhar com a capacidade de resistir ao domínio de classe, de duvidar de sua legitimidade, de contestar sua perpetuação. Nada tem de subversivo andar na rua com uma camiseta com a estampa do Che. Ela está destinada a resgatar os símbolos infiltrados no inconsciente da sociedade, como práxis cultural, muito longe daqueles que pautaram sua vida em ícones pecuniários como meta para sua existência terrena.

9 A educação como reprodutora da sociedade

Na sua maratona ideológica, Marco Aurélio Antunes faz uma crítica às restrições de Paulo Freire com relação a idéia de que a própria pedagogia é “oprimida”, opondo-se no sentido de que a educação “não tem como objetivo principal a transformação social” – e sim – “A educação é essencialmente a aquisição da autonomia do indivíduo, é um fim em si mesma, com a qual o indivíduo pode elevar-se, libertar-se: só quem é capaz de pensar por conta própria sabe o caminho a seguir; logo, só as pessoas educadas são livres”.
Entretanto, há um erro conceitual nessa definição de educação. Toda sociedade funciona através de mecanismos de controle social, impondo aos grupos normas e sanções sociais através da institucionalização das mesmas. Falar de “instituição” refere-se a um complexo específico de ações sociais. Isso sugere que as leis, as classes sociais, a educação e as religiões, sejam instituições que funcionam como um órgão regulador, pelo qual a conduta humana é padronizada e direcionada para comportamentos considerados desejáveis pela sociedade, e que são organizados e colocados em prática de forma tão sutil que o indivíduo os aceita como verdadeiros e sem questionamentos.
Pode-se observar que a canalização de determinados tipos de comportamentos traz consigo a idéia de que a sociedade não passa de uma gigantesca prisão, no qual os fatos sociais “são coisas” segundo a afirmação de Emile Durkheim, “possuidoras de uma existência objetiva externa a nós”. A sociedade, como fato externo à consciência individual, manifesta-se, sobretudo, na forma de coerção. As instituições moldam a conduta dos indivíduos e suas ações. Serão recompensados enquanto se limitem a representar seus papéis. Se saírem fora deles, a sociedade pune-os com vastos meios de controle e coerção. As sanções da sociedade são capazes, em todo momento, de condená-los ao opróbrio, de expô-los ao ridículo, de privá-los do sustento ou da liberdade.
Percebe-se com isso, que a dignidade humana é uma questão de permissão social. A lei e a moralidade da sociedade podem apresentar milhares de justificativas para cada uma dessas ações, e a maioria das pessoas aprovará candidamente a sua aplicação como castigo pelo “desvio”. O ser humano não vale nada como biografia individual, apenas a sociedade como entidade histórica tem as atribuições de homologar o “repertório de papéis”, no qual a submissão total a esses padrões de comportamento, dificilmente perturbará aqueles que são incapazes, devido a sua posição social privilegiada, de questionar a sociedade nas possíveis falhas de reprodução do modelo social vigente.

10 Manipulação e consciência de classe

Paulo Freire, ao falar de manipulação, descreve como as os grupos de poder estimulam cada um delas a querer representar a sociedade, pretendendo e decidindo a sorte e a posição das outras classes. Através da manipulação, esses grupos fazem com que as massas populares não percebam a revelação ou a dissimulação do caráter de classe da sociedade, conforme expressa Freire.

“Através da manipulação, as elites dominadoras vão tentando conformar as massas populares a seus objetivos. E, quando mais imaturas, politicamente, estejam elas (rurais e urbanas), tanto mais facilmente se deixam manipular pelas elites dominadoras que não podem querer que se esgote seu poder. A manipulação se faz por toda série de mitos a que nos referimos. Entre eles, mais este: o modelo que a burguesia se faz de si mesma às massas com possibilidade de ascensão. Para isto, porém, é preciso que as massas aceitem sua palavra” (FREIRE, 2001, p.144).

Com isto, Antunes nunca concordaria, já que o interesse de classe do qual é portadora a inconsciência ideológica, nunca lhe permitiria entender que sua orientação está presa aos sintomas de evolução, e não da própria evolução, configurada em função de manifestações parciais da sociedade e não do conjunto da estrutura da sociedade.
O desenvolvimento histórico das forças produtivas resultou numa capacidade crescente das sociedades de produzirem excedentes sociais cada vez maiores. Nesse contexto histórico, cada sociedade foi dividida, de modo geral, em dois grupos separados. A maioria dos seres humanos, trabalha para produzir o necessário para sustentar e perpetuar o modo de produção, assim como o excedente social, enquanto uma minoria se apropria desse excedente e o controla.
As classes sociais, segundo esse critério, são diferenciadas em função das relações sociais de produção que se estabelecem entre ambas. Uma das características fundamentais do sistema capitalista está definida pela existência de uma numerosa classe trabalhadora, que não possui qualquer controle sobre meios necessários para a execução das atividades produtivas, e apenas pode entrar no mercado se conseguir vender seu único patrimônio, a força de trabalho. Em troca recebe um salário para produzir as mercadorias que pertencem ao capitalista. Dessa forma, as relações sociais de produção se consolidam a fim de garantir a própria reprodução do modelo econômico vigente.
Entretanto, às vezes surgem conflitos entre o capital e o trabalho. Podem ser produto de reivindicações por melhorias salariais, por problemas hierárquicos ou por causa do desemprego compulsivo. É a partir desse momento que surge o que se chama “interesse de classe”, que são as aspirações que manifestam os grupos sociais motivados por problemas atuais de sua existência. Por outro lado, a “consciência de classe” é um dado objetivo vinculado a uma situação objetiva: a situação que cada classe ocupa na produção social.
È possível que um membro de uma classe social adote um posicionamento a favor de uma outra classe diferente, principalmente quando aquela faz parte das camadas populares? Claro que sim, a “posição de classe” refere-se a “tomada de partido” por uma classe determinada, que significa defender e lutar pelos seus interesses de classe, adotar seu ponto de vista, integrar suas fileiras. Existem intelectuais que aderem a essas idéias, porque se convenceram da verdade e a eficácia política de assumir a “consciência de classe”, fundamentada num projeto e numa realidade objetiva baseada nos interesses estratégicos a longo prazo. Paulo Freire sempre foi um deles. Essa é a essência do seu pensamento.

11 Conclusão

A “pedagogia do opressor” encarna a fatalidade de sua própria existência. Ela é incapaz de ultrapassar a plena consciência de sua situação, sujeita a descobrir a ausência da capacidade de evolução. É por isso que a consciência e interesse se encontram em oposição contraditória. Enquanto outras classes enquadradas num processo de produção particular são incapazes de incorporar a consciência de classe, a burguesia pode, conforme expressa Lukács.

“Faze-lo por meio do desenvolvimento da consciência de classe, e unicamente esta vê pesar sobre si – desde o início e em razão de sua essência – a maldição trágica que a condena, alcançando o ápice da sua desenvolução, a entrar em contradição insolúvel com ela própria e, por conseguinte, a suprimir-se a si mesma. A contradição se manifesta, sociologicamente, no que a burguesia está obrigada pôr em ação, teórica e praticamente, para fazer desaparecer da consciência social o fato da luta de classes, apesar da sua forma social parecer, pela primeira vez, a luta de classes em estado puro, e fixado, também historicamente pela primeira vez, essa luta de classes como um fato” (LUKÁCS, 1979, p.34).

Poder-se-ia finalizar dizendo que a dominação da burguesia não passa além da dominação de uma minoria. Como essa dominação é exercida pelo interesse de classe como condição histórica da reprodução do modelo burguês, é necessário que as outras classes se iludam, perpetuando-se numa situação de consciência de classe confusa. A burguesia, para tanto, deve apresentar o Estado como um aparelho institucional impessoal e imparcial, de modo a mascarar a essência da sociedade burguesa e todas suas contradições.
Numa sociedade dividida entre dominadores e dominados há uma luta permanente entre o poder e a libertação. Tal poder deve ser confrontado através de uma ação política conscientizadora, já que não existe para os homens e mulheres atuais, outra determinação mais importante que aquela que surge desta premissa, porque a historicidade do ser humano sempre foi a reprodução de etapas superiores de sua própria humanidade. Tal melhoria como máxima exteriorização de “um comportamento ético”, deve ser, por outro lado, uma atividade direcionada para o exterior. A superação do “ethos” só existe no marco do desenvolvimento das relações externas entre os indivíduos. A atividade transformadora direcionada para o “exterior” é o campo da política, porque o problema do poder totaliza a questão vital da realização humana de cada sociedade.
A sociedade opressora castra essa realização porque não existe nela a criatividade que transcenda o interesse individual; a criação se direciona a competição com os outros, se expressa na individuação em detrimento do coletivo, no lugar da individuação como enriquecimento do social. A libertação de toda forma opressiva é a causa histórica dos oprimidos, que se expressa como uma causa universal, cuja concretização depende de uma situação superior da atividade transformadora: Todo o poder ao povo, porque um poder popular é a eliminação das formas opressivas do controle da sociedade.
O antagonismo entre duas classes historicamente definidas implica uma mútua determinação entre a atividade transformadora e a consciência de sua existência, que é a consciência do antagonismo. A resolução entre as duas formas da consciência: a implícita na prática, que é coletiva e, a outra, superficialmente explícita, expressa uma conjunção de esforços a partir de uma atitude não crítica, que entra em contradição com a primeira porque toda prática significa a ruptura da situação, enquanto a segunda é a legitimação daquilo que não se discute. A resolução dessa contradição resulta numa consciência crítica, uma compreensão da realidade de classe, do indivíduo e das condições de opressão. Surge daí uma prática diferente, porque a atividade transformadora é direcionada a mudar o sistema de poder que legitima essa realidade opressiva.
A compreensão crítica viabiliza uma consciência de identificação e ideologia, já que a imaginação precisa da “hegemonia popular” como única forma de universalizar a liberdade humana. Esta é uma concepção do mundo superior e coerente, consolidada na comprovação de que as lutas pela hegemonia, em diversos momentos históricos, sempre teve como resultado um processo de libertação do ser humano.





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