terça-feira, 20 de maio de 2008

OBRIGADO MARCELA

Se foi a sorte ou azar de teres nascido em épocas tumultuosas, de conviver com pessoas que sonhavam com um mundo diferente e solidário, que imaginavam que poderia ser mudado com voluntarismo e talento, modelado em novas formas de pensamento, devo assumir meus erros nesse percurso.
Se foste seduzida por um homem que te tirou da riqueza confortável e te mostrou os caminhos dolorosos da exclusão, compartilhando contigo o perigo da incompreensão e da intolerância, te peço desculpas.
Se viveste perigosamente convencida de que o poder e o dinheiro não valiam a pena de sermos os Faustos de uma sociedade injusta, de saberes que estávamos juntos numa batalha antecipadamente perdida, e ainda assim foste capaz de olhar com altivez nossos algozes, eu te admiro.
Se conseguimos construir juntos os traços de rebeldia, desejos de liberdade e autonomia, enfrentando fronteiras desconhecidas, tendo a certeza de que qualquer lugar do mundo era bom para recomeçar, que a revolta contra o autoritarismo e a opressão valia a pena continuarmos juntos, eu te agradeço.
Todos esses anos que estivemos lutando lado a lado, serviram para refazer o conhecimento e criar novas agendas de vida. Uma delas foi à gestão solidária de trabalhar com as pessoas humildes, e a outra foi criar a nossa filha. Tudo isso deu certo até que a morte te surpreendeu na viagem. Daí para frente, o mundo se desmoronou, e não consegui reconstruí-lo. Por isso quero que me perdoes.
Mas te garanto. Tudo aquilo que conversávamos com alegria, em sintonia com as promessas do futuro, nunca terminará enquanto algum de nós continue presente. Os caminhos da transcendência de seres que não existem mais, devem ser revitalizados pelas lembranças dos vivos, e, como tenho a certeza de que não há eternidade para os corpos nem para as mentes, resta-me tributar tua presença no inconsciente coletivo daqueles que ainda acreditam. Talvez seja esse o segredo de imaginarmos póstumos. É por isso que quero compartilhar com os desconhecidos a simples tarefa de expressar publicamente esta pequena frase.
Obrigado Marcela.

sábado, 10 de maio de 2008

GARRA E TALENTO

Em princípio, gostaria de esclarecer que este artigo não tem nenhuma pretensão de índole política partidária, e menos ainda o intuito de canalizar a simpatia por tal ou qualquer pessoa. O tema está centrado na resposta comovente de uma mulher que, deixando de lado os ódios revanchistas do passado, teve o talento de reviver o orgulho da militância em resposta a uma argüição de extrema sordidez. Refiro-me à ministra Dilma Roussef, que foi convocada pela Comissão de Infra-Estrutura do Senado para falar sobre o Plano de Aceleração do Crescimento - PAC, e terminou sendo colocada numa armadilha semântica que lhe atribuía o uso da mentira como saída para qualquer tipo de interrogatório. Quando o senador Agripino Maia, do partido Democratas, insinuou que também poderia estar mentindo à atual Comissão, ao lembrar um comentário dela sobre a época em que foi presa e torturada durante a ditadura militar, a resposta da ministra veio com magistral e emocionada lucidez, própria de uma mulher talentosa e aguerrida: “Eu tinha 19 anos, fiquei três anos na cadeia e fui barbaramente torturada, senador. E qualquer pessoa que ousar dizer a verdade para interrogadores compromete a vida dos seus iguais. Entrega pessoas para serem mortas. Eu me orgulho muito de ter mentido, senador, porque mentir na tortura não é fácil. Na democracia, se fala a verdade. Diante da tortura, quem tem coragem, dignidade, fala mentira”.
Tal episódio deixa claro para nós, homens, duas coisas muito importantes para refletirmos. Por um lado, devemos aprender a policiar-nos para evitar nossos devaneios de estupidez e intolerância e, por outro, aceitar humildemente aquilo que as mulheres sempre souberam fazer muito bem ao longo da história da existência humana – sem exageros de superioridade e falsa modéstia – que foi e será o eterno refazer da nossa identidade cultural perante as forças esmagadoras da natureza. Sempre no exercício da valentia da retaguarda, segurando com maestria nossos medos e incertezas. E sempre à frente como reserva moral de um mundo construído culturalmente com feições machistas.

terça-feira, 15 de abril de 2008

AS PROSTITUTAS DE CUBA

O turista paulista ficou espantado quando foi abordado num hotel de Havana por uma “horista” que tinha curso superior de odontologia, mas que precisava de alguns dólares para complementar a renda, muito pouca, por sinal. Uma prostituta dentista, que horror, só em Cuba ocorre esse tipo de monstruosidade. O paulista voltou para o Brasil convencido que esteve no pior país de América. Não importa se há alguma coisa parecida em outros lugares. Cuba é a vitrine do mundo para o pensamento conservador. Qualquer deslize, vocês sabem. Quando tive acesso a tal história, cogitei uma hipótese plausível sobre o paulista: ele não mora no Brasil ou apenas tem a revista Veja como único meio de informação e, mais ainda, nunca leu um livro de economia política ou as “Mil e Uma Noites”.Quero deixar claro que não sou um intelectual portentoso. Gostaria de sê-lo, mas preciso trabalhar muito para sobreviver. O cultivo do ócio está muito longe do meu cotidiano. Mas algumas coisas eu conheço, de Cuba e do mundo. Gostaria que me acompanhassem nesta caminhada impregnada de brutalidade humana.Existem 200 milhões de crianças no mundo que dormem na rua. Outras 250 milhões com menos de 13 anos são obrigadas a trabalhar para viver. Mais de um milhão de crianças são forçados à prostituição infantil e dezenas de milhares são vítimas do comércio de órgãos. 25 mil crianças morrem a cada dia no mundo por sarampo, caxumba, difteria, pneumonia e desnutrição. Nenhuma delas é cubana. Parece que Deus tem uma preferência explícita pela ilha. Vamos continuar?Enquanto nosso amigo paulista centra sua visão míope nos prazeres da vida mundana, 600 milhões de crianças crescem em situação de extrema pobreza. 250 milhões de menores entre 5 e 14 anos trabalham em condições desumanas, assim como 130 milhões não vão à escola em todo o planeta terra. As crianças de rua são estimadas em 200 milhões, sendo que a metade delas entra a cada ano na prostituição. Por outro lado, os menores que trabalham, ou circulam como pequenos fantasmas nas ruas da vida, ficam expostos aos maus tratos de seus patrões, do público e das autoridades, ou pior ainda, dos pedófilos e dos traficantes de todo tipo. Tirando Cuba do páreo, somente em Latino América, 2 milhões de crianças não ingressam na escola e, ao mesmo tempo 800 mil devem abandoná-la para trabalhar pela sobrevivência. Outros 60 mil, com muita menos sorte, perdem a vida diariamente antes de chegar aos 5 anos de idade. Desculpem-me, estão se sentindo horrorizados? Querem parar por aqui?Se alguma pessoa com sensibilidade social quiser continuar lendo minha crônica, vou acrescentar mais alguns dados. 100 milhões de latino-americanos de 10 a 14 anos são presa fácil do banditismo, do comércio de escravas brancas, do narcotráfico e da exploração sexual, entre outros tipos de violência à dignidade humana. Alguma coisa folclórica para acrescentar?Tenho uma, sim. Em Las Vegas, metrópole do jogo de azar e da diversão, caminho obrigatório das elites brasileiras, existe mais ou menos 20 prostitutas por m². A nível de educação, a maioria não passa do primeiro grau, ou são analfabetas. Se estas meninas soubessem que Cuba existe, migrariam em massa para cursar uma faculdade de graça, que o império da fartura e da “liberdade” é incapaz de dar.

BANHEIRO PÚBLICO

Se você estiver interessado em descobrir as verdades inconscientes da nossa espécie, entre num banheiro público. Não pode ser apenas de passagem, tem que ir preparado para realizar uma maratona de lasciva curiosidade. Se quiser continuar acreditando na nossa origem divina, não prossiga, olhe para cima, faça suas necessidades e saia sem olhar para trás. Lembre-se que isto é um exercício de cidadania apócrifa, já que o banheiro público é o único recinto onde se fala de Damas e Cavalheiros, apesar de que é justamente o lugar onde deixamos de sê-lo.
Não estou referindo-me a nossa intimidade privada, senão ao anonimato público, aquele que nos torna reféns dos nossos instintos não declarados. Se estiver a fim de continuar, observe o emaranhado de inscrições. Nas portas de madeira estão as melhores declarações. Imagino que olhando de frente para a porta, o sujeito sentado no vaso sanitário esteja aliciando seus pensamentos em função de um instante prazeroso. Não há nada de degradante nisso. O problema surge no momento em que a fase anal se deslancha em desenhos alusivos rabiscados na porta. Existe certo padrão nas inscrições, como se houvesse um acordo clandestino coletivo. Parte-se do elogio ao melhor time passando pela crítica violenta do torcedor contrário, com frases e expressões que deixaria vermelho ao pior dos exegetas. Na é apenas isso. Há também aqueles que oferecem seus atributos físicos ao ocupante anônimo, sinalizando com desenhos, o tamanho dos mesmos. Como um pacto tácito de interlocutores distantes, tais expressões libidinosas são adornadas, comentadas e enriquecidas com figuras que tentam dimensionar tais atributos com diferentes tipos de letras. E nos espaços livres que ainda ficam, à esquerda e a direita, acima e abaixo, com sinais e figuras anatômicas de dimensões extravagantes, há setas indicadoras mostrando números de telefone, com pedidos e ofertas para aqueles que estejam dispostos a realizar tal o qual fantasias sexuais, combinadas a façanhas masoquistas ou sádicas. Nesse irônico e insultante roteiro, existe a evidência textual de que há pessoas que gostam de participar do mesmo, seja apenas para apaziguar suas fantasias ou, em última instância, exercitar sua perversidade. Se por acaso, alguém disser que isso só pode ocorrer nos banheiros de rodoviárias, eu diria que não. Os devaneios eróticos nada têm a ver com classes sociais. A sociedade humana revela suas impurezas naquele lugar que muitos de nós já suspeitamos – o quarto de banheiro – que talvez seja o único sítio que ainda permaneça em estado filosófico puro.

OS PICARETAS

Quero contar uma pequena história de economia e aventureiros. Vou começar lembrando a crise de 1929. Naquela época havia investidores que especulavam com ações na Bolsa, comercializando papéis com valores que não condiziam com a real situação das empresas. De repente, os preços das ações começaram a cair, os acionistas entraram numa corrida desenfreada para tentar vendê-las, mas não havia pessoas interessadas. As indústrias se viram forçadas a desacelerar o ritmo da produção e, conseqüentemente, a despedir milhares de trabalhadores, afetando o mercado consumidor. Parecia que a “mão invisível” que regulava o mercado se desmoronava na frente dos atônitos ideólogos do liberalismo econômico. O economista John Maynard Keynes sugere abandonar a premissa da automaticidade do mercado, distribuindo a riqueza através do Estado. Legal não? Com a adoção desse plano, o governo passava praticar o intervencionismo econômico. Atualmente, passado um mês do inicio das turbulências internacionais causada pela crise do mercado hipotecário norte-americano, o presidente daquele país anunciou que estava criando uma ajuda emergencial aos “tomadores de empréstimos”, que são aqueles que hipotecaram várias vezes suas casas para entrar no orgasmo do consumo desenfreado. Tais “picaretas anônimos” são tratados como “pobres tomadores de crédito hipotecário com histórico de despejo”. O presidente Bush, a contragosto, implantou, no melhor modelo Keynesiano, o “Bolsa burguesia”, destinada a ajudar com mil dólares, como mínimo, a cada esperto em desgraça. A vida da cada voltas, nê? Resulta engraçado o presidente Lula ligar para seu colega e dizer: “é o seguinte meu filho, o Brasil está há 26 anos sem crescer. Agora que a gente está crescendo vocês vêm atrapalhar?” O Brasil cresce com políticas públicas direcionadas a assistir cidadãos que estão na base da pirâmide social, dando de comer aqueles que nada possuem, aqueles que precisam escapar de décadas de desigualdade social, e aqueles que são, mais do que nada, nossos irmãos. O maior triunfo do Brasil foi transformar o “Bolsa Família” num produto de exportação com know-how gastronômico, com capacidade de salvar bancos e vidas.

COMO LER A REVISTA VEJA

Vou começar dizendo que o sociólogo se ocupa em compreender os fenômenos sociais de modo disciplinado. Para configurar minha sugestão, diria que uma pessoa cria compromissos quando se liga a um determinado grupo, e por tanto “sabe” que o mundo é isso ou aquilo. Outra faz parte de um grupo diferente e passa a “saber” que aquela pessoa está enganada. Tal configuração social nos mostra que os indivíduos têm um ângulo de visão particular do mundo, de acordo com os interesses do grupo ao qual pertencem. Os meios de comunicação atendem essa premissa. Eles nos oferecem um panorama da realidade construída socialmente. A psicanálise já demonstrou como a opinião pública afeta a percepção dessa realidade. Não é de espantar, portanto, que as opiniões mediáticas no tocante a questões políticas, religiosas ou éticas, tenham tanto poder sobre as idéias daqueles que carecem da capacidade dialética de contestá-las. A validade de uma publicação está assentada na aceitação do grupo (se for dominante, melhor) seduzido com sua particular visão dos acontecimentos. A dinâmica sócio-psicológica que condiciona este processo é magistralmente manipulada pela revista Veja. Tal publicação se comporta com se estivesse acima das verdades dos fatos, mascarando argumentos reacionários e agressivos, através de denúncias oportunistas e produção de factóides. Façamos uma pequena radiografia visual do conteúdo desse “pasquim de posto de gasolina”. As páginas coloridas são singularmente atrativas, como prateleira de farmácia. Num total de 134 páginas em cores convidativas, 66 são de propaganda para nossas classes mais privilegiadas. No meio de fofocas de artistas, banqueiros, madames “chiques”, mulheres em biquíni e crônica de mauricinho intelectualizado, encontramos dicas para gordos, doentes, cegos, ginastas, depressivos, velhos e outras tantas maravilhas do cosmos. O terrorismo jornalístico se insinua de forma subliminar, exposto na suas manifestações mais ridículas, de modo a deixar assustados os leitores de classe média. Um exemplo? O presidente Lula é mostrado em primeiro plano com suaves contornos de fundo, de Fidel e Chávez. A ameaça provinciana é o terceiro mandato. Isso deixa muita gente angustiada. Tanto, que são capazes de pular a foto da gostosa Ivete Sangalo na respectiva sessão “trivialidades de banheiro”.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

ORGULHO DE AMÉRICA LATINA

No início da década de 90 estava desconsolado pelos rumos da economia mundial. O triunfo do modelo neoliberal assentado nas ruínas do antigo império soviético, fazia com que as esquerdas de lanchonete entrassem num colapso ideológico profundo. As bandeiras de justiça e igualdade social já não importavam. Agora era a vez de ajustar-se ao novo dono do poder mundial – o mercado – e partir, sem restrições, para a criminalização do Estado, que deveria ser no máximo: “mínimo”. Neste início de século estamos presenciando uma alternativa diferente, que me regozija o coração. O liberalismo econômico está entrando na sua etapa senil. América latina, que é o continente do qual me orgulho de pertencer, está começando a se livrar das hostes do imperialismo globalizado, que nos escravizava nas garras de uma dívida monstruosa.
Felizmente, o pragmatismo do governo brasileiro nos coloca numa situação privilegiada neste crisol de nacionalidades, de modo a construir uma liderança inquestionável no continente. O esforço magistral nestes últimos anos, de modo a dimensionar uma política econômica com capacidade para suportar os ataques especulativos do modelo neoliberal, teve como resultado um fato inédito na história do nosso país. De uma dívida externa, em dezembro de 2002 de US$ 165 bilhões, que colocava o Brasil em situação de “default”, hoje é apenas de US$ 4bilhões. Isso mostra que nossas reservas internacionais apresentam uma evolução sem precedentes, atingindo o patamar de US$ 180,3 bilhões ao final de 2007. O trabalho em conjunto com os outros países integrantes do Mercosul, principalmente na resistência as sugestões recessivas do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, além da armadilha do famoso ALCA, foram os passos decisivos para consolidar nossa independência econômica. Tudo isso se reflete no aumento de popularidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao patamar de 66.8% neste mês. Fato inédito que corrobora o pensamento do grande sociólogo Florestán Fernandes, que sempre dizia em suas inesquecíveis palestras: “seis meses na diretoria de um sindicato, valem por seis anos de sociologia numa universidade”.
Victor Alberto Danich
Sociólogo