quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

AS VEIAS ABERTAS DO IMPÉRIO

Enquanto o mundo desborda numa abundância de informações em tempo real, resultado da abertura de um mercado exuberante de vigilância e controle, com recopilação de dados através de softwares de identificação e procura, ninguém poderia imaginar que o feitiço voltou-se contra o feiticeiro. Durante a década de noventa, as empresas de tecnologia disseminaram as maravilhas de um planeta sem fronteiras, lugar propício para que o poder da tecnologia da informação pudesse derrocar regimes autoritários, inimigos ideológicos, ou aqueles que não combinassem com os interesses globais dos Estados Unidos. Atualmente, e parafraseando Eduardo Galeano, autor do livro “As veias abertas da América Latina”, poder-se-ia dizer que chegou a vez do império sangrar, de forma pública, suas atividades ilegais. Com a revelação de mais de 250 mil novos documentos que envolvem atividades de espionagem dos Estados Unidos no mundo, o site WikiLeaks desmascara a atuação da diplomacia estadunidense, que usou essas novas tecnologias da informação para bisbilhotar dezenas de países, além de planejar deliberadamente derrocadas de governos e ataques a nações soberanas. Os documentos também revelam a atuação de diplomatas norte-americanos na ocupação de Afeganistão e do Iraque, com também, se for o caso, do Irã e o Paquistão.
É importante que, do ponto de vista mediático, tal informação se difunda de forma maciça, de modo a reforçar uma visão mais clara de como funcionam os mecanismos de tortura nos bastidores da luta contra o “islamismo radical” de alguns países do Oriente Médio e Ásia. Essa guerra “contra o terror” envolve uma perspectiva econômica que sugere uma nova arquitetura financeira, na qual participam grandes corporações privadas ligadas intimamente ao Departamento de Segurança Nacional e ao Pentágono. O governo estadunidense canaliza bilhões de dólares para as empreiteiras que faturam alto com as privatizações dos bens públicos dos países conquistados. Entre elas, encontra-se o conglomerado Halliburton, que recebe os presos de Guantánamo para encarcerá-los numa prisão de segurança máxima construída por ela. Quando os prisioneiros chegam a seu destino, são confrontados com seus interrogadores vindos da iniciativa privada (contatados pela CIA ou o exército). Os contratos mais lucrativos são obtidos através de métodos de tortura confiável, denominada tecnicamente com o sugestivo nome de “inteligência atuante”. O Big-Mercado da guerra tem outras variantes copiadas do velho oeste. Na invasão de Afeganistão, os agentes de inteligência da CIA publicaram um cartaz que dizia “Você pode obter riqueza além de seus sonhos”, oferecendo entre 3.000 e 25.000 dólares aqueles que entregassem milicianos de Al Qaeda ou Talibãs. Num curto espaço de tempo, as prisões de Bagram e Guantánamo estavam abarrotadas de pastores, cozinheiros, taxistas, tendeiros e religiosos incrédulos, trocados por uma recompensa. O próprio Pentágono terminou divulgando que 86% dos prisioneiros de Guantánamo foram denunciados por agentes afegãos ou paquistaneses depois do anúncio das gratificações. A imprensa internacional descobriu que dos 360 prisioneiros liberados de Guantánamo, 205 foram detidos sem qualquer tipo de cargo. Parece que o livre mercado da inteligência contra-insurgente também fracassa nessa iniciativa. Em relação ao Brasil, muito pouco pode aparecer no site WikiLeaks sobre o governo, que tem na sua diplomacia atual o melhor exemplo de independência e coragem. Pode até ser que existam críticas com referência a posicionamentos ideológicos, como é o caso do atual ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE), Samuel Pinheiro Guimarães, contrário a criar relações carnais com os Estados Unidos. Mais essa crítica é preferível a suportar a humilhação de ver o então ministro de Relações Exteriores, Celso Lafer, tirar seus sapatos no aeroporto de Miami, em dezembro de 2002, para ser revistado pelos seguranças daquele país. Com nosso Brasil, esse tipo de coisas, nunca mais.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

O CAPITALISMO DO DESASTRE

A afirmativa mais apreciada na nossa sociedade é que o capitalismo nasce da liberdade, e que o livre mercado desregulado caminha de mão dada com a democracia. Por outro lado, também existe um reconhecimento histórico de que o colapso da União Soviética deveu-se, não apenas pelo fracasso de suas forças produtivas, senão também pelos crimes cometidos em nome do comunismo. Mas vale a pena perguntar-se: O que houve por trás da cruzada contemporânea na defesa da total liberdade dos mercados? Será que a história oficial da construção de um mercado global livre de qualquer tipo de controle, escondia um capitalismo fundamentalista, nascido de um parto brutal através da violência e a coerção corporativista?
O efeito dominó que provocou a crise de 2008, que começou como financeira nos labirintos de Wall Street e se espalhou de forma macroeconômica no mundo todo, terminou-se configurando como uma crise humanitária de grandes proporções. A população que passa fome chega a um bilhão de pessoas e aumenta a todo dia. O Banco Mundial sinaliza que 400 mil crianças a mais dos que morrem anualmente por causas relacionadas à pobreza, morrerão em 2010 devido à crise. Tamanha tragédia que elimina 23 mil empregos por dia nos Estados Unidos, e que se propaga no mundo de forma acelerada, não é resultado de uma catástrofe natural ou de uma conspiração comunista. Ela é culpa do mesmíssimo sistema capitalista, e tem endereço certo: a economia norte-americana assentada nas bolhas do “subprime”, dos famosos derivativos e outros produtos financeiros criados magicamente por estelionatários de colarinho branco. Ainda assim, muitos continuam pensando que tudo isso é uma força virtual que nada tem a ver com indivíduos de carne e osso. Soberbo engano. Vamos desvendar as condutas antiéticas dos altos executivos financeiros, suas práticas impunes de maximização dos ganhos em curto prazo, apenas com o intuito de satisfazer sua cobiça desenfreada. O caso do Lehman Brothers, empresa de 160 anos de existência, levada à falência pelo seu presidente Richard Fuld, que havia recebido durante os últimos cinco anos um total de 500 milhões de dólares, tinha como garantia uma cláusula contratual que, caso fosse demitido, a empresa deveria pagar-lhe 65 milhões de dólares. Em poucos dias, após a quebra do Lehman Brothers, ocorre à falência técnica da maior empresa seguradora dos Estados Unidos, a American International Group – AIG, que em março de 2009 pagara 168 milhões de dólares em bônus aos executivos da divisão que causara o formidável estrago com suas operações de alto risco.
Vamos continuar com a devassa corporativista? Enquanto o Bank of America adquiria o banco de investimentos Merryl Linch, para salvá-lo da falência, seu presidente, John Tayhn, sabendo da operação, antecipou o pagamento com dinheiro do Estado, de bônus de 4 bilhões de dólares a seus altos executivos. O estressado presidente consolou-se, em plena crise, reformando seu gabinete ao custo de 1,2 milhões de dólares. Enquanto o Brasil se defendia com unhas e dentes da contaminação da crise através de políticas público-privadas de reativação econômica, os presidentes das três grandes montadoras de automóveis norte-americanas iam pedir desesperados ajuda multimilionária ao governo – em seus jatinhos particulares – cujo custo era sessenta vezes maior ao de uma passagem aérea na classe econômica. Sabem por que o presidente norte-americano perdeu a maioria no congresso? Porque fala a verdade a um povo que vive da promessa de riqueza ilimitada. Em 2009, o presidente Obama denunciou as corporações com as seguintes palavras: “usam o dinheiro do contribuinte para pagar suas remunerações, comprar cortinas ou se esconder nos seus aviões particulares”. Nada disso parece ter causado efeito numa sociedade alienada. No restante do mundo, governos se desintegram pela incapacidade de resolver a crise. A sociedade global exige mudanças, organizando-se em novas formas de crítica social, ressuscitando, por sua vez, do longo sopor ao qual foi submetida.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

EDUCAÇÃO E MOBILIDADE SOCIAL

Recentemente, o exame do Enem foi noticiado com grande estardalhaço por causa dos problemas ocasionados na confecção dos gabaritos. A gráfica contratada produziu 10 milhões de provas, na qual houve um lote de 20 mil que saíram com erros de impressão. Nesse caso, o governo, depois de identificar os participantes prejudicados, fará uma nova prova através do método TRI, que permite aplicar os testes em dias diferentes com o mesmo grau de dificuldade. Resulta evidente que isso tornou-se um contratempo, mas é uma medida que evitará maiores gastos na aplicação da prova, sem prejudicar aqueles que deverão entrar nas universidades conforme o calendário estipulado. Por outro lado, a atenção centrada nos problemas do Enem, deixou passar despercebida a importante notícia com referência ao aumento de estudantes de baixa renda nos cursos universitários. A pesquisa do Data Popular, que é um instituto especializado em mercado emergente no Brasil, divulga que, pela primeira vez na década, jovens de baixa renda são maioria nas universidades. Este novo contingente de jovens que representa 73% dos universitários, fazem parte da primeira geração de suas famílias a conquistar um diploma de nível superior.
A pesquisa revela que os estudantes da classe D, originários de famílias que ganham menos de três salários mínimos ultrapassaram os filhos dos setores mais privilegiados da pirâmide social. A mágica desse resultado encontra-se no Programa Universidade para Todos – ProUni, que já atendeu nestes últimos seis anos a 747 mil estudantes de baixa renda. No período de 2002 a 2009, todas as faculdades, tanto públicas como privadas, já contabilizaram o atendimento de 700 mil estudantes da classe D, numa média de 100 mil jovens por ano. Resulta interessante destacar que oito anos atrás esta classe ocupava apenas 5% da totalidade das vagas nas universidades. Na atualidade, pelo contrário, eles representam 15,3%, enquanto os da classe A diminuíram de 24,6% para 7,3% durante o ano de 2009.
O estudo mostra também que entre 2002 e 2009, o número de estudantes universitários no Brasil aumentou de 3,6 milhões para 5,8 milhões, que representa um avanço de 57% na totalidade desse universo educacional. Nesse contexto, as classes A e B detêm 26,3% das vagas nas universidades, enquanto os estudantes das classes C, D e E representam 73,7% desse total. Por outro lado, o acesso à universidade representa para esses jovens um investimento muito pesado, mas que oferece a possibilidade de mudar de vida e ascender socialmente. No entanto, existe uma contrapartida por parte de empresas que realizam parcerias com o Centro de Integração Empresa Escola – CIEE, oferecendo uma ampla rede de apoio através de programas de bolsas em faculdades privadas. Tal iniciativa inclui o governo na sua principal vitrine da política educacional, aquela que permite que estudantes carentes estudem em instituições de ensino superior privadas com bolsa integral ou parcial, usando como contrapartida a isenção de tributos. Para finalizar, e retornando ao caso do Enem, é preciso entender que, apesar de suas falhas circunstanciais, este processo, mais do que uma avaliação do ensino médio, representa um mecanismo institucional de estímulo ao estudo, além de constituir-se numa extensa política de inclusão social. É possível que aquelas pessoas que sempre estão prestes a ridicularizar ou desmerecer qualquer ação governamental, não percebam que por trás de falhas humanas, sempre há uma nova oportunidade para refazer as coisas de modo correto. Nada melhor do que as palavras do Prof. João Monlevade, consultor do Senado Federal, ao dizer que o “Enem representa a transição da loteria dos vestibulares para a realização do preceito constitucional: a educação superior é um direito de todos, segundo a capacidade de cada um, e serve ao mesmo tempo para aperfeiçoar seus mecanismos avaliativos, com o aproveitamento democrático de todos os talentos”
Victor Alberto Danich
Sociólogo

terça-feira, 16 de novembro de 2010

CONVITE PARA UM CAFEZINHO

A crítica da presidente eleita Dilma Rousseff à política monetária do Banco Central dos Estados Unidos, que quer injetar 600 bilhões de dólares no mercado, de modo a desvalorizar a moeda como forma de beneficiar as exportações, está assentada na convicção de que a esperteza dos países ricos deve ser combatida com vigor. O posicionamento do Brasil com referência a atitudes similares tem, na história recente, algumas circunstâncias que merecem ser relatadas. O interesse dos EUA em implantar a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), que pretendia induzir aos países de América do Sul a suprimir todas suas barreiras aduaneiras, foi abortado pelo fracasso das políticas econômicas neoliberais criadas por Washington que, entre outras artimanhas, preservava para si as barreiras não tarifárias. Além do acesso aos mercados da região, o interesse era a obtenção de superávits comerciais para compensar a perda de competitividade dos seus produtos de exportação. A crise da Argentina em 2001 reforçou a consciência do governo brasileiro em não cair nessa armadilha comercial. Por outro lado, preocupado com a reaproximação da Argentina com o Brasil, um alto funcionário do Departamento de Estado norteamericano tentou desmanchar tal parceria estratégica, instigando a disputa entre ambos países. O então presidente Fernando Henrique Cardoso declarou nessa oportunidade: “Não é possível deixar a Argentina em crise sem dar a ela condições de sobrevivência. A Argentina foi aplaudida e fez tudo o que o FMI pediu. Agora vai ser punida?”
Nesse contexto, a atitude inescrupulosa de uma revista “conhecida” que se debruça na publicação de factóides circenses que deixam exaltadas as classes médias, omitindo ao mesmo tempo tudo aquilo que permitiria à nossa sociedade discutir com sobriedade o destino de um Brasil consensual, divide a mesma em disputas inúteis. Pouco se divulga sobre o seminário “Desafios, Oportunidades e Riscos da Globalização à Ordem”, que aconteceu em 2001, promovido pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), no qual o ex-presidente Cardoso diz o seguinte na abertura do mesmo: “é mais fácil ideológica e politicamente, negociar acordos comerciais com a Comunidade Econômica Europeia do que com os Estados Unidos”. Tal discurso reconheceu claramente, que as negociações com a União Europeia representavam menos riscos para a soberania do Brasil do que as realizadas para a formação do ALCA, pautadas apenas para atender os interesses das nações mais ricas. Durante a abertura oficial da Assembléia do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em 2002, o então presidente Cardoso exigiu mudanças nos critérios técnicos do FMI para atender aos países em desenvolvimento, criticando as manobras contáveis destinadas a reduzir as possibilidades de crescimento destes. E acrescentou com aspereza nessa oportunidade: “Quando vamos discutir isto, o FMI nos trata como se fôssemos analfabetos”.
Os leitores sabem da minha admiração pelo presidente Lula, mas poucos sabem o respeito que tenho pelo sociólogo Fernando Henrique Cardoso. Respeito que é resultado do seu discurso na Assembléia Francesa em 2001, depois do 11 de setembro: “A barbárie não é somente a covardia do terrorismo, mas também a intolerância ou a imposição de políticas unilaterais em escala planetária”. Pode até ser sido retórica, mas a sua mensagem guardava, na sua essência, o desconforto da descoberta que as “relações carnais” com os poderosos deve ser eliminada do vocabulário econômico. Tal discurso foi o epitáfio definitivo da Área de Livre Comércio das Américas. O destino dos países do sul começou com essa mudança de atitude conceitual. A partir daí foram assentadas as bases para consolidar o futuro do Brasil como nação independente, mas com seus olhos colocados solidariamente nos nossos vizinhos. Quando o presidente Lula finalizar seu mandato, seria fantástico se aceitasse o cafezinho oferecido pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Tal bebida deveria ser a aliança simbólica que os torne amigos novamente.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

ENTRE DEUSES E RELIGIÕES

A campanha deflagrada para o segundo turno se esvazia numa disputa inútil sobre fatos secundários com referência ao debate que importa. Encontrou-se uma brecha no campo das crenças para esconder as propostas que realmente interessam à população brasileira. Não há nada de novo nisso. Já aconteceu nas disputas passadas. A incitação ao pânico que pode provocar qualquer tipo de mudança, mesmo conceitual, termina eliminando o confronto de ideias que permitam traçar metas claras para o futuro do Brasil. Mais uma vez são veiculados aqueles discursos que falam de tabus e religiosidade, como se isso fosse a resolver o futuro econômico do país. Na berlinda desses condicionantes, continuam sendo usados os desgastados “clichês” de que primeiro tem que construir o bolo para depois reparti-lo. Quando de repente surge uma nova proposta de desenvolvimento com inclusão social, os concentradores do “bolo eterno” esgrimem o fantasma do socialismo, como se isso fosse uma alternativa diabólica, sujeita a ser destruída pela mão de Deus e outras formas de arranjos sobrenaturais.
O que se esconde nesse discurso próximo da inquisição religiosa da idade média? Apenas uma nova forma de combater e jogar no esquecimento as conquistas recentes do povo brasileiro. Nada melhor do que criminalizar as comparações entre dois modelos de gestão econômica postos em prática nestes últimos dezesseis anos. No caso concreto de gestão à frente da complexidade monumental de um país como o nosso, não existem nem “pastores nem rebanhos” apenas decisões acertadas ou não, que ocorrem no campo da vida e da economia real. Para entender tal processo, os leitores devem deixar de lado os “factóides” inundados de preconceitos, e focar sua atenção no que realmente aconteceu de melhor no Brasil nestes últimos anos. Apesar dos problemas que ainda castigam nossa sociedade, muito longe de serem resolvidos em curto prazo, vamos centrar-nos nas conclusões “das experiências e ações dos governos anteriores” avaliando a seguinte argumentação: Houve, na transição entre um governo e outro, dois modelos econômicos que entraram na pauta das alternativas para a construção de uma nova sociedade. Por um lado, era a continuidade indefinida do modelo imposto pelo Fundo Monetário Internacional na região, assentado em políticas profundamente recessivas, a um custo social insuportável e sem perspectivas de crescimento, e, por outro, a opção pela reconstrução do Estado como indutor de desenvolvimento por meio de políticas público-privadas, com forte inclusão social através de programas distributivos inseridos no tecido produtivo. Claro que essa modalidade não é invenção do atual governo. Entretanto, sua reestruturação através do Fome Zero e do Bolsa Família, ganharam uma nova configuração, porque são inerentes a uma política econômica com foco na transferência de renda de forma ampla. A qualidade destes programas encontra-se na sua própria natureza, livres do cerceamento dos ajustes monetários do modelo neoliberal. Atravessar uma crise mundial de forma inédita e criar 14 milhões de empregos com carteira assinada, elevando a padrões de classe média 70 milhões de brasileiros e tirando da pobreza absoluta outros tantos, espalhando a dádiva de luz e da casa própria para grande parcela da população, incorporando-os ao consumo de bens tantas vezes negados, é suficiente para discordar de que isso signifique uma degradação das instituições no Brasil. Ao contrário, se o povo humilde, consciente dessas mudanças, credita essas conquistas à intervenção divina, não está equivocado. Ao final, o placebo religioso está centrado na bondade do profeta Jesus Cristo e sua opção pelos pobres. Devem estranhar que diga tal coisa, já que muitos me conhecem como cético. Mas isso significa acrescentar um ideal nobre para os que lutam por um projeto humanístico, muito cercano aos fundamentos do cristianismo, infinitamente diferente daqueles que se mascaram de religiosidade e são incapazes de qualquer iniciativa solidária para com a pobreza anônima.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

COMBATE A POBREZA

A notícia divulgada de que o Brasil lidera, pelo segundo ano consecutivo, o ranking que mede o progresso de países em desenvolvimento na luta contra a pobreza que, segundo o relatório da ONG ActionAid, é das políticas sociais adotadas pelo governo federal para reduzir a fome no país, entre elas os programas como o Bolsa Família e o Fome Zero, gostaria de acrescentar mais algumas considerações. Em primeiro lugar, não por acaso o Brasil é citado como um exemplo nesse tipo de iniciativas, centradas em políticas públicas de inclusão social. O sucesso destes programas está assentado em ações que envolvem 11 ministérios, destinados a ampliar o acesso à alimentação, o fortalecimento da agricultura familiar e, como medida inclusiva fundamental, a incorporação de processos de geração de renda e aumento das atividades produtivas na economia.
Muitos leitores dirão que ainda assim ocorrem gritantes distorções sociais, insistindo em que tais programas não passam de simples assistencialismo, porém sem questionar as imensas desigualdades históricas existentes entre os pequenos e grandes produtores de alimentos. Entretanto, a inserção social reforçada com políticas públicas a partir do Fome Zero, faz com que as famílias mais carentes, ao receberem os benefícios, possam ter acesso à alimentação e água, gerando ao mesmo tempo um impacto na economia local, já que nas regiões mais distantes, o dinheiro do programa representa até 70% da arrecadação anual do município. Como se pode observar, tais programas de transferência de renda não se encontram desvinculados das outras atividades econômicas que criam condições para o crescimento do país. O fato de que 22 milhões de famílias brasileiras pretendem até dezembro de este ano reformar ou construir uma casa, já é suficiente para atestar o funcionamento destas políticas governamentais.
As classes de menor renda beneficiadas pelos programas sociais, com destaque para aquelas que praticam o consumo “formiga” na aquisição de bens, mas que injetam dinheiro no mercado através do aumento da renda familiar e da maior oferta de crédito, faz com que as atividades produtivas cresçam vertiginosamente. Tanto é assim, que tal consumo no setor de construção, por exemplo, elevou a receita do setor para R$ 21,4 bilhões, correspondente a um crescimento da indústria de 20,3% durante o primeiro semestre de 2010 em relação aos períodos anteriores. Mais importante ainda, essa receita deve fechar o ano com alta de 15%. Por outro lado, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulga na sua última pesquisa que o potencial de consumo das classes que possuem renda média familiar de R$ 2.950,00 a R$ 5.350,00 respectivamente, encontra-se neste ano no patamar de R$ 970 bilhões, 30% a mais do que em 2009. Tal processo de mobilidade social injeta na economia um potencial de consumo de R$ 2,2 trilhões, que corresponde a uma expansão de 22% em relação aos anos anteriores. Para finalizar. Qual é o papel do intelectual vigilante com ações dessa natureza? A disposição de debater a abrangência de políticas públicas de inserção social, principalmente aquelas direcionadas aos setores mais carentes da sociedade, deve servir para conscientizar aos espectadores passivos da necessidade de um olhar sobre a pobreza no Brasil.
Essa perspectiva remete ao reconhecimento da grande desigualdade na distribuição de renda ainda existente no país, assim como a descoberta conceitual de que tal situação faz com que uma grande parcela da população esteja submetida a condições mínimas de dignidade e cidadania. Toda iniciativa direcionada para construir ações focalizadas nas famílias mais pobres deve ser entendida como um ato de solidariedade humana, e não como um desperdício econômico baseado apenas em juízos de valor marcados pelo preconceito de classe, tão perverso quanto o modelo neoliberal que vigorou absoluto nestes últimos quarenta anos.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

O SIGNIFICADO DE LIDERANÇA

Seguramente o leitor encontrará nesse significado, do ponto de vista formal, um mecanismo de sustentação social reconhecido por sua obviedade, já que um líder é um indivíduo que dirige o grupo transmitindo ideias e valores para o mesmo. Mas o conceito de liderança excede essa formatação, no momento em que a mesma se transforma num compromisso público com a história. Nesse caso, um líder que se destaca por sua inteligência, por seu poder de comunicação e por suas atitudes, direcionadas à construção da igualdade, solapando as velhas estruturas de autoridade e hierarquia, respondendo aos anseios populares sem reverências, é um indivíduo que deve ser reconhecido como tal. Quando o líder nos indica o caminho para viver conforme nossa consciência, além da capacidade de atestar que a realidade da liberdade humana pode combater as supostas inevitabilidades da história, é que podemos dizer que essa escolha marca o caminho de um novo estilo e qualidade de seus seguidores. Tal conceituação sobre liderança está destinada a fazer algumas considerações sobre o nosso atual mandatário. Se por um lado, o pragmatismo leva-me a ultrapassar o caráter partidário, apoiando candidatos de partidos diferentes através do voto útil, por outro, sou um admirador incondicional do presidente Lula. E vou dizer por que.
Muita gente prefere ignorar que o brasileiro Luis Inácio da Silva, nascido pobre e humilde em Caetés, no interior de Pernambuco, em 1945, hoje presidente do Brasil, destaca-se como um dos indivíduos mais influentes de todas as personalidades globais. Na lista publicada pela revista Time, além de mencionar seu nome, o situa proeminente junto a homens de negócios, cientistas e artistas mundialmente conhecidos. A trajetória de Lula e suas deficiências de formação transformaram-se num símbolo contra toda forma de exclusão social, mas que ainda deixa transparecer nas opiniões de alguns setores elitizados, o pouco esforço em disfarçar o preconceito social e de classe. O silêncio desse segmento da sociedade perante o destaque mundial de um brasileiro mestiço, nordestino, de origem pobre e grande déficit de educação formal, os torna cúmplices de uma das piores qualidades do ser humano: o culto à inveja descabida. Muitos ex-presidentes sonharam em alcançar tal reconhecimento. Entretanto, apenas o presidente Lula, em toda a história das relações internacionais do Brasil, teve a honra de ser declarado o “Estadista do Ano”, com ênfase numa “personalidade original, de profundo caráter social e desprovido de complexos neocoloniais”.
Mais isso não é suficiente. Nosso presidente continua sendo ridicularizado por indivíduos que carecem de qualquer tipo de consciência ética, porque se mascaram nos bastidores da internet. Assim mesmo, muitos podem não gostar das minhas ideias. Posso escrever coisas que geram mal-estar. Mas não me escondo. Entro no campo de batalha de frente contra meus desafetos, mas nunca parto para humilhar-los ou desmerecê-los publicamente.
Da mesma forma, o presidente Lula deve ser respeitado. Não só pelo cargo que ocupa, e sim como um ser humano que, numa trajetória de lutas populares pela democracia, ajudou a modelar os rumos da política brasileira. As Nações Unidas, ao escolher o Bolsa Família como símbolo mundial de resgate dos desfavorecidos, coroa o fim do seu mandato.
Vou mais longe ainda. Admirar o presidente Lula não é fazer “culto à personalidade”, e sim reconhecer nele uma liderança que propicia a construção de um Brasil mais solidário, assentando as bases para o desenvolvimento com inclusão social. Essa conceituação encontra-se distante de imaginar nosso presidente como um líder infalível, porque a submissão total se degrada num mero ato religioso. Ela apenas significa o tributo que grande parte da população brasileira faz a uma pessoa que, por seu mérito político, ocupa o lugar que sempre foi restrito a uma determinada classe social, e sai dele fortalecido com a mais original das conquistas: vencer o medo através da esperança.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

O DECÁLOGO DO TERROR

Mais uma vez as assustadas hostes conservadoras recorrem ao fantasma do socialismo para apavorar os leitores. Numa mágica ideológica tiram da gaveta o decálogo do comunista Lênin, publicado em 1913, de modo a aterrorizar os potenciais eleitores nas próximas eleições. Só indivíduos formatados no maniqueísmo da guerra fria podem ainda acreditar no retrocesso da volta ao passado. Não se deixe enganar caro leitor. Apenas preste atenção ao meu relato, por sinal, muito mais cercano da gente do que aquele decálogo ultrapassado pela história.
As pessoas que viveram a experiência das ditaduras militares dos anos setenta devem recordar, especialmente nos países do MERCOSUL, a implantação de regimes de terror por parte de governos de extrema direita. Lembrem-se de dois exilados ilustres que tiveram que fugir do Brasil naquela época, Fernando Henrique Cardoso e José Serra, entre outros.
O Plano de extermínio maciço de opositores aos regimes militares daquele período, atribuído a uma organização de extrema direita chamada “Operação Condor” entre 1974 a 1997, ajudou a restaurar a hegemonia estadunidense mediante um regime de terror nunca antes visto em América Latina. A primeira reunião da “Operação Condor” aconteceu entre novembro e dezembro de 1975, através de um encontro informal na casa do general Contreras, agente da Agência de Inteligência Chilena – DINA, no qual estavam presentes os chefes da Inteligência Militar de Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, de modo a organizar uma operação destinada a realizar um trabalho multilateral dos agentes responsáveis de vigiar, encarcerar, torturar e repatriar opositores aos diferentes regimes que vigoravam na época.
A “Operação Condor” usou, segundo documentos desclassificados pelo Pentágono e publicados pela Revista Cover Action (1996), os serviços de funcionários da CIA como do FBI ligados diretamente ao Departamento de Estado Americano, entre os quais estava o agente Michael Townley, que teve participação no assassinato do general chileno Carlos Prats em Buenos Aires em 1974 e do ex-embaixador Orlando Letelier e sua secretária em Washington em 1976. A Divisão de Serviços Técnicos da CIA cedeu equipamentos elétricos de tortura aos militares brasileiros e paraguaios, capacitando-os sobre como deveria ser graduada a intensidade da voltagem para não exceder a capacidade de resistência humana, a qual eram submetidas às pessoas torturadas. Argentinos e chilenos, que cursaram a tristemente célebre Escola das Américas, com sede no Panamá, já eram experientes nessas atividades. Nos corredores sinistros das ditaduras militares que tanto envergonharam nossas terras latino-americanas, ouvem-se ainda os gritos desgarrados de milhares de seres anônimos dos quais foram tiradas até as últimas gotas de dignidade humana. Grande parte dessa história de horror foi descoberta por casualidade. Em 1992, o juiz paraguaio José Agustín Fernandez que estava investigando a morte de um professor, que tinha sido torturado nas dependências da Secional Política da Polícia de Investigações de Assunção, encontrou todos os documentos originais da “Operação Condor” misturados aos arquivos locais, numa quantidade tão volumosa que foi necessário o uso de vários veículos para transportá-los a um lugar apropriado para a pesquisa jurídica. Mais ainda, a Escola das Américas (SOA) inicialmente estabelecida no Panamá em 1946 e logo transferida para Fort Benning, em Columbus, Geórgia, treinou mais de 60 mil soldados latino-americanos em matérias tais como técnicas anti-subversivas, tiro, mecanismos de extorsão, tortura física e psicológica, inteligência militar e técnicas de interrogação, contra-insurgência, defesa interna e operações antidrogas. Essa “Escola de Assassinos” supera amplamente o decálogo leninista divulgado às fartas, usado sorrateiramente como intento para iniciar uma “caça as bruxas” de modo a criminalizar o pensamento progressista, e fazer acreditar, ao mesmo tempo, que temos comunistas dormindo embaixo da nossa cama.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A ENGHENARIA ECONÔMICA BRASILEIRA

Todos os empresários do país devem se lembrar muito bem da data 15 de setembro de 2008. Nesse dia, o mercado financeiro mundial, sustentado por um modelo parasitário centrado na especulação desenfreada, parou. Também devem lembrar-se do banco de investimento Lehman Brothers, aquele mesmíssimo que duvidada da solvência do Brasil, que por incompetência não conseguiu superar os efeitos da crise, quebrando de forma vergonhosa. Essa quebra emblemática afetou indiretamente nosso país, ao provocar uma brusca depreciação cambial e uma acentuada queda da demanda dos produtos brasileiros no mercado internacional. O Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil diminuiu consideravelmente, resultado da desaceleração dos investimentos por parte do setor empresarial, que segurou suas despesas de capital, receoso do descalabro da crise que se avizinhava, considerada por muitos como a pior desde o “crash” de 1929. Entretanto, o governo brasileiro, ao implantar um modelo desenvolvimentista a partir de 2003, foi preparando o terreno para se proteger de qualquer ataque especulativo por parte dos picaretas internacionais, ansiosos em recuperar suas perdas. De que forma foi realizada tal façanha, obra de uma extraordinária engenharia econômica?
O governo, através da recuperação estatal, iniciou um processo nunca antes feito no Brasil, que foi a adoção de medidas fiscais e monetárias anticíclicas, evitando assim a contaminação do sistema financeiro nacional, de modo que pudesse ser recuperado o nível das atividades econômicas e produtivas do país. As primeiras medidas contra a contração do crédito foram aumentar a liquidez da moeda, tanto nacional como estrangeira, através da utilização das reservas do Banco Central para vender dólares e frear a depreciação da moeda local, além de criar uma linha de financiamento para as exportações. Tudo isso foi possível porque o Brasil tinha reservas acumuladas de 210 bilhões de dólares, que permitiu sustentar qualquer intento de contaminação externa. Já em 2009, a União abriu uma linha de crédito para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) de 3,3% do PIB, em conjunto com incentivos financeiros para o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal. Tal iniciativa permitiu, a esses bancos públicos, a aplicação de recursos nos setores produtivos mais dinâmicos e geradores de empregos, como a construção civil, agropecuária e insumos básicos, de modo a incentivar a produção e venda de bens de consumo duráveis.
O mais marcante nessa obra de reconstrução do Estado brasileiro, na qual todos os setores da sociedade se beneficiaram em maior o menor grau, foi a tarefa gigantesca de fazer convergir crescimento econômico com inclusão social. Os programas de transferência de renda, entre eles o programa Bolsa Família em conjunto com o aumento real do salário mínimo, trouxeram uma nova esperança para milhões de brasileiros que permaneceram tanto tempo à margem do consumo social. As opções do governo em revitalizar um modelo assentado em medidas de incentivo fiscal e monetário, tiveram como resultado a recuperação do Estado na sua capacidade de resposta social, propiciando a aceleração do crescimento e a produtividade. Não apenas isso, o aumento do emprego formal, dos lucros e os salários, terminaram acentuando um novo ciclo de desenvolvimento, sinalizado pelo crescimento do PIB em 9% no primeiro semestre de 2010. No entanto, ainda há cegos perante tal desempenho. A cegueira política, intelectual, partidária, ou pior, a cegueira da desinformação, termina reproduzindo o pensamento fragmentado, tão perigoso para a construção do bom senso. A razão é substituída por clichês desgastados e preconceituosos, imunes as mudanças. Da mesma forma daqueles que continuam insistindo em modelos que negam, a priori, a possibilidade de concretizar políticas macroeconômicas que incorporem desenvolvimento com inclusão social, tão importantes para eliminar de vez a desigualdade que ainda nos cerca.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

A REALIDADE CONSTRUÍDA

Por que as pessoas têm tanta dificuldade em reconhecer a ciência como um método para entender a realidade? É possível que o ser humano, imerso no mundo do cotidiano, sinta medo de seus aspectos inquietantes? Ou apenas porque a ciência questiona dogmas religiosos sedimentados no inconsciente da sociedade? Ainda hoje, apesar da nossa espécie ter percorrido uma trajetória histórica de 100 milhões de anos, existe uma clara hostilidade contra os avanços da ciência. Não da tecnologia aplicada, aquela que faz parte do dia a dia, senão da ciência que afirma que são as leis e as forças da Natureza, e não os deuses, os responsáveis pela ordem e até pela existência do universo.
Podemos observar que a ciência trabalhou silenciosamente, à margem das crenças estabelecidas como mecanismos de controle social, avançando passo a passo na consecução de seus óbvios triunfos e benefícios, mas sempre fora da corrente principal do desenvolvimento humano. Os chineses inventaram a pólvora, os foguetes, o tipo móvel, a bússola magnética e o sismógrafo. Os indianos inventaram o zero, que significou o primeiro passo para a aritmética e seus resultados quantitativos. No mundo pré-colombiano, os astecas desenvolveram um calendário mais preciso que os dos europeus. Isso lhes permitiu predizer com exatidão a posição dos planetas no firmamento. Mas foi da Grécia antiga que surgiu o método da ciência cética, experimental e investigativa. Qual foi a origem dessa descoberta?
Ela pertence a um fator cultural específico, que foi a assembléia, na qual, segundo Lucrécio, os homens aprenderam, “pela primeira vez a persuadir uns aos outros por meio do debate racional”. Por outro lado, a economia marítima permitia a ampliação do conhecimento além da cultura local, assim como um mundo extenso no qual se colhiam novas formas de observar a realidade. O jônico Lucrécio resumia seus pensamentos da seguinte maneira “A natureza livre e desembaraçada de seus senhores arrogantes é vista agindo espontaneamente por si mesma, sem a interferência dos deuses”.
O leitor ocasional pode se sentir incomodado por estas afirmações. Entretanto, se aprofundar o tema, poderá verificar que, nos livros de Introdução à Filosofia, os nomes e ciência aplicada dos antigos jônicos dificilmente são mencionados neles. Não por acaso aqueles que rejeitam os deuses tendem a serem esquecidos. O desequilíbrio e o pavor que desperta tentar questionar as crenças estabelecidas, faz com que desprezemos a memória desses céticos, muito menos as suas ideias. Seguramente houve, na história da humanidade, muitos pensadores que ousaram explicar o mundo através do método científico, em termos de matéria e energia, tentando disseminar seus conhecimentos em diferentes culturas. Em contrapartida, também foram combatidos ao extremo e eliminados por padres e filósofos empenhados em reafirmar a sabedoria convencional, secularizando-a Às vezes me pergunto o que pode acontecer com um professor de sociologia que tenta descriminalizar o método científico. Quebrar o pensamento linear trazido da escola para a universidade, e transformá-lo numa alternativa transversal, pode gerar desconforto nos acadêmicos pré-formados num mundo cultural onde predomina o pensamento político hierarquizado. As culturas que não enfrentam desafios desconhecidos, nas quais as mudanças fundamentais não são importantes, toda ideia nova não precisa ser estimulada. Nesse caso, o pensamento torna-se rígido; qualquer pretensa heresia pode ser declarada perigosa; podendo ser imposta, por sinal, uma vasta gama de sanções contra ideias não permitidas. Tudo isso sem causar dano à sociedade, apenas ao transgressor. E possível o reconhecimento daqueles que, em vez de acompanhar docilmente os dogmas estabelecidos, tentam desvendar a importância do universo social e físico? Qual seria o inconveniente em aceitar que tal dimensão dogmática não passa de uma mera construção social da realidade, de modo a permitir ao ser humano libertar-se das superstições culturais?
Victor Alberto Danich
Sociólogo

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

A DEUSA PRIMORDIAL

Resulta muito interessante poder analisar os caminhos da nossa espécie através da sucessão de mitologias. Todas as crenças relacionadas aos mitos da criação correspondem de maneira surpreendente às etapas cronológicas da história humana. Na primeira etapa, o mundo é criado do nada por uma deusa mãe. Na segunda, com auxílio de um casal criador. Na terceira, um deus macho se apropria do poder e cria o mundo sobre o corpo da deusa primordial. Por fim, na quarta etapa, um deus macho cria o mundo sozinho. Como corolário, o mito cristão consolida a transição de um universo matricêntrico para um mundo patriarcal. O onipresente Javé, deus todo-poderoso, faz o mundo sozinho em sete dias e, depois, cria o homem. Logo, num ato de soberba masculina, cria a mulher da costela deste e, finalmente, os premia com a vida no Jardim das Delícias. Mas, por culpa da mulher sedutora, o homem cede à tentação da serpente e ambos são expulsos do paraíso. Ao contrário das mitologias primitivas, nas quais a Grande Mãe era amorosa e permissiva, o deus Javé é único e centralizador, zeloso no controle e obediência de leis rígidas, cuja transgressão é sempre punida. A condenação do trabalho perpétuo é o resultado do pecado original. O trabalho escraviza o homem, e ele escraviza a mulher. A relação homem – mulher perde seu sentido solidário e se efetiva através da dominação masculina.
O culto a uma deidade feminina, na história da humanidade, sempre esteve associada a uma imagem sagrada centrada na fertilidade humana ou agrícola, como também aos ciclos naturais da vida, que remonta a tradições espirituais pré-históricas e que ainda se pratica no mundo inteiro de forma inconsciente. As imagens de deusas, desde a Idade da Pedra, simbolizam a “fecundidade, a nutrição, a generosidade, a comunidade e a própria terra” diziam seus adoradores. Nas tradições dos nativos norte-americanos e de muitas religiões africanas, as deusas femininas controlavam os ciclos de plantação, crescimento e colheita, nascimentos, pró-criação e morte. No império greco-romano, as deusas tinham características masculinas, próprio de civilizações dedicadas à conquista, como Atena e Minerva, guerreiras da sabedoria, ou Artemis e Diana, padroeiras da caça.
Podemos observar que nesse percurso da construção da vida econômica dos povos, baseados na produção de subsistência agrícola, as figuras principais em tal formatação cultural estava centrada no culto às mulheres. A Grande Mãe (Magna Mater) romana era descendente direta da deusa da fertilidade Cibele, que, na tradição semítica era conhecida indistintamente como Astartéia ou Ester. A protetora do hinduísmo (Devi) que é deusa venerada através de variados cultos, entre elas Parvati, Durga e Kali, de inúmeros braços, representavam a suavidade maternal com aspectos de ferocidade guerreira em seu papel de protetora.
Na dimensão do sobrenatural das civilizações, o feminino impregnava o universo social da antiguidade, tanto, que o culto Católico Romano à Virgem Maria provém dessas tradições. Torna-se evidente que tal imagem religiosa, no mundo contemporâneo, tornou-se uma mera figura coajudante do deus macho. Qual foi o resultado de tal processo?
As sociedades de origem matriarcal, demonstradas pelo próprio culto às deusas, tão antigo como a própria humanidade, postulavam uma Mãe Terra, criadora primordial do universo. Quando a sociedade patriarcal destituiu as mulheres do seu poder criador, a Deusa Primordial perdeu seu papel centrado nos ciclos agrícolas e de fecundidade, e foi substituída por um deus masculino poderoso, fazedor de tudo que existe na terra, distante e impenetrável, configurado no centralismo racional do judaísmo, do cristianismo e do islamismo. Do ponto de vista científico, tais configurações estão relacionadas aos aspectos espirituais da sociedade, encampadas na essência das crenças religiosas. Entretanto, ainda assim, existe uma dívida monumental para com as mulheres, que é restituí-las de sua condição histórica na modelagem do mundo dos homens.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

COMO CONQUISTAR UMA MULHER INTELIGENTE

O título desta crônica parece um ato falho machista? Parece, não é? Antes de ficarem chateadas comigo, as donzelas devem saber que por cada mulher pouco inteligente existe um homem com as mesmas características. Se não fosse assim, seria uma injustiça, porque sobrariam homens e mulheres em todo canto do planeta. E isso não ocorre porque os pares se juntam. Ainda bem. Ao final, sempre há alguma dose de masoquismo nos encontros amorosos, que ocorrem por necessidade ou desespero.
Como a retórica da conquista (nem sempre) pertence ao homem, o mesmo está propenso a tentar por assimilação ou múltipla escolha. Se o sujeito for meio bobo, deve tentar tantas vezes até encontrar seu congênere (estou falando disso intelectualmente). Por outro lado, se for inteligente e bonito, grande parte do repertório da pesquisa está assegurado, já que o esforço em ser notado torna-se secundário. Nessa parte do processo encontra-se o perigo. Vamos imaginar uma mulher super-bonita, que aparece diariamente nas colunas sociais. O bonitão se aproxima, ela sente sua presença e exercita todo tipo de mecânica de sedução visual: olhar distante com os olhos entrecerrados, posição de estátua da sétima arte e outras coisas do gênero. Nosso amigo inteligente (condição indispensável) deve fazer a pergunta padrão – a gente não se conhece da faculdade de filosofia? – e se a resposta for de onde é tal agência, deve partir para o próximo intento. Talvez seja mesmo no meio acadêmico ou nos lugares mais inesperados. O olho clínico do nosso conquistador deve estar aguçado para a escolha. Uma apresentação musical? Teatral? Um congresso? Um seminário? Uma biblioteca? Uma livraria?
Isso mesmo! Uma livraria. Vamos ao ataque. A mulher bonita está olhando um livro. Se for de auto-ajuda ou esotérico, pode esquecer. Se for de gastronomia, bom, isso prognostica o futuro. E se estiver folheando economia política ou alternativas educacionais? Se aproxime, veja o título e o autor. Paulo Freire? Eduardo Galeano? Darcy Ribeiro? Florestan Fernandes?
Nesse caso encontrará uma mulher inteligente e combativa. Vale a pena apostar nela? Depende do posicionamento político do marmanjo. Se estiver folheando poesia ou coisas similares, o sujeito deve estar capacitado para conviver com donzelas sublimadas. Se, por fim, se aproxima e intenta um início de conversa e o sorriso da bela se abre para o diálogo dialético, pode apostar que tudo dará certo intelectualmente. O próximo passo é usar a inteligência para o jogo amoroso. Tudo isso vale para os feios inteligentes também. Sem preconceito.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

DICA PARA OS FEIOS

Se você não é muito lindo ou medianamente feio, não se lamente, há outras formas de recuperar a auto-estima. Como primeira medida paliativa, deve tomar a iniciativa de circular pela cidade até encontrar outro mais feio do que você. Isso ajuda a superar o trauma da historicidade de sua vida. Lembre-se que ainda existe a alternativa de exercitar a inteligência, apesar de correr o risco de haver outros concorrentes bonitos e geniais. Mas não desista, eles não são muitos.
Só deve tomar cuidado com certas armadilhas, não de outros homens, senão das mulheres. Elas, sedutoras e absolutas nas colunas sociais, tratarão você com o descuido complacente daquele ditado, insuportavelmente inverídico, de que a beleza está no coração. Não se preocupe, faça de conta que acredita. Quem sabe. Talvez encontre alguém que tenha um instinto maternal suicida e se compadeça com seu destino irreversível.
Nunca tente se consolar nos livros de auto-ajuda. Muito melhor é procurar uma mulher na Faculdade de Filosofia. Esse é o lugar certo. Aquelas damas que circulam nesse recinto, pode apostar, tem muita afinidade com suas características. Trata-se de uma espécie de compensação amorosa pelos limites da atração física. Também precisa saber, com absoluta convicção, que o pior lugar para circular é nos locais públicos. É justamente nesse espaço que sua desvantagem se acentua. Se você cede o lugar para uma mulher bonita na escada rolante, na entrada do cinema ou na fila do banco, pode ter certeza que pensará que lhe está passando uma cantada indesejada, própria de um tarado insistente (em contrapartida, se você fosse bonito, ela contará para as amigas daquele homem de olhar intenso e irresistível). Não chore companheiro. Nunca uma mulher disse para mim que era lindo, apenas simpático. Talvez seja este o último recurso que nos resta neste desigual combate de genética darwinista.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

A VOZ DO POVO É A VOZ DE DEUS

O leitor deve imaginar que vou falar de religião, não é? Nada disso, estou usando o título de maneira “alegórica” como forma de interpretar porque a grande maioria do povo brasileiro apóia a política de governo atual. Tirando a roupagem dos termos técnicos, armadilha usada pelos gurus da economia neoliberal para esconder suas frustrações em matéria de previsões, vou mostrar de forma clara como a população em geral foi favorecida por um crescimento sustentável da economia produtiva. Apesar do título, não há nada de sobrenatural nesta constatação. Vamos lembrar alguns fatos históricos sem assumir partidarismos políticos. O Brasil sofreu um forte ataque especulativo no segundo semestre de 2002, que provocou um impacto enorme nas finanças públicas, com uma inflação de 12% ao ano e uma dívida do setor público que beirava em 52% do Produto Interno Bruto (PIB). Para piorar a situação, as reservas internacionais do Brasil eram apenas de US$ 37,8 bilhões, das quais US$ 20,8 bilhões faziam parte de um empréstimo do Fundo Monetário Internacional (FMI). Em contrapartida, a economia mundial, em franco crescimento, permitiria ao Brasil obter um superávit comercial que ajudaria ao país nos anos posteriores, diminuindo favoravelmente sua vulnerabilidade externa. A visão ideológica que imperava até então, era que o mercado livre de intervenções, favorecia os fatores de produção de acordo com sua produtividade, recebendo por isso uma remuneração adequada. Ou seja, as decisões do mercado eram mais confiáveis e menos danosas que as do governo. Azar quem acreditou nisso.
No entanto, o governo eleito assumiu, no primeiro ano de 2003, uma postura de continuidade do modelo neoliberal herdado, tanto por causa dos compromissos externos como da imagem de credibilidade no combate ao processo inflacionário, aliado até então por uma forte contenção fiscal e cambial do país. Na medida em que a situação de vulnerabilidade diminuía, o governo aprovou uma mini reforma tributária de modo a elevar a arrecadação do Estado, que possibilitou implantar as bases econômicas da visão desenvolvimentista, até então engavetada. Tal postura, que para alguns é resultado de “populismos ineficientes”, refletiu-se, a partir de 2005, na adoção de medidas temporárias de estímulo fiscal e monetário, de modo a acelerar o crescimento para elevar a produtividade da economia. Paralelamente, houve um significativo aumento nas transferências de renda e elevação do salário mínimo, que permitiu o acesso ao consumo social a grande parcela da população mais pobre. Por outro lado, o estímulo ao investimento público e privado em capital fixo, chegou a uma taxa de 19,0% do PIB em 2008, que preparou o terreno para evitar o contágio da crise mundial em andamento. Com a redução da dívida externa, que teve seu ponto de inflexão no pagamento daquela contraída com o FMI, o país conseguiu acumular no final de 2008 um estoque total de reservas no Banco Central de US$ 207 bilhões, como forma de blindagem para qualquer tipo de crise que aparecesse no horizonte econômico internacional.
Se o leitor não gostou de números, vou partir para comentar algumas constatações que eu, como sociólogo, realizo “no campo” com trabalhadores anônimos, muitas vezes invisíveis para aqueles que os observam com olhos de superioridade intelectualizada, desqualificando-os como indivíduos incapazes de contrapartidas econômicas. Esse povo, no qual corre nas suas veias a esperança de continuar tendo uma vida digna com emprego seguro, que lhe permite ter acesso pela primeira vez a bens de consumo tantas vezes negados, e sonhar, ao mesmo tempo, que tudo pode melhorar daqui para frente, é suficiente para confiar “num país de futuro”. A voz do povo dificilmente se engana. Essa maré humana que corre nos bastidores da retaguarda produtiva, sente algo de novo na sua história e no seu esforço compartilhado, que é a participação efetiva no rumo virtuoso do país. Silenciosamente construído, tijolo sobre tijolo.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

THE ECONOMIST

A edição semanal da revista britânica "The Economist" publicou uma reportagem muito interessante sobre o programa Bolsa-Família. A minha atenção no texto foi redobrada pelo fato de saber que a revista é de tendência conservadora, e poderia estar veiculando o tema de forma parcial, característica habitual das nossas publicações mediáticas. Realmente, fiquei impressionado como a matéria foi conduzida. Com o sugestivo título de “Happy Families”, a reportagem cita que os governos do mundo inteiro estão olhando para o programa, afirmando, nesse sentido, que iniciativas semelhantes estão sendo testadas em larga escala em outros países da América Latina, além de destacar a adoção de um modelo baseado no Bolsa Família pela cidade de Nova York, no mesmíssimo Estados Unidos. A reportagem também discute alguns problemas do programa, como por exemplo, algumas deficiências no âmbito urbano, no sentido de resolver percalços sistêmicos relacionados à exclusão social. No entanto, em contrapartida, é realizado um franco elogio ao projeto, dizendo que o Bolsa-Familia “contribuiu para o aumento na taxa de crescimento econômico do Nordeste acima da media nacional” e ajuda, ao mesmo tempo, a “reduzir a desigualdade de renda no Brasil”.
Por outro lado, a revista destaca alguns dados importantes como resultado do programa, entre eles o aumento da presença escolar em Alagoas, em que a metade das famílias sobrevive com o acesso ao Bolsa Família, afirmando que essa iniciativa ajuda ao “programa a atingir o objetivo de romper com a cultura de dependência ao garantir uma educação melhor para as crianças". Seguindo essa linha de raciocínio, a revista destaca que, além da educação, o programa do governo brasileiro também aumentou o poder de compra dos setores mais pobres da sociedade. Um dos mecanismos para efetivar a participação desses grupos esta assentada na oferta de microcréditos, que permitiu, conforme a história contada pela reportagem a título de exemplificação, de duas famílias alagoanas que conseguiram abrir um negócio próprio, por meio de um financiamento oferecido pelo programa, aumentando desse modo a produção de suas microempresas. No entanto, a imprensa brasileira de grande circulação destaca apenas as supostas deficiências que o programa enfrenta, usando para isso algumas das considerações do “The Economist” para reforçar suas argumentações. O primeiro, entre eles, está vinculado a suspeita de fraude nas informações obtidas pelos governos locais no sentido de determinar quem tem direito de receber o benefício, assim como a verificação correta da freqüência escolar vinculado ao mesmo. Outro problema citado é que o Bolsa Família se torne um programa permanente e não “apenas um impulso temporário de oportunidade para os mais pobres”. Mesmo assim, a reportagem conclui com uma assertiva interessante, não divulgada pela imprensa brasileira, que é a acusação injusta de que o programa está destinado a garantir votos nas eleições. Por tudo isso, é importante que os grupos em melhor situação econômica, que tem acesso ao consumo social, além da possibilidade de dispor de uma educação ampla e irrestrita, deveriam tornar-se multiplicadores, se realmente gostam de serem brasileiros, de divulgar e apoiar toda política pública que resgate a cidadania dos menos favorecidos. Nesse caso, o conceito de cidadania é a condição fundamental para o ponto de partida de novas formas de desenvolvimento. O bolsa Família cumpre tal função educadora, apesar dos problemas sazonais, que é a de ensinar que a distribuição de renda pode ser possível sem a submissão às leis do mercado. Fala-se muito de ética nos discursos enlatados, porém muito pouco sobre a transformação dos valores sociais e políticos, que permitam sonhar com a mudança e transformação dos valores econômicos. Talvez seja esse o problema que nos cega, a incapacidade de descobrir que, além dos posicionamentos políticos, o ser humano está acima de qualquer desejo partidário na construção de um país melhor.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

EDUCAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO

Torna-se impossível ter uma política educacional coerente em todos os âmbitos da sociedade, incluindo a de Ciência e Tecnologia, se não for realizado um projeto nacional de desenvolvimento em longo prazo, com características ideológicas e objetivos bem definidos, de modo que os resultados da pesquisa científica possam ser benéficos para o país. Vamos ampliar o conceito, como forma de aprofundar o tema, tão importante nesta época de mudanças econômicas e políticas. A definição concreta destes objetivos possibilita a mudança da tecnologia física e social, como também define as prioridades em pesquisa e desenvolvimento. Tal condicionante remete ao próprio papel social dos pesquisadores e universitários, incluindo os novos empreendedores ligados às atividades acadêmicas. Encontramo-nos na encruzilhada da descoberta de que a ciência universal pouco tem de universal, ela está confinada aos limites das nações avançadas. Nosso continente é condenado a padecer a tecnologia dos poderosos, tornando-nos incapazes de criar uma tecnologia nacional que permita sustentar nosso próprio desenvolvimento. Esse transplante de tecnologias, muitas vezes distantes das nossas verdadeiras necessidades, não apenas implica a subordinação cultural, senão que aumenta dramaticamente nossa submissão econômica. A multiplicação de um modernismo importado, ilhado num mar de atraso e ignorância, nunca será capaz de resolver o problema do subdesenvolvimento latino-americano, simplesmente porque este não é uma etapa do desenvolvimento, e sim uma contrapartida do progresso alheio. Recebemos tecnologias modernas como no passado foram recebidos espelhinhos e colares dos conquistadores. Mas tudo isso sempre foi colocado ao serviço dos outros, esses “outros” que nos enganam com os símbolos da prosperidade, tornando-nos incapazes de perceber que estes escondem os símbolos da dependência. Nesse contexto, no qual predomina uma sociedade de classes, em que apenas uma minoria chega ao ensino superior, a universidade torna-se, sem querer, um instrumento de dominação, reproduzindo o sistema e exercendo o controle social sobre a maioria desprivilegiada. Para que isso não aconteça, o ensino deve ser democratizado, implantando inovações, tanto no conteúdo quanto na metodologia de aprendizagem das disciplinas, técnicas, científicas e humanísticas.
Qual é o papel do educador nessa situação? Suas tarefas devem ser a de um agente multiplicador e integrador dos conhecimentos, ensinando como aprender e como transmitir, mas sempre focado na realidade social. Isso vale também para o ensino e desenvolvimento da tecnologia, no sentido de mostrar que suas realizações não dependem unicamente do conhecimento científico. A inovação de produtos e processos pode ser realizada empiricamente, tanto pela observação como pela combinação criativa de outros tipos de conhecimentos. O forte estímulo do poder público por meio de incentivos, seja através das instituições federais ou parceiros locais, trilha o caminho para politizar a ciência e tecnologia, desvinculando-a de sua pretensão de objetividade e neutralidade, reforçando assim a necessidade de estender à população a educação e informação sobre o papel da pesquisa e desenvolvimento tecnológico. Nessa nova abordagem, a estratégia da educação para o desenvolvimento estará assentada no esforço de identificação e organização de todos os conhecimentos científicos disponíveis. A ativa colaboração entre cientistas e técnicos, por um lado, e cientistas sociais, por outro, torna-se o foco principal para dimensionar o papel das inovações tecnológicas, cujo objetivo fundamental, além do crescimento econômico, deve ser a justiça distributiva e o bem-estar de toda a população. Uma sociedade orientada para esses objetivos, oferecerá ao povo a oportunidade de participar nas decisões que afetam a produção, a distribuição e consumo de bens e serviços, que é resultado, em última instância, do esforço coletivo de toda a sociedade.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

A GEOGRAFIA DA FOME

Recentemente, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) divulgou um relatório que indica a existência de 52 milhões de pessoas subnutridas, das quais, 7% das crianças menores de cinco anos sofrem de desnutrição crônica na América Latina e no Caribe. Por outro lado, o Brasil é um dos quatro países citados pela ONU como destaque na diminuição da fome. O relatório “caminhos para o Sucesso” aponta o progresso feito por 16 dos 79 países monitorados pela FAO, no qual o Brasil, a Armênia, Nigéria e o Vietnã são citados como exemplo de países que conseguirão realizar a meta de redução da fome em 50% até 2015. Segundo o relatório, tal sucesso é resultado da criação de um ambiente centrado na promoção do crescimento econômico e o bem-estar social, que permita realizar investimentos nos setores mais vulneráveis da sociedade, de modo a planejar um futuro sustentável. O programa Fome Zero é citado como um exemplo dessa iniciativa, destacando que em 1991 o Brasil tinha 15,8 milhões de pessoas subnutridas, 10% da população. Em 2007 o número caiu para 12 milhões, o equivalente a 6%. A FAO também afirma que o país teve a redução “mais impressionante” das taxas de crianças subnutridas entre os países em desenvolvimento, especialmente no Nordeste que, em apenas três anos, tirou seis milhões de famílias (cerca de 20 milhões de pessoas) da pobreza extrema com programas especiais de segurança alimentar, no sentido de mitigar a fome numa região que tem uns dos índices de natalidade mais altos do mundo. Qual é a explicação para esses índices tão elevados?
Vale à pena detalhar porque ocorre esse tipo de fenômeno. O livro “A geografia da fome” do médico brasileiro Josué de Castro (1908-1973), cita que os altos coeficientes de natalidade são resultado de um princípio da biologia – a “teleonomia” – que é a propriedade que têm todos os organismos vivos de desempenharem as suas funções num ritmo e dinâmica que favoreçam ao máximo a sobrevivência do indivíduo e, sobretudo, da espécie. Sempre que uma espécie está ameaçada de morte, aumenta sua capacidade reprodutiva a fim de neutralizar o risco de exterminação. Os altos índices de natalidade dos países muito pobres obedecem à mesma lei biológica: representam o esforço natural dos seres humanos para sobreviverem em áreas em que a mortalidade é extremadamente alta. Só dispondo de um excesso de pessoas – a maior parte para morrer e não para viver – estes grupos poderiam perdurar através do chamado ciclo antieconômico da sua evolução populacional. A natureza do mecanismo biossocial que correlaciona em sentido inverso os baixos níveis de vida com altos coeficientes de natalidade, está ligado ao nível deficiente de alimentação, principalmente a fome específica de proteínas de alto valor biológico, fome que determina uma fertilidade potencial mais elevada na mulher, com capacidade de reprodução mais intensa. A situação das economias mais desenvolvidas ocorre no sentido inverso, no qual suas estruturas econômicas especiais que favorecem um abastecimento alimentar adequado, faz com que baixem os coeficientes de mortalidade. Esse fenômeno pode ser observado nos países desenvolvidos, nos quais o agir “teleonomicamente” também provocam uma baixa nos índices de natalidade, como é o caso dos países de alto nível de desenvolvimento econômico. Nesse caso, a fome é resultado do progresso econômico defeituoso, que agrava e torna esse flagelo o principal motivo para a miséria: “a baixa produtividade por falta de energia criadora e do consumo ínfimo por falta de produtividade que venha criar uma razoável capacidade aquisitiva”. Este fosso econômico entre ricos e pobres, divide a humanidade em dois grupos que, segundo Josué de Castro é: “o grupo dos que não comem, constituído por dois terços da humanidade, e que habitam as áreas subdesenvolvidas do mundo, e o grupo dos que não dormem, que é o terço restante dos países ricos, e que não dormem, com receio da revolta dos que não comem”.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

sexta-feira, 9 de julho de 2010

O MUNDO ASSOMBRADO PELA CORRUPÇÃO

As políticas neoliberais são resultado de um processo criminoso levado ao extremo por grupos e corporações globais, que, na sua voracidade ilimitada por lucros, terminou desencadeando a crise atual, não apenas econômica, senão também política e cultural. O conceito de modernidade envolve todas essas questões, principalmente para os intelectuais contemporâneos, que devem enfrentar o desafio de entender o atual processo civilizatório. O neoliberalismo afirmava que “os estados-nações converteram-se em unidades de operações artificiais, inviáveis numa economia global”, e, ao mesmo tempo, num ufanismo quase religioso, modelava uma sociedade pós-capitalista sem identidades nacionais, em função da obsolescência do Estado, de modo a vislumbrar um novo mundo utilitarista sem crenças coletivas baseado na economia de mercado. No entanto, tal visão terminou se transformando numa armadilha mortal. A civilização entrou no terceiro milênio descobrindo que o processo neoliberal tanto alardeado, que criminalizava o Estado e tentava impor as forças irresistíveis do mercado sobre a soberania política das nações, foi orquestrado por um processo de corrupção sem limites – estreito noivado entre os delinqüentes públicos e a globalização – que causaram uma violenta concentração de renda por parte de grupos privados não muito longe das organizações criminosas.
Quando falamos de corrupção, devemos entendê-la não como um ato isolado, e sim como um fato social predominante num determinado contexto socioeconômico. O corrupto não é apenas fruto de pequenas infidelidades. Ele é resultado, como diz Frei Beto: “de detalhes que se lhe acumulam na alma, como levar vantagem num negócio ou trair a confiança alheia. Não é o dinheiro que destrói sua moral. É a ganância, a arrogância, a convicção que é mais esperto que os demais”. Tal doença não é exclusiva do setor público, ela contamina o universo do setor privado e das instituições não governamentais. Por que então colocamos nossos olhos na coisa pública? Os meios de informação nos bombardeiam com banalidades e lugares comuns que nos sugerem que a corrupção na administração pública prospera porque as conseqüências de ser descoberto e punido são leves em relação às vantagens. No entanto, ninguém se interroga sobre a correlação entre níveis de corrupção e grau de superioridade dos salários privados em relação aos públicos, assim como favoritismo político, imprevisibilidade do sistema judiciário e outras coisas do gênero. Cabe perguntar-se se existe alguma relação conceitual entre um miserável que se corrompe por um pedaço de frango - por questões de sobrevivência - com aquele que faz parte do topo da pirâmide social, que conscientemente usa os mecanismos da corrupção para se enriquecer a custa da miséria dos outros. Como podemos explicar isso às crianças e aos acadêmicos nas universidades? Há possibilidade de ampliar a consciência cidadã a partir da constatação de que a economia caiu nas mãos de grandes grupos privados (globais ou locais) que se apropriaram de altíssimas taxas reais de benefícios como parte do processo de depredação geral dos tecidos produtivos, quitando ao Estado, nesse intervalo, sua capacidade de resposta social? Falar de corrupção apenas em termos morais e éticos não basta. Ela excede a simplificação do fenômeno. Porque o flagelo da corrupção não apenas atinge o comportamento político-econômico da sociedade, senão que se afunda na essência da decomposição cultural desta, que inclui o declínio de crenças coletivas igualitárias e solidárias, substituídas por diversas formas de amoralidade e egoísmo dissociador. Cultuar o “triunfador” em paralelo ao desprezo pelo “perdedor” é o que resta de uma trama complexa de um modelo que pauta seu sucesso na liquidação das normas e na invasão criminosa do tecido social. Que armas o expectador impotente pode usar contra uma força descomunal que ultrapassa seus sentimentos de justiça, principalmente quando a ilegalidade se transforma no terreno natural dos negócios?
Victor Alberto Danich
Sociólogo

quinta-feira, 1 de julho de 2010

A ECONOMIA DO BEM-ESTAR SOCIAL

O economista indiano Amartya Kumar Sen, premiado em 1998 com o prêmio Nobel em Ciência Econômica por suas contribuições na área de economia do bem-estar social, sempre foi um estudioso dos problemas relativos às causas da fome, levando-o ao desenvolvimento de soluções práticas para prevenção e limitação dos efeitos de reais ou aparentes faltas de comida num mundo com superprodução de alimentos. Formado no Presidency College em Calcutá, e doutor pelo Trinity College, em Cambridge, seu trabalho pioneiro está focado na avaliação das medidas econômicas com relação aos seus efeitos no bem-estar da sociedade. Sua monografia intitulada "Escolha Coletiva e Bem Estar Social" (1970), que contempla assuntos como direitos individuais, o poder da maioria e dados sobre condições pontuais, transformou-se na base teórica para a criação de métodos para medir a pobreza, de modo a produzir informações úteis no aprimoramento das condições sociais das classes mais pobres. O interesse de Sen sobre os problemas da fome foi resultado de sua experiência em relação aos acontecimentos ocorridos em Bengala, em 1943, quando três milhões de pessoas morreram por causa da fome. Tamanha tragédia poderia ter sido evitada, dizia, já que existia na Índia um estoque de comida suficiente para atender as necessidades da população. O que Sen detectou nessa oportunidade? Que a distribuição de comida foi prejudicada por causa de um grupo específico de pessoas. Foi o caso dos trabalhadores rurais, que perderam seus empregos e, portanto, a sua capacidade de comprar comida. Em seu livro "A Pobreza e a Fome: uma Dissertação sobre o Direito à Propriedade e à Privação" (1981), Sen mostrou claramente que em muitos casos de fome, os estoques de comida não se reduziram de forma significativa, o que revelava vários fatores sociais e econômicos, como o declínio de salários, desemprego, subida dos preços dos alimentos e deficiência nos sistemas de distribuição, como a causa principal da fome de certos grupos da sociedade. Por exemplo, seu trabalho teórico sobre situações de desigualdade, demonstrou porque há menos mulheres do que homem em alguns países pobres, apesar de nascerem mais mulheres e a mortalidade infantil ser bem maior entre os meninos. A constatação de tal fenômeno é resultado da existência de melhores tratamentos de saúde e de oportunidades durante a infância para aos meninos destes países, o que faz com que se reproduzam tais desigualdades.
O trabalho de Sen influenciou organizações internacionais e governos para uma atenção redobrada perante as crises de alimentação. Tais situações levaram aos setores tomadores de decisão a assumirem iniciativas mais amplas, não apenas no alívio imediato do sofrimento, senão também na utilização de políticas públicas para substituir e resguardar a renda perdida da classe pobre, mantendo estáveis os preços dos alimentos. A democracia funcional, para Sen, passa pelas liberdades políticas, longe das ideologias conservadoras centradas apenas na eficiência econômica, de modo a permitir que os líderes governamentais sejam sensíveis com as demandas da sociedade. Desse modo, Amartya Sen, argumenta que para que o crescimento econômico seja atingido, as reformas sociais, como melhoria na educação e saúde pública, devem preceder às reformas econômicas. Por sua contribuição na área da economia do bem-estar social, a Academia Real de Ciências da Suécia reconheceu a importância do trabalho de Sen, no sentido de que, pela primeira vez na história do pensamento econômico, foi instaurada uma “dimensão ética à discussão dos problemas econômicos vitais”. Nesse sentido, o comitê do Nobel remodelou a tradição de outorgar o prêmio apenas a aqueles que convergem na arquitetura fundamentalista da economia de mercado, quebrando desse modo sua vertente conservadora, e reconhecendo, de certa forma, que as fundações sociais da economia devem ser a principal fonte para a construção de uma sociedade menos desigual.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

EMPRESÁRIOS SOCIAIS

A crise mundial deixou ao descoberto a ineficácia dos mercados financeiros convencionais, incapazes de atender às necessidades de comunidades em situação de pobreza, cuja única saída é contrair empréstimos ou poupar para reduzir a vulnerabilidade dos choques econômicos. Ter acesso ao crédito é decisivo para qualquer empresa, independente do seu tamanho, de modo a sobreviver num mercado de flutuações inesperadas. Pior ainda quando se trata da obtenção de empréstimos por parte de pessoas em situação de pobreza, já que os bancos se recusam a atendê-las, exigindo garantias ou depósitos onerosos. Durante as décadas de 1980 e 1990, a exclusão financeira foi exacerbada através dos programas de ajuste idealizados pelo FMI e seus parceiros locais, fechando ou privatizando bancos estatais e de desenvolvimento, que cumpriam a função de subsidiar empréstimos para agricultores e outros setores mais vulneráveis da sociedade.
Entretanto, sem muito alarde desde o inicio da década de 1990, algumas organizações fora do circuito financeiro global, caracterizadas por não ter fins lucrativos, começaram a ocupar um espaço importante no atendimento a pessoas em situação de pobreza. O caso mais conhecido é o Banco Grameen de Bangladesh, fundado pelo Prêmio Nobel da Paz em 2006, Muhammad Yunus. O sistema de microfinanciamento idealizado por este “empresário social” teve, em pouco tempo, um crescimento surpreendente no atendimento a mutuários. De 13,5 milhões em 1997, aumentou para 113,3 milhões em 2004, sendo que dois terços do total desses indivíduos sobreviviam com menos de um dólar por dia. O interessante desse modelo solidário de microcrédito, é que em cada cinco clientes, quatro são mulheres, principalmente donas de casa e idosas, que se unem em grupos para obter empréstimos de forma coletiva. O Banco Grameen realiza empréstimos em torno de U$S 100 por grupo, apesar de que também disponibiliza dinheiro para mendigos urbanos, sem juros, até U$S 9, de modo a permitir que estes se tornem vendedores de rua. Parece impossível, mas as taxas de inadimplência são extremadamente baixas – o Banco afirma que mais de 98% dos empréstimos que adjudica são quitados – fazendo com que o microcrédito se torne auto-sustentável e lucrativo.
Tais mercados situados na base da pirâmide, terminaram atraindo grandes bancos comerciais que descobriram novas opções de investimento no setor de microcrédito, realizando parcerias com as organizações existentes, de modo a facilitar o acesso ao crédito e poupança a mulheres em situação de pobreza. Dessa configuração surgiu o primeiro banco multinacional de microcrédito, o Procredit, fundado em 1996, e apoiado financeiramente pela Sociedade Financeira Internacional – IFC, ligada ao Banco Mundial. Talvez essas novas formas de olhar o futuro econômico da sociedade, permita remodelar um mundo que passa fome e penúria. O sucesso dos programas de microcrédito revela como procedimentos solidários, organizados para preservar a segurança humana, podem ser materializados através da cidadania ativa. Mais do que isso, as formas empresariais socialmente responsáveis, configuradas através de organizações comunitárias e empresas sociais, podem constituir novas formas de parcerias econômicas, onde o lucro por si só não seja o foco principal de tais iniciativas. A rápida ampliação e a diversidade de programas de microcréditos, já estabeleceram novos padrões de comportamento econômico, que permitiram que milhões de indivíduos em situação de pobreza diminuíssem os riscos da exclusão financeira. Parece difícil falar sobre formas hipotéticas de reconstruir o planeta sobre alternativas mais justas, principalmente com medidas que contradizem o modo de operação do próprio sistema, pautado apenas em relações econômicas, nas quais a maximização do lucro é o foco principal. No entanto, tais alternativas devem ser redescobertas como o eixo condutor para aquelas que já existem na prática, não como perdas, e sim como investimento, conceito cada vez mais adotado por algumas instituições e pelo próprio Estado.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

A MÁSCARA DO PRECONCEITO

Demorei uma hora para ler o livro “Nunca antes na história deste país”, do humorista Marcelo Tas. Não vou perder tempo em analisar os comentários ao longo do texto, apenas vou fazer referência à sua última afirmação, que diz o seguinte: “Tem razão o presidente. A crise não atravessou o Atlântico. Veio a pé mesmo, devagarinho, pelo Canal do Panamá. Demorou um pouco, mais chegou!” Logo continua como se fosse o presidente Lula falando: “Cumpanheiro leitor (escrevendo errado de propósito), não vou parar de falar tão cedo. Continue o livro anotando minhas próximas frases aqui. Obrigado!”. Eu acho que o senhor Tas deveria parar por aí, e repensar se quer ser humorista ou economista político. Sua desfaçatez preconceituosa se vislumbra já na introdução, quando afirma que o presidente fala sobre assuntos dos quais não tem o menor conhecimento. Parece que tal humorista se especializa em fazer piadas ofensivas, de modo a esconder sua frustração em não ser protagonista dos destinos do Brasil. Para isso vou desconstruir a afirmativa final do livro apenas com dados reais, de forma a evitar juízos de valor que comprometeriam uma análise ponderada do que aconteceu no país durante a crise que se avizinhava em 2007. As medidas econômicas adotadas pelo governo em 2008-2009, contrariamente ao que aconteceu durante as crises de 1980 e 1990, foram medidas monetárias e fiscais anticíclicas. O objetivo foi evitar que a crise contaminasse o sistema financeiro do país, além de recuperar o padrão de atividade econômica o mais rápido possível, premissa integralizada em todos os discursos oficiais do presidente Lula, principalmente quando colocou todo seu prestígio político em jogo, ao dizer claramente que os trabalhadores e os empresários deveriam esquecer-se da crise mundial e produzir para que a atividade econômica da sociedade não parasse. As ações do Banco Central reduzindo os depósitos compulsórios, de modo a expandir a liquidez, permitiram injetar 3,3% do PIB no mercado bancário, evitando assim o contágio da crise internacional. Já em 2009, a União concedeu empréstimos ao BNDES que permitiu repassar linhas de crédito de curto prazo ao setor produtivo. Além dessas ações na política monetária, o governo implementou um conjunto de desonerações tributárias para estimular as vendas e o consumo. A redução do IPI, bens de consumo duráveis, materiais de construção, bens de capital e alimentos, foram as medidas mais eficientes para evitar a crise que atravessou o “Canal de Panamá”, e que, conforme o presidente Lula disse, chegou como uma “marolinha”. A ignorância de Marcelo Tas revela-se nesta constatação. Qual é a razão de perder o tempo em citar o livro deste humorista?
Vou esboçar algumas considerações. Em primeiro lugar, não é possível que um comunicador, usando seu poder mediático, tente descaracterizar a capacidade de um indivíduo mediante a burla preconceituosa e infame. Nesse caso está ofendendo a maioria da população do país, que é justamente a que constrói a riqueza do Brasil. Exacerbar de forma despiadada os erros de sintaxes do presidente não acrescenta nada ao inconsciente coletivo. Só satisfaz aqueles que se divertem incentivando as lutas de classes, quando na realidade deveriam ser os responsáveis por diminuí-las. Em segundo, a editora Panda Books deveria ter vergonha em publicar um livro impresso em papel da melhor qualidade, direcionado apenas para uma pequena parcela da sociedade, composta de um público cativo adicto a um tipo de piadas que criminalizam indivíduos que não fazem parte de suas preferências ideológicas. Realmente, o Brasil é bem maior do que a “imaginação” de Marcelo Tas, que usa sua linguagem televisiva para deformar a realidade, fragmentando-a com a desinformação. Sugiro que o leitor, que leu o livro, possa avaliar o país que está construindo seu futuro através da mobilidade social, e complete com suas impressões o espaço deixado ao “sabor do tempo e de seu próprio juízo”, do qual o autor é incapaz de finalizar.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

quinta-feira, 10 de junho de 2010

ANTECEDENTES PERIGOSOS

Alguns meios de comunicação de grande circulação mediática têm a característica de construir factóides apavorantes, singularmente cativantes para alguns setores da sociedade, que se assustam de tudo aquilo que possa alterar suas concepções bipolares da realidade. Nada melhor do que a visão conservadora para despertar tamanha assimetria. Estes comunicadores, que simulam uma intelectualidade fajuta, desmereceram desde o princípio o tratado realizado entre o Brasil, Turquia e Irã, como se fosse uma iniciativa fracassada por parte do nosso país, ridicularizando até o extremo as ações da nossa diplomacia. Tanto é assim, que usaram como argumento a desconfiança dos Estados Unidos e seus poderosos aliados de plantão, que na semana passada aprovaram sanções mais rígidas contra o Irã. Nada foi dito sobre o armamento nuclear de Paquistão, Índia e Israel, fazendo com que o corporativismo submisso prevalecesse. O embaixador Celso Amorin resumiu brilhantemente a ação unilateral destes parceiros nucleares, com a seguinte frase: “Estão preocupados em desarmar os desarmados sem desarmar os armados”.
A liberdade de imprensa funciona quando os fatos são tratados amplamente, e não apenas através de uma visão filtrada por condicionantes culturais e ideológicos. A incapacidade destes meios de usar o recurso da contextualização histórica, ou pior, por serem reféns de um público cativo que os alimentam economicamente, preferem esconder a existência de fatos constrangedores nas relações entre Brasil e os Estados Unidos, que explicariam melhor porque nosso país não concorda com as sanções contra Irã. Talvez o relato de um grave episódio sirva como ponto de reflexão para entender a atitude atual da diplomacia brasileira. O então presidente George W. Bush, por ocasião dos atentados do 11 de setembro, no discurso do Estado da União, em janeiro de 2002, delineou as diretrizes de sua política exterior, dizendo o seguinte: “Os estados que gostam e são aliados dos terroristas, linha central do eixo do mal, se armam para ameaçar a paz do mundo”. A afirmação de que esses países estavam buscando fabricar armas químicas, biológicas e nucleares, foi à justificativa para seu programa de guerra permanente e ilimitada. Apesar de que o Iraque, o Irã e a Coréia do Norte não tivessem qualquer envolvimento nos atentados terroristas do 11 de setembro, Bush acusou-os assim mesmo, de modo a eliminar dos organismos multilaterais qualquer um que se opusesse a sua política belicosa. Foi o que aconteceu com o embaixador brasileiro José Maurício Bustani, que era, naquela época, diretor-geral da Organização para a proibição de Armas Químicas (OPAQ), e cuja permanência no cargo significava um obstáculo aos preparativos da guerra contra o Iraque. Bustani, que resistia a qualquer tipo de pressão que viesse a afetar as decisões do organismo, principalmente quando se negava a isentar os Estados Unidos da inspeção estabelecida pela Convenção para a proibição de Armas Químicas (CPAQ), teve como resultado a solicitação do seu afastamento por parte do governo norteamericano. Nessa ocasião, Bustani tentou convencer o Iraque de submeter-se ao controle de uma equipe de inspetores da OPAQ, incluindo a parceria com a Comissão de Monitoramento das Nações Unidas (UNMOVIC), controlada pelos Estados Unidos. Entretanto, o governo Bush não aceitou tais entendimentos, já que isso possibilitava a inspeção in loco do suposto arsenal de armas químicas, que o Iraque insistia em ter eliminado por completo. Como podemos observar, não existe muita diferença entre o governo Obama e do seu antecessor, principalmente no que se refere à política externa. Lograr uma solução pacífica para a destruição das supostas armas biológicas, acabaria de vez com a pretensão de continuar a guerra contra Iraque. Apesar dos esforços do Itamaraty em seu favor, Bustani foi destituído, e as armas de destruição de massa, que serviram como justificativa para invadir o Iraque, jamais foram encontradas.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

DESIGUALDADE E POBREZA

As pessoas não gostam muito de discutir os problemas da pobreza, principalmente aqueles que se encontram longe dela. Ler qualquer informação que tire o indivíduo de seu espaço de conforto, significa reavaliar a realidade com uma visão até então despercebida. Nesse caso, o cientista social tem a ingrata tarefa de descobri-la e transformá-la numa discussão política. O Brasil, apesar de ser um dos países mais abastados do planeta, situa-se entre as nações mais desiguais do mundo. De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em 2003 a desigualdade de renda medida pelo índice GINI superava apenas países com Serra Leoa, Lesoto, Suazilândia e Namíbia. No entanto, o Banco Mundial indica a economia brasileira entre as dez mais ricas do mundo, com um Produto Interno Bruto (PIB) de U$S 1,7 trilhão, bem próximo da Itália em termos de paridade de poder de compra. Isso significa que, com uma população de 192 milhões, o PIB per capita corresponde a U$S 9.000. Tais dados são importantes para comparar com o nível de concentração de renda existente no país, que se revelam nos seguintes números: 2 milhões de pessoas, que correspondem a 1% da população, concentram 13% do total das rendas domiciliares. Tal percentual aproxima-se ao distribuído entre os 50% mais pobres, que equivale a cerca de 80 milhões de brasileiros. Vamos fazer um parêntesis para esclarecimentos. Algumas pessoas sentem-se incomodadas por estes dados reveladores, porque presumem que estão sendo questionadas na aquisição do seu patrimônio particular. Nada disso. O que está sendo colocado em discussão é a existência de um modelo econômico que precisa ser remodelado, no qual cada indivíduo usufrua da riqueza conforme sua capacidade, mas que permita aos menos favorecidos viver dentro de parâmetros sociais dignos. Qual é o fundamento para tal argumentação? Segundo os dados divulgados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 30.3% da população, que corresponde a 54 milhões de pessoas consideradas pobres, há, entre elas, 20 milhões extremadamente pobres, que abarca 11,5 % dessa totalidade. Por outro lado, raiando a omissão, não é possível continuar afirmando que essa parcela da população é a única culpável pela sua pobreza, e sim discutir seriamente se a causa dela é resultado de uma injusta distribuição de renda. Só basta fazer uma comparação com a média apresentada pelos países que tem uma renda per capita semelhante à brasileira, e que, apesar disso, seus percentuais de pobreza são menores do que 10%, mostrando-se três vezes inferiores ao observado no Brasil.
Apesar de que as distâncias entre ricos e pobres são mais visíveis nas cidades, nas quais vive quase 80% da população brasileira, a desigualdade também pode ser verificada no campo, no qual convivem, por um lado, imensos latifúndios e grandes empresas rurais, que monopolizam quase totalmente as áreas agrícolas do país, e, por outro, milhões de pequenos proprietários e de trabalhadores rurais vivendo em dramáticas condições de vida. O índice GINI fundiário mostra que a porcentagem da área total ocupada pelos 10% dos maiores imóveis chega a 78% do total da área rural do país. Apesar desse quadro assustador, o país está realizando um esforço continuado para melhorar a situação de pobreza extrema, e, fundamentalmente, a desigualdade de renda. De acordo com os dados do IPEA (2007), o nível de desigualdade na distribuição dos rendimentos do trabalho, é o menor dos últimos 30 anos. Conforme o coeficiente de GINI, entre 2001 e 2006 a desigualdade caiu mais de 6% no período, que mostra que houve um aumento efetivo de renda para os 70% mais pobres, enquanto os 10% mais ricos perderam rendimentos nessa seqüência. Já em 2004, com a efetiva atuação do Estado e a retomada do crescimento, a pobreza extrema foi reduzida em 4,9 pontos percentuais, e a pobreza 2,7 em direção a 2010. Desse modo, o Brasil caminha para a democracia e o desenvolvimento, apesar daqueles que não acreditam nisso.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

COM COMIDA SE APRENDE A PESCAR

Os dados divulgados pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, em conjunto com o Ministério da Educação, revelaram que o Bolsa Família tem um impacto sumamente positivo no processo educacional dos beneficiários do programa. Tal constatação é uma prova do uso errado da frase tão divulgada, que, carregada de juízos de valor, faz valer seu conteúdo preconceituoso: “primeiro ensinar a pescar para logo dar de comer”.
O Ministério da Educação, ao verificar os índices de aprovação e abandono escolar dos estudantes da rede pública de ensino, pode constatar que a exigência do Bolsa Família para freqüência às aulas, cumpre um papel importante no processo educativo. Como política pública vigorosa de transferência de renda, direcionada para atender aos setores mais pobres da população, de modo a integrá-los num modelo de educação inclusivo, o programa revelou indicadores alentadores, no qual se destaca a aprovação dos beneficiários no ensino médio como sendo maior do que a média nacional, que corresponde a 81,1% contra 72,6%. Com referência ao ensino fundamental, há uma similaridade estatística, na qual aparecem 80,5% de beneficiários aprovados contra 82,3% da média nacional. Por outro lado, os indicadores de abandono no ensino fundamental, assim como no ensino médio, também mostram um impacto positivo, com a diminuição das taxas de desistência, bem inferiores à média nacional.
Tais dados são resultado da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) e pelo Sistema Presença de freqüência escolar do Bolsa Família, mostrando que, enquanto em 2001 existiam 920 mil crianças fora da sala de aula, tal número caiu para menos de 570 mil em 2008. Pode-se observar que nesta configuração existe um condicionante de valor inestimável, que é o acompanhamento nutricional das crianças por parte do programa, ultrapassando aquilo considerado como além da sobrevivência alimentar, que é a melhoria do comportamento, do vestuário e da autoestima dos alunos. Nada melhor do que estar alimentado para começar a sonhar com num futuro possível. Uma criança ou um adulto com fome é incapaz de assimilar qualquer tipo de educação formal.
O relatório anual intitulado “Situação Mundial da Infância” publicado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), mostra claramente os dados apontados anteriormente, que indica que no Brasil, um percentual de alunos de 6 a 15 anos com acompanhamento de freqüência escolar, atingiu uma média de 85,2% no primeiro semestre de 2009, chegando a 89,65% no final de 2009, representando um universo de aproximadamente 14 milhões de alunos sob acompanhamento. A constatação também é detalhada no Relatório de Desenvolvimento Humano do PNUD, de 2008, que apontava um crescimento de 60% de matrículas escolares no país, principalmente entre jovens de 10 a 15 anos que se encontravam fora da escola. Devemos imaginar que a sociedade como um todo, gostaria de ter uma população sadia e trabalhadora, que tivesse a oportunidade de construir coletivamente um país economicamente solidário, sem travas para um desenvolvimento sustentável, no qual a educação deveria cumprir um papel fundamental na prevenção da miséria e da exclusão social. Para isso acontecer, devemos reeducar aquelas pessoas que, por desconhecimento ou insensibilidade, sempre estão em contra de qualquer ação distributiva que não coincida com suas visões particulares da realidade econômica, e que, ao fazer uso de conceitos ou frases pré-fabricadas, aproveitam para exaltar as distorções que possam acontecer na aplicação de tais programas. A criminalização de qualquer iniciativa direcionada a atender os setores mais desprotegidos da sociedade, que tanto precisam da capacidade de resposta social por parte dos governantes, é um desatino. Um Estado conivente apenas com as leis do mercado, livre do compromisso com seu povo e seu bem-estar, sempre será incapaz de construir um país justo e democrático, por mais que paute seu sucesso na promessa do capital e da tecnologia.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

O CIRCUITO HELENA RUBINSTEIN

Quando escrevemos sobre fatos sociais, muitas vezes usamos o vasto recurso das alegorias. Alguns utilizam provérbios religiosos, outros, como no meu caso, a cosmetologia política para dar título a um artigo. Neste particular, o circuito mencionado está relacionado a aqueles que se movimentam nos parâmetros de intimidade nas relações privilegiadas com Nova York, Londres, Paris, Berlin e seus parceiros ideológicos. Fora desse contexto de sofisticação ocidentalizada, qualquer iniciativa que possa ser realizada entre países fora dessa órbita, sempre estará, segundo eles, condenada ao fracasso. É o caso da missão do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva sobre o acordo tríplice entre Brasil, Turquia e Irã. Isso não acontece apenas porque não se acredita em tal acordo, senão pelos problemas que surgiriam se tivesse êxito a via negociada do conflito. Assim como a justificativa das “armas de destruição em massa” servira para iniciar a ocupação criminosa do Iraque, inclusive sem a autorização expressa das Nações Unidas, o fantasma da “bomba atômica” é o sinal para desencadear a derrocada do único país que oferece resistência ao poder colonial dos Estados Unidos no Oriente Médio. Qual é o interesse econômico nisso? O controle do Golfo Pérsico.
Dominar a totalidade da região, desde o golfo até o estreito de Ormuz, significa deixar livre o fluxo do óleo que abastece o ocidente sem qualquer tipo de interferência. Os argumentos dos poderosos para desfazer qualquer iniciativa de acordo são extremadamente frágeis, principalmente porque recentemente a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), com apoio dos Estados Unidos e seus aliados, propusera ao governo iraniano a troca de urânio levemente enriquecido por combustível nuclear processado fora do Irã, que deveria entregar aproximadamente 70% do seu urânio enriquecido a mais de 5%. Os termos dessa proposta são similares ao acordo selado pelo presidente brasileiro. A incapacidade das grandes potências em aceitar a intervenção de um líder popular com capacidade de negociação livre de condicionantes, assombra as estratégias geopolíticas, profundamente indutoras de gestos belicistas. A diplomacia adotada pelo governo brasileiro está pautada numa política internacional autônoma, na qual prevaleça o fortalecimento da integração entre todos os povos e governos, de modo a superar as categorias dogmáticas do passado.
Tal configuração nem sequer é levada em conta por Washington e seus associados europeus, já que a proposta do acordo, que será entregue a AIEA para aprovação, está configurada nos seguintes termos: o Irã entregará 1.200 kg de urânio levemente enriquecido a 3,5% à Turquia, onde ficariam resguardados sob vigilância iraniana e turca. Depois de um ano, o Irã receberia 120 kg de urânio enriquecido a 20%, de modo a abastecer o Reator de Pesquisa da Universidade de Teerã. No momento em que se iniciou a gestão diplomática do governo brasileiro, imediatamente foram emitidos todo tipo de mensagens negativas às vésperas da viagem do presidente Lula ao Irã. As ameaças veladas e o ceticismo imperavam nas críticas a iniciativa do Brasil. Não restavam dúvidas para esse desenlace auspiciado por um ataque frontal jornalístico. A mídia internacional encabeçada pela imprensa conservadora, com destaque para “The Economist” de Londres e “El País” de Espanha, terminaram criminalizando descaradamente um ato que se configura claramente como uma atuação autônoma no concerto internacional. Talvez estejamos presenciando pela primeira vez em muitos anos, o aparecimento de líderes com capacidade para extirpar de vez nosso complexo de colonizados, que atormentou durante tanto tempo a construção da nossa auto-estima, que transformou nossos países em meros expectadores das decisões globais, e que nos relegou a simples co-ajudantes de um mundo bipolar. Brasil está demonstrando através de sua vigorosa diplomacia, um caminho alternativo ao charme enganoso do circuito Helena Rubinstein.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

quarta-feira, 5 de maio de 2010

PRESENTE DE GREGO

No meio de uma crise brutal, iniciada em 2008, milhões de trabalhadores gregos que foram à greve geral recentemente, gritavam nas ruas de Atenhas: “Nós não pagaremos”. Qual seria a razão de suas reivindicações? Estariam compelidos por um novo tipo de revolta social? Que forças ocultas provocaram tais manifestações? Talvez a resposta esteja no agravamento da dívida pública dos governos, neste caso, daqueles que fazem parte da comunidade européia, diretamente ligados à crise que afeta Grécia.
A dívida pública não é somente o endividamento bruto do conjunto das administrações públicas. Também fazem parte deste conjunto os compromissos financeiros que as instituições governamentais devem, em princípio, reembolsar a seus credores, pagando interesses. Em todos estes anos de liberalização financeira e cambial, sob o efeito das diferentes recessões econômicas provocadas pelo modelo neoliberal, às finanças públicas se deterioraram de forma assustadora. A dívida pública, portanto, vincula-se estreitamente à crise estrutural do capitalismo desde a década de 1970, que evidencia sua face perversa nesta crise atual. Vamos desvendar um pouco da trama desse turbilhão global.
Uma visão geral do processo de globalização econômica, nos mostra, de forma clara, que a concentração geográfica da especulação financeira, provoca uma concentração de renda abismal, tanto nas sociedades ricas como pobres, aumentando a miséria da maior parte dos habitantes da periferia e, ao mesmo tempo, empobrecendo partes significativas da população dos países centrais. Processos de depredação, ruína de sociedades e aparatos estatais, desemprego, financeirização e concentração de negócios causaram uma crescente desordem mundial, encoberta por uma teia de conceituações triunfalistas, entre elas o endeusamento da “racionalidade do mercado financeiro”. Nessa parafernália econômica, o agravamento das dívidas públicas não está vinculado a um aumento “incontrolado” das despesas públicas, mas sim a uma redução relativa dos rendimentos públicos, que se refletem na diminuição dos impostos aos mais ricos e as grandes empresas capitalistas multinacionais, desonerando desse modo as operações financeiras globais. Tal política termina beneficiando diretamente os especuladores de plantão, que permite realizar uma operação milagrosa. Por arte de mágica, estes senhores convertem-se nos credores do Estado.
Desse modo, os bancos nos quais os especuladores colocam seus ganhos, compram títulos da dívida pública, e, os impostos não pagos – que são na verdade uma evasão fiscal legal – termina-se convertendo num capital financeiro direcionado a atender interesses parasitários, longe das atividades produtivas. São os trabalhadores assalariados que terminam pagando aqueles impostos, reconduzindo a riqueza social em favor dos ricos. A Grécia tornou-se o terreno de prova para as políticas neoliberais de austeridade da União Européia e suas instituições financeiras, usando a justificativa da dívida pública como instrumento de ataque contra os trabalhadores gregos. Não apenas isso, quando os bancos foram salvos pelos governos em 2008, aproveitaram a oportunidade para comprar bônus do Tesouro com o dinheiro outorgado por estes. Mais ainda, usaram-no para transferir liquidez a suas filiais para ganhar sobre a dívida pública dos governos, especulando descaradamente contra seus próprios benfeitores. O poder financeiro, fachada atemporal que desonera o comportamento antiético de seus dirigentes, e que impõe, sem dor, às massas assalariadas a responsabilidade do pagamento do serviço do conjunto da dívida, é o responsável direto do grito desesperado dos trabalhadores nas ruas da capital grega. Tal precedente, importante para os homens livres deste planeta, serve para esboçar uma nova forma de pensar, cujo horizonte não seria a sociedade luxuosa do primeiro mundo, mas um modelo solidário e economicamente sustentável, no qual, o ser humano produtivo seja seu protagonista principal.
Victor Alberto Danich
Sociólogo