segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

O ENIGMA CHILENO

Muitos leitores estarão se perguntando por que Chile, sob o comando de uma presidente socialista teve, neste primeiro turno, uma inclinação em direção da direita pinochetista, liderada pelo candidato Sebastião Piñera. Vou fazer um intento de entender tal paradigma histórico. Apesar dos claros avanços focalizados em políticas públicas do governo Bachelet, ainda persiste no Chile uma extrema desigualdade social. Num país no qual o sistema impositivo, claramente recessivo, com um imposto de renda tão baixo, que faz com que os ricos praticamente não paguem impostos, termina se refletindo no inconformismo de uma classe média empobrecida, não tão pobre, mas sufocada por um custo de vida alto e poucos benefícios. Por ser um sistema totalmente privatizado, o sofrimento desta classe é ainda maior: universidade cara e tarifas insuportáveis. Se o modelo de centro-esquerda não conseguiu eliminar tais problemas, a esperança se direciona num candidato de direita que promete resolvê-los. Tal a razão da incapacidade da presidente Bachelet de transferir votos para seu sucessor.
Apesar das políticas públicas destes últimos vinte anos de governo de concertação, a essência do modelo continua sendo a mesma, centrado num nível de mercantilização criminoso da economia e da sociedade. Por que então um candidato de direita vitorioso no primeiro turno? Não existe o mínimo de desconfiança por parte da população dele continuar reforçando tal política? Para responder este questionamento, vamos analisar alguns dados das eleições presidenciais do dia 13 de dezembro passado. Dos mais de 12 milhões de cidadãos de 18 anos habilitados a votar, somente se apresentaram 6.539.570 pessoas. Desse total, 8 milhões estão inscritos nos registros eleitorais. Entretanto, mais de um milhão nem sequer se apresentaram às respectivas mesas de votação. 200 mil pessoas anularam seu voto e mais de 80 mil votaram em branco. Isto é, 47% dos potenciais eleitores em idade de votar não participaram. Isso mostra uma crise de representatividade na manutenção do modelo atual. Não se trata de criminalizar o atual governo, que tantas melhorias conseguiu combatendo a pobreza, como forma de atenuar as diferenças sociais. Porém, tudo aquilo que se perpetua, como a concentração da propriedade, por um lado, e a desigualdade em todos os níveis, por outro, são os resultados que melhor caracterizam tal governo. Tal situação tornou-se crítica perante a crise mundial, que atingiu diretamente a economia e a barriga do povo. O modelo chileno, assentado num formidável impulso exportador em produtos primários, no qual 40% destes continua sendo o cobre, dificulta a ampliação dos benefícios do crescimento a todos os setores sociais, expondo a economia aos ciclos externos recessivos, debilitando-a. O povo chileno terá a oportunidade de resolver tal enigma no segundo turno, no próximo dia 17 de janeiro de 2010.
Victor Alberto Danich - Sociólogo

PARABÉNS BOLÍVIA

O presidente Evo Morales e seu partido Movimento ao Socialismo é o grande vencedor nas eleições da Bolívia. Com mais de 62% dos votos, o MAS liquidou seus principais adversários num pleito acompanhado com atenção pela imprensa internacional. Na sua reeleição, Morales disputou contra três candidatos de oposição que, juntos, obtiveram menos de 40% dos votos do povo boliviano. O que está acontecendo de bom nesse país pequeno e pobre? Qual é o segredo da magistral popularidade do seu presidente?
Em quatro anos de governo, apesar da oposição dos setores mais reacionários da sociedade, Evo Morales e sua equipe econômica conseguiram duplicar o Produto Interno Bruto do país, registrando cifras macroeconômicas importantes, principalmente através da estatização da indústria dos hidrocarbonetos e de políticas públicas de inserção social. A obtenção de um PIB de US$ 19 bilhões, após a cifra de US$ 9 bilhões em 2005, e um nível de reservas internacionais próximo a 50% do PIB, além de uma inflação controlada e um câmbio estável, foram resultado de um modelo centrado em premissas anti-neoliberais. Parece mentira, mas o FMI teve que reconhecer a contragosto a política econômica da Bolívia, como um exemplo de prudência e equilíbrio. Tal elogio pode ser traduzido através das políticas sociais destinadas a atender demandas diretas dos setores mais humildes da sociedade, na qual se investiram mais de 300 milhões de dólares anuais, com benefício direto para mais de 25% de uma população de 10 milhões de habitantes. Tal configuração significa acabar com o capitalismo? A resposta vem da própria equipe do presidente reeleito: “Há, em primeiro lugar, um espaço capitalista que precisa ser reforçado” – explicam – “A diferença é que agora busca-se mudar certas características, a cabeça não é o investimento estrangeiro, senão o Estado produtivo”
Isso significa que, no imaginário político boliviano, o capitalismo do desastre, endógamo e especulativo, deve ser extirpado de vez. Um capitalismo produtivo que aceita uma diversidade de atores econômicos, tanto do setor empresarial tradicional como daquele que emerge do mundo popular indígena, podem ser a clave para novas formas de geração de riqueza. As forças comunitárias tradicionais, fragmentadas, golpeadas e dispersas, como resultado de tantos anos de exploração colonial, possuem no seu interior uma potencialidade pós- capitalista, no qual o 90% da economia camponesa é do tipo familiar-comunitária. Tal é o projeto que está sendo potencializado pelo governo reeleito. Os leitores que se informam apenas através da revista Veja (pasquim pseudo-intelectual, entre os íntimos), seguramente estarão apreensivos perante tamanho desenlace político. O perigo da visão fragmentada da realidade reside em mostrá-la conforme a alegoria da “Caverna de Platão”. Sugiro, como sociólogo, que utilizem outras leituras alternativas. Faz bem ao conhecimento e a saúde.
Victor Alberto Danich - Sociólogo

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

LULA, O FILHO DO BRASIL

Lendo a revista Veja na biblioteca, de modo a não gastar dinheiro inutilmente, vi um artigo sobre o filme “Lula, o filho do Brasil”. Como sempre, o pasquim aproveita qualquer oportunidade para desmerecer o nosso presidente. Torna-se evidente que a direção da revista deixa nas mãos dos articulistas o uso indiscriminado de juízos de valor, que permeiam a ideologia reacionária dos mesmos. Tal prerrogativa é feita de propósito, já que a linha editorial está direcionada aos setores mais conservadores da sociedade. Entende-se isso como a melhor forma de ganhar dinheiro, inserindo propagandas de uso pecuniário misturadas com artigos focados nesse tipo de consumidores. Nada melhor do que atender as certezas dogmáticas dos leitores cativos. Reforçar o preconceito dos setores mais privilegiados da sociedade através da mídia, tem como resultado um negócio muito lucrativo. O ato falho fica sintetizado na coluna de Diogo Mainardi, do qual tenho a suspeita de que padece de uma "disfunção freudiana", de tanto insistir em atacar o presidente Lula. Durante as campanhas, Luiz Inácio da Silva sempre foi criminalizado de forma monstruosa através da internet. Eram ditas coisas inimagináveis, vergonhosas, próprias de indivíduos covardes escondidos no anonimato. O que há de errado em fazer um filme que apague de vez tamanha vergonha? Porque o povo humilde não tem o direito de construir e admirar um ídolo popular? Qual é o problema, depois de tantos anos, os brasileiros recuperarem sua auto-estima através de um ícone público admirado no mundo todo? O povo humilde tem todo o direito de emocionar-se ao conhecer a vida de uma pessoa que nasceu entre eles, assim como a necessidade de sentir que está sendo valorizado pela primeira vez como ser humano. Desconhecer tal realidade é esconder, através de um apagão mental, o resultado de todas as políticas públicas de distribuição de renda realizadas nestes últimos oito anos (com muito sucesso), e que tanto ajudaram aos setores mais pobres da sociedade. Se essa iniciativa tem como resultado a "construção de um mito", que seja bem-vinda. Falham os articulistas Diego Escosteguy e Otávio Cabral, em dizer que o presidente observou de mãos atadas "uma recessão econômica de quase dois anos". Porque não esclarecem que Lula recebeu um país tecnicamente em "default", com reservas no Banco Central esgotadas? Será que um país se reconstrói por decreto, ou é necessário um tempo para recuperá-lo? A prova inquestionável de sua liderança, está demonstrada pela capacidade do Brasil em atravessar virtuosamente a crise atual. Sinto muita pena desses senhores, que são incapazes de controlar seu ódio ao dizer que "Lula é o mais improvável dos presidentes brasileiros". Tal opinião esconde a ideologia da soberba, típica daqueles que sonham com a auto-realização, e que, por inépcia ou frustração, não logram atingir. Coitadinhos. É por isso que observam a realidade como se fosse um filme, porque são incapazes de tornarem-se protagonistas.
Victor Alberto Danich - Sociólogo

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

PARABÉNS URUGUAI

Na madrugada desta segunda-feira, José Mujica foi eleito presidente do Uruguai com 53,2% dos votos. No meio da chuva e vento, o ex-guerrilheiro Tupamaro discursou acompanhado do seu vice-presidente eleito, Daniel Astori, perante uma multidão de cidadãos que carregavam os estandartes da coalizão de esquerda Frente Ampla. No seu discurso, Mujica agradeceu ao presidente do atual governo, Tabaré Vázquez, do qual foi ministro de Agropecuária, com palavras emocionadas: “Obrigado Tabaré, porque ganhamos pela honra deste governo”. O que o presidente eleito quis dizer com isto?
Simplesmente lembrou que seu triunfo deveu-se a política econômica adotada pela Frente Ampla, durante a gestão de Vázquez. Seu governo fortaleceu uma ativa política laboral, a qual incluiu a extensão das negociações coletivas, fazendo com que a desocupação se reduzisse de 11,4% a 9,7% entre 2006 e 2007, aumentando ao mesmo tempo o salário real em 12%. Além disso, se realizou uma profunda reforma impositiva, que foi destinada a unificar os tributos e a renda empresarial, assim como a criação de um imposto de renda para as pessoas físicas, inexistente até então no Uruguai. Enquanto o modelo neoliberal praticava sua política do desastre, Tabaré Vásquez se movimentava com imensa cautela. Evitou definições concretas em temas sensíveis, como a renegociação da dívida externa ou o confronto direto com seus adversários políticos. Pediu a seu então ministro José Mujica, o carismático líder do setor da Frente Ampla, liderada pelos ex-guerrilheiros Tupamaros, que cuidasse o tom de suas declarações, assim como nomeou o moderado Danilo Astori, como seu ministro de economia, de modo a apaziguar a direita intransigente. Com uma mensagem serena e um discurso pragmático sem promessas eleitoreiras, construiu uma base sólida para seu governo. Tal legado político fez com que a Frente Ampla mantivesse seu projeto econômico através da eleição do novo presidente. Qual é a lição que nos mostra esta nova realidade latino-americana? Que durante os anos noventa, a ideia neoliberal de despolitizar a condução econômica – ilusão tecnocrática de afastá-la dos seres humanos – supostamente deveria gerar modelos sãos e equilibrados, levando ao planeta a uma prosperidade sem fronteiras. O resultado foi espantosamente decepcionante. Tanto é, que o giro anti-neoliberal não é apenas uma tendência latino-americana, senão que a mudança de consciência se entende no mundo todo. Nesse contexto, a nova esquerda do sul do continente ressurge como alternativa válida para substituir o sonho neoliberal. Pós-revolucionária, flexível, pragmática, democrática, sem preconceitos e sem o fundamentalismo do passado, a nova esquerda continua sendo esquerda. Porém, a novidade mais importante é que a mesma converteu-se, inesperadamente, na grande protagonista deste início de século.
Victor Alberto Danich - Sociólogo

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

A PROFECIA MAIA

Neste fim de semana assisti ao filme 2012, no qual o Cristo Redentor se desmorona aos pedaços por causa do colapso do nosso sistema solar. Num primeiro momento pensei que era a vingança norte-americana por não serem escolhidos, apesar dos esforços de Obama, para sediar as Olimpíadas de 2016 em Chicago. No entanto, percebi que a coisa era mais séria. Eles estavam vivendo a mesma tragédia, com seus primeiros sinais no Parque Nacional de Yellowstone. Enfim, os norte-americanos são especialistas em criar catástrofes convincentes, tanto na ficção como na vida real. O interessante do filme é que há alguns fundamentos científicos que explicam a tragédia, relatados num estudo realizado pelo herói do filme, um cientista negro e amigo do presidente, também negro. Isso é tão fantástico que deixa o coração mole! Os estudos Hollywoodianos são magistrais para digerir suas dívidas históricas.
Para entender tal situação é necessário saber como a mecânica quântica pode afetar a origem e o destino do universo. A temperatura é simplesmente uma medida da energia média dos tipos de partículas que fazem parte da massa estelar. Sob temperaturas muito elevadas, estas partículas se movimentam de maneira acelerada, ao ponto de escaparem de qualquer atração mútua devido a forças nucleares ou eletromagnéticas. Desse modo, a grandes temperaturas, as partículas teriam tanta energia que, ao colidir entre elas, produziriam sua aniquilação. Não seria o caso dos neutrinos, citados no filme, que são partículas extremadamente leves que sobreviveram às colisões do início da expansão do universo. Como os neutrinos apresentam uma massa própria e conservam o calor dos primeiros estágios do universo, são considerados pelos cientistas como uma “matéria escura”, com atração gravitacional suficiente para deter a expansão do universo e provocar um novo colapso, tal qual a profecia dos Maias relata em seus mitos sobrenaturais.
Ainda bem que a platéia pouco se importa com esses determinantes científicos. O foco inconsciente está centrado naquilo que Freud chamava de “Instinto de Tanator”, que é a compulsão para a morte, além dos sucessivos mecanismos psicológicos de sobrevivência, como a melhor forma de superá-lo. Por outro lado, conscientemente, o público fica imaginando como faria para juntar um bilhão de Euros, de modo a pagar a passagem para a salvação, indicando claramente como a ética protestante e o espírito do capitalismo se tornam presentes no filme. Nada melhor para demonstrar, apesar do desenlace espirituoso, como o marxismo, do ponto de vista filosófico, ainda é válido, tanto hoje como no futuro. Seria muito desonesto se dissesse que não estava torcendo para que “o cientista herói” se salve e termine conquistando a filha do presidente. Uma bela mulher como melhor prêmio para um final feliz, tanto para ele como para os espectadores presentes no cinema.
Victor Alberto Danich - Sociólogo

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

APAGANDO A MEMÓRIA

Num país dominado pelos contrastes ideológicos entre norte e sul, no qual os críticos de plantão fazem apologia de alguns problemas sazonais, para depois tentar esconder, por incapacidade ou frustração, as conquistas recentes realizadas pelos governos latino-americanos, buscam suas justificativas em aparentes juízos de valor, muito distante daquilo que a realidade nos mostra. O Brasil, apesar dos problemas que nos acossam, resultado de longas experiências econômicas fracassadas, encontra-se atualmente num momento virtuoso. Nesse contexto, a exaltação dos opositores em focar suas críticas nos problemas de gestão, dos déficits institucionais, do populismo, da concentração de poder e da corrupção, em nenhum momento centram no eixo de suas campanhas a procura da igualdade social e a luta contra a pobreza. Não por acaso os setores mais pobres da população se converteram na base política do atual governo. Sinto-me em desvantagem por estar colocando isto numa crônica, que seguramente passará despercebida por aqueles que gostam de cultuar as “economias de resultado”, bem ao gosto dos ortodoxos da riqueza. No entanto, o mal-estar dos saudosos do fracassado modelo neoliberal, confinados num delirante esquecimento mental, sofrem em digerir a nova reestruturação do pensamento no sul do continente. O que envolve tal descoberta? Muito simples: O desenvolvimento econômico e a democracia só são possíveis através da inclusão social. Aquela premissa de crescimento para depois repartir o “bolo” é coisa do passado reacionário e conservador.
Para finalizar, apesar de alguns me chamarem de “gringo”, por causa do meu sotaque, vou falar do meu país, que é o Brasil, e que parece não ser a pátria de muitos que aqui nasceram. Dizem-nos que o presidente Lula está surfando nos frutos das matérias-primas vendidas no exterior, ou comandando a economia nas bases sólidas do seu antecessor. Nada em contra. Porém, tal consideração raia no simplismo. O Brasil superou a pior crise econômica de pós-guerra investindo fortemente no mercado interno, e o que é essencial, através de políticas públicas de inserção social. Coisa que o gigante americano nem sonhou em fazer, enforcando-se na sua própria armadilha. O governo brasileiro, nestes últimos anos, construiu uma imagem de país consolidado, não apenas por sua potencialidade produtiva, senão por seu destaque em teses de doutorado publicadas internacionalmente. Nunca se investiu tanto em Ciência e Tecnologia através de editais do CNPq e Finep como agora. O presidente Lula é nomeado o maior estadista do ano e seus programas sociais são admirados e copiados profusamente no mundo todo. O que mais queremos? Concordo com a argumentação da existência da criminalidade e outras desigualdades. Talvez a resposta a esse interrogante esteja em que um pobre brasileiro demora um ano em consumir o que um rico gasta em três dias. Não é o atual governo o culpado disso. É a nossa própria e longa história de pesadelos e mesquinharias.
Victor Alberto Danich - Sociólogo

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

NOS BAILES DA JUVENTUDE

Muitos devem pensar, quando escrevo crônicas políticas, que passei toda minha vida sendo um carrasco intelectual encerrado num quarto em penumbras, inventando teorias da conspiração. Nada disso, quando jovem me divertia loucamente. Por outro lado, falar da gente em primeira pessoa é muito mais fácil e mais ameno. Por isso vou fazer um parêntesis ideológico e contar uma pequena história do final dos conturbados anos 60. Éramos uns dez rapazes alegres que se preparavam para ir nos bailes da periferia a conquistar corações. Montávamos um velho Ford 1938, que chegava rugindo com seu motor V8, fazendo estardalhaço na entrada das pequenas cidades no meio dos pampas argentinos. Os salões eram imensos, repletos de cadeiras e mesas ao logo da pista de dança. As músicas de Roberto Carlos se misturavam ao som estridente dos Beatles e cumbias colombianas. As moças exaltadas eram vigiadas de perto pelas mães ciumentas, que auscultavam os candidatos à dança com olhares desconfiados. A expectativa que causava a chegada dos marmanjos da cidade grande era inusitada. As donas de casa desesperadas não conseguiam segurar às filhas na sua libido pouco dissimulada. A adrenalina do gostoso corria solta. Eram os tempos em que à juventude começava a cortar as amarras da repressão sexual. A gente sabia aproveitar muito bem o jogo amoroso, assumindo a pose daqueles que chegam para arrasar as desprevenidas donzelas. É claro que não era tão fácil. Formando um fechado grupo de ataque, a turma se posicionava frente às mesas para convidar as moças a dançar. O primeiro passo era tentar superar, com cara de inocente, as instransponíveis muralhas montadas pelas mamães. A premiação para tal esforço sobre-humano era o sorriso de aceitação e a liberação para bailar da graciosa menina. A partir daí, metade do combate estava ganho. A segunda etapa era ficar longe dos olhares maternos para aproveitar uma apertadinha, quem sabe um beijinho fugaz. Devolver a filha para a mesa era o passaporte para a próxima rodada. Não era mole não. A gente tinha que suar mesmo.
Às vezes, tudo dava errado. Nas pequenas cidades ultra-conservadoras, nossa presença estava vedada. A comissão de mães “guardiãs da virgindade” faziam de tudo para que suas filhas não olhassem para a gente. O delírio chegava ao ponto de colocar os “nativos locais” para dar porrada no grupo, se fosse necessário. Estrategicamente, descartávamos tal localidade da rota amorosa de conquista musical. Nosso triunfo chegava um pouco mais tarde, quando aquelas mulherzinhas “guardadas zelosamente” eram enviadas para estudar na cidade grande. Justíssimo na “boca do lobo”, nosso território exclusivo. Foi assim que a gente foi construindo com elas nossa sexualidade, obstinada, irreverente, musicalmente libidinosa, inesquecível.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

HOMENS QUE FALAM DE HOMENS

Quando os homens se encontram no boteco para tomar cerveja e cultuar a boa vida, quase sempre a conversa deriva para algum comentário sobre mulheres. Não existe nada de estranho nisso, já que serve como estímulo para derrotar a tendência por parte da sociedade em restringir a vida sexual dos indivíduos. Então, falar sobre mulheres faz bem a libido, principalmente porque o trabalho de civilização tornou-se cada vez mais um assunto masculino. Por que digo isso? Porque o homem não dispõe de quantidades ilimitadas de energia psíquica, e, para compensar-se, forçosamente deve realizar suas tarefas efetuando uma distribuição conveniente de sua sexualidade. Aquilo que emprega para finalidades culturais ou de trabalho, em grande parte o extrai das mulheres e da vida sexual. Sua constante associação com outros homens e a dependência de seus relacionamentos com eles o alienam, e o que é pior, terminam prejudicando seu próprio comportamento sexual. A forma inconsciente de expressar tal mal-estar pode ser encontrada no conteúdo das piadas que ocorrem no universo masculino. Tal brincadeira de forte conotação libidinosa, a maioria das vezes está centrada no desempenho sexual do sujeito, ou em qualquer outro tipo de atributos que possam ser medidos como garantia de sua masculinidade. Para o indivíduo sexualmente maduro, a escolha de seu objeto está direcionada ao sexo oposto isento de proscrição, restringido por certas limitações, apresentadas sob a forma da legitimidade monogâmica. O que ocorre nesse caso, quando a configuração social está delimitada por esses condicionantes?
As limitações sexuais de alguns homens, tanto biológicas como culturais, os faz pensarem de que existe um único tipo de vida sexual para todos. Medem o desempenho dos outros a partir de sua própria experiência particular, sem levar em consideração as dessemelhanças. Não conseguem resistir em fazer burla ou desmerecer aqueles que conquistaram a mulher que faz parte de seus sonhos eróticos, e que por sua própria obviedade, não podem ser concretizados. Nesse caso, lhes resulta impossível que exista alguma qualidade no outro, usando como alternativa as eternas frases de desconcerto que fazem parte do jargão machista: Por que ele e eu não? Será que paga todas suas contas? Com certeza está se aproveitando dele, ou, muito pior: que será que viu nele?
Lembro-me da história do presidente americano Bill Clinton e seu caso com a estagiária Mônica. Sexo em lugares incomuns é muito mais corriqueiro do que imaginamos. Entretanto, o escândalo foi lançado, com escárnio na mídia, pelos políticos republicanos. Estes são os mais conservadores e menos, vamos dizer, sensuais nas suas aparições públicas. Não por acaso a maioria deles estão casados com mulheres insignificantes e feias. É possível que essa constatação sirva para explicar porque alguns homens tenham a capacidade de conquistar as mulheres mais desejadas.
Victor Alberto Danich – Sociólogo

PROPRIEDADE DE JESUS

Andando de carro e conversando com minha filha de coisas triviais, ela, de repente, me sinaliza o carro da frente para observar no pára-brisa traseiro um adesivo com a seguinte frase: “Propriedade de Jesus”. Ambos ficamos atônitos. Como misturar o conceito de propriedade privada com o nome daquele que lutava contra ela? Confesso que não sou muito religioso. Digo muito, porque numa época da minha vida praticava um culto por imposição familiar. Tudo aquilo que a gente sabe: crenças, mitos, dogmas, além de todo tipo de parafernálias sobrenaturais que somos incapazes de questionar cientificamente. Entretanto, como pesquisador na área da sociologia, sempre estive interessado por questões religiosas, principalmente pela influência delas no âmbito da sociedade.
Pelo que conheço da vida de Jesus, ele nasceu numa estrebaria de Belém, na periferia do império romano. Terminou sendo criado numa outra aldeia, na casa de um carpinteiro e, quando adulto, chegou a afirmar que não tinha onde recostar a cabeça. Quando completou trinta anos tornou-se um pregador itinerante, viajando pelo país com seus doze discípulos. Foi, então, falsamente acusado de instigador, por falar de solidariedade e amor ao próximo, que não era exatamente o que as religiões da época exercitavam, já que seus deuses eram vingativos e brutais. Tornou-se tão perigoso que seus amigos o abandonaram. Depois de ser torturado sem piedade, foi crucificado entre dois ladrões, como castigo para aqueles que ousam contradizer os dogmas vigentes. Quando morreu, aos trinta e três anos, foi sepultado em um túmulo emprestado. O predicador Jesus Cristo foi pobre, mas sua pobreza foi algo que ele assumiu voluntariamente, numa expressão concreta de sua identificação com a humanidade. A sociedade de consumo nos condiciona a justificar nossas posses tornando cúmplice aquele que pregava contra as mesmas. Parece uma contradição, mais existem igrejas que anunciam, através da “teologia da prosperidade”, um conforto material ilimitado, como reconhecimento ao poder divino de uma figura que representa exatamente o contrário. Não é necessário omitir que eu não sou nenhum franciscano. Gosto de conforto como qualquer pessoa que trabalha duro para conseguir viver decentemente. Mas dizer que minha conquista material deve-se a Jesus? Por favor, isso é uma ofensa ao nome dele.
Nesse instante, minha filha me interrompe nos meus arroubos filosóficos, e com a vitalidade do senso comum, me faz a seguinte colocação: Pai, talvez o dono do carro se chame Jesus. Puxa vida. Sem querer, minha filha me deu uma ideia esplêndida. Como meu carro é da GM, e a empresa nos Estados Unidos foi comprada pelo governo, vou colocar um adesivo no pára-brisa traseiro que diga: “MARCA ESTATIZADA”.
Victor Alberto Danich – Sociólogo

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

O LABORATÓRIO DA MISÉRIA

O golpe militar em Honduras contra um presidente eleito constitucionalmente, não é resultado de um acontecimento casual, e sim de um processo histórico de amplas conseqüências na história de América Central. Nos últimos anos do século 19, um bandido de nome William Walker, ao serviço dos banqueiros Morgan e Garrison, comandando uma quadrilha de delinqüentes, invadiu, durante sucessivos ataques, a Nicarágua, El Salvador e Honduras. Com o apoio claro do governo dos Estados Unidos, ocupou os territórios para oficializar o famoso e tão sonhado quintal americano. Em 1912, arrematando a odisséia, o presidente estadunidense William H. Taft declarava: “Chegou o dia em que a bandeira de listras e estrelas marcará a extensão do nosso território, uma no Pólo Norte, outra no Canal de Panamá, e outra no Pólo Sul” – e continuava – “Todo o hemisfério será nosso, de fato, como, em virtude de nossa superioridade racial, já é nosso moralmente”. Na mesma época, o ex-presidente Teddy Roosevelt se vangloriava de ter inventado o Panamá, obrigando a Colômbia a perder parte de seu território, ao preço de uma indenização vergonhosa.
Os “marines” desembarcavam por todos os territórios para “proteger a vida e os interesses dos cidadãos norte-americanos”, que era a justificativa para que as empresas se apoderassem integralmente dos patrimônios públicos desses pobres países centro-americanos. As repetitivas expedições serviram para consolidar os grandes negócios dos banqueiros de Wall Street, ajudando a submeter à Nicarágua aos interesses do banco Brown Brothers. A invasão da República Dominicana, em 1965, foi para defender os interesses da United Fruit, famosa por ter transformado em repúblicas bananeiras a Guatemala (invadida em 1954, ao mando de Foster Dulles), Honduras, Costa Rica, Panamá, Colômbia e Equador. Toda uma conquista do capitalismo norte-americano feito a tiros de fusil. As grandes famílias donas de latifúndios, assim como os ditadores de opereta, escolhidos a dedo pelos grandes bancos, sempre foram os beneficiários locais das políticas impostas pelas grandes corporações. Nunca as bombas dos invasores norte-americanos conseguiram vencer os camponeses de Augusto César Sandino, que obrigou estes a assinarem um tratado de paz na Nicarágua. O herói sandinista durou pouco tempo. Foi assassinado por Anastácio Somoza, ao mando do embaixador norte-americano Arthur Bliss Lane. A tarefa estava cumprida. Os ditadores centro-americanos podiam respirar tranqüilos para usufruir as benesses do império. Não é de estranhar que os movimentos populares atuais, conduzidos por líderes carismáticos e polêmicos, criminalizados sem parar pela mídia conservadora, sejam resultado da luta por recuperar as riquezas perdidas. Neste laboratório da miséria, fica muito claro quem são os verdadeiros culpáveis deste desenlace histórico.
Victor Alberto Danich - Sociólogo

LUCRANDO COM A VIDA HUMANA

O Presidente norte-americano Barak Obama quer criar um sistema público de saúde no seu país, de modo a incorporar neste programa 50 milhões de cidadãos que carecem de qualquer tipo de atendimento médico. Tal notícia passaria despercebida se não fosse que tal proposta ocorre no país mais rico do mundo. Sinto compaixão pelo pobre presidente. Ele é um verdadeiro Quixote, assim como foi a Hillary Clinton na época em que era primeira dama do governo do democrata Bill Clinton. Quando a charmosa mulher do presidente iniciou a campanha para implantar um serviço universal e gratuito de saúde no seu país, as grandes corporações de Planos de Saúde, assim como os congressistas republicanos, a atacaram acusando-a de comunista. Medicina socializada, o que é isso? – diziam – estão atacando nossa liberdade de escolha para atender a quem quisermos. Desesperados, questionavam que o país ia rumo ao comunismo. Podem imaginar o que aconteceu com a nossa heroína. Foi confinada a cantar musiquinhas para crianças democratas, posando candidamente ao lado do presidente, e proibida de sugerir ideias descabeladas. Os Planos de Saúde privados foram criados durante o governo de Richard Nixon, e homologados como entidades majestosamente lucrativas por um de seus sucessores ideológicos, John W. Bush. Sim, esse mesmo. Durante seu governo, premiou alguns congressistas que lhe ajudaram a aprovar uma lei para venda de remédios aos idosos, armadilha muito bem feita para os laboratórios ganharem muito dinheiro. Quando a lei foi sancionada, alguns dos congressistas renunciaram para ocupar altos cargos executivos nas empresas farmacêuticas. Lindo não?
Se lembram do 11 de setembro? Existiram muitos heróis voluntários que trabalharam no marco zero, ajudando a resgatar sobreviventes no meio dos escombros das torres gêmeas. Houve uma grande festa em agradecimento aos trabalhos realizados. Muitos deles ficaram doentes por causa da poeira contaminada. Nunca foram tratados nem atendidos pelo governo.
Foi quando o cineasta Michael Moore descobriu que na Base norteamericana de Guantânamo, em Cuba, os terroristas presos do Al Qaeda eram tratados com os serviços médicos mais sofisticados. Não pensou duas vezes. Pegou três navios e levou os heróis doentes do 11 de setembro para serem tratados naquela base, com o intuito de apenas pleitear as mesmas regalias que os terroristas recebem. Imaginem o que aconteceu, foram expulsos. Que tragédia. Bom, nem tanto. Como estavam em Cuba, se dirigiram ao Hospital da Havana, no qual foram atendidos integralmente em todas suas doenças, e o que é melhor, gratuitamente. Ganharam até os remédios de graça. Isso me faz lembrar que os canadenses preferem visitar Venezuela, apesar da escassez de livros, do que ficar doentes nos Estados Unidos de Norteamérica.
Victor Alberto Danich - Sociólogo

A TERRA E OS FILÓSOFOS

Imaginar que a Terra é uma esfera já tinha sido cogitado pelos gregos muito antes do nascimento de Cristo. Tal ideia ganhou ampla aceitação entre os filósofos, na medida em que estes observavam como os navios desapareciam gradualmente ao afastar-se da costa. Tal verificação só fazia sentido se a superfície do mar se curvasse, num mergulho além do horizonte. Nesse caso, diziam, se o mar tivesse uma superfície curva, seguramente a Terra também seria esférica. Tal suposição era resultado da observação dos eclipses da Lua, no exato momento em que a Terra projeta sua sombra em forma de disco sobre a superfície daquela. Por outro lado, todos podiam observar que a própria Lua era redonda, o que sugere que tal formato seria a característica natural de todos os corpos celestes.
Hoje em dia tudo parece muito simples por causa das descobertas astronômicas. Porém, num mundo no qual a filosofia estava emaranhada com mitos e crenças religiosas, tais ideias entravam no campo do incompreensível. Os escritos do historiador grego Heródoto, que descrevia na suas viagens a existência de pessoas que dormiam durante metade de um ano, fazia surgir o interrogante de que a Terra era iluminada de modo diferente, de acordo com suas latitudes. Entretanto, uma Terra esférica incomodava profundamente os filósofos. O que impedia que as pessoas do hemisfério Sul caíssem no espaço infinito? A resposta dos gregos para esse enigma estava assentada na ideia de que o universo tinha um centro. A posição da Terra coincidiria com tal “centro universal hipotético”, no qual a Terra ocupava uma posição estática, de modo que tudo sobre sua superfície seria puxado na direção do centro da mesma. Nesse caso, mesmo vivendo lá embaixo, os gregos ficariam presos ao chão por causa de tal força centralizadora. O que dizer sobre a Terra estática, então? Bom, sendo assim, os gregos imaginavam que se a Terra se movesse, as pessoas sentiriam o vento soprar constantemente contra elas, além de serem derrubadas quando o solo se movimentasse sob seus pés. Daí a conclusão de que a Terra só poderia ser estática.
Para que os leitores não fiquem mais confusos, vou dizer que hoje em dia todos sabem que o nosso planeta se move. O motivo pelo qual não percebemos tal dinâmica, assim como sua fantástica velocidade através do espaço, é que tudo na Terra se movimenta com ela, inclusive a gente, o solo e a atmosfera que nos rodeia. Os filósofos gregos nunca conseguiram compreender tal argumento. Muito tempo depois, com Newton e Einstein o problema foi resolvido. A descoberta da ação gravitacional e o conceito de “paralaxe estelar” resolveram o grande enigma dos filósofos da antiguidade. Hoje temos outro problema. Apesar de que o modelo do Big Bang é uma descrição coerente do nosso universo, tal construção se encontra no campo da incerteza, que nos cria o desconforto de perguntar: O que havia antes dele?
Victor Alberto Danich - Sociólogo

quarta-feira, 29 de julho de 2009

A NAVALHA DE OCCAM

Existem infinidades de situações que acontecem na nossa vida que podem ser resolvidas facilmente. No entanto, o processo cultural ao qual estamos submetidos, leva-nos a comportar-nos, perante qualquer ocorrência inesperada, da maneira mais complexa para tentar resolvê-la. Felizmente, a simplicidade é uma das principais qualidades da ciência, com fora demonstrado por William de Occam, um teólogo franciscano inglês do século XIV, que se tornou famoso por defender com veemência a ideia de que as ordens religiosas não deveriam ter riquezas ou propriedades. Podem imaginar o que aconteceu com ele. Foi excomungado e expulso da Universidade de Oxford, onde lecionava.
Mais sua maior contribuição para a ciência foi ter enunciado a seguinte frase em latim “pluralitas non est ponenda sine necessitate”, que significa que a pluralidade não deve ser proposta sem necessidade. Tal definição estava centrada em que, se existirem duas teorias rivais, ou explicações de igual valor, a mais simples é aquela que tem mais possibilidades de ser a correta. Vamos imaginar, por exemplo, que depois de uma tempestade noturna, de manha encontramos uma casa totalmente destruída, e não há qualquer indício de como isso aconteceu. Uma hipótese mais complicada seria que um avião lançou uma bomba incendiária sobre a vivenda. O fogo a seguir teria eliminado qualquer indício de evidência material. Ao utilizar a navalha de Occam, você percebe que a hipótese da tempestade resulta numa explicação mais provável do que a bomba, por ser mais simples. A navalha de Occam não da garantia de uma resposta certa, mais nos encaminha na direção dela.
As teorias da conspiração, muito utilizadas durante a “Guerra Fria” entre os Estados Unidos e a União Soviética, desprezavam as explicações simples da navalha de Occam em favor de teorias intrigantes e misteriosas. Tal delírio imaginativo deixou o mundo próximo de uma catástrofe atômica. Teria sido muito mais fácil partir para uma “detente” com foi feito no final dos anos oitenta. Uma geração inteira viveu o drama do holocausto nuclear sem saber como superar tamanho desconforto. Apenas alguns telefonemas e acertos geográficos dividindo o mundo entre as grandes potências, e os problemas foram resolvidos. Todos puderam dormir tranqüilos sem necessidade de questionar ideologias. Por outro lado, é justamente a área da saúde que utiliza com destreza o conceito da navalha de Occam. Aqueles médicos que se encontram em situações limites, e que devem optar por uma decisão rápida para salvar o paciente, usam tal artifício quando estão diagnosticando uma doença, que diz simplesmente: “Quando ouvir o sons de cascos, pense em cavalos, e não em zebras”
Victor Alberto Danich – Sociólogo

VIVA O CÂNCER!

No dia 26 de julho de 1952, ao meio-dia, Eva Duarte de Perón entrava em coma. Ao anoitecer, quando finalmente morre, “Evita” entra para a imortalidade. “A Eva” – como a chamavam, quase com repugnância, aqueles que a excluíam do paraíso social – é a clara materialização da luta de classes. Se tivesse sido somente uma bastarda ambiciosa, ou uma especuladora, ou, se tivesse construído uma vida impecável e altruísta, sem aqueles excessos tipicamente humanos, não haveria alcançado a dimensão histórica que teve. No entanto, o pior de tudo é ficar cristalizada na figura reversa que mostra a cara de uma puta ou de uma virgem, segundo a ideologia do observador. Sua origem pobre, sua arbitrariedade, sua garra e sua patética luta contra o “destino”, está fixada no seu verbo exasperado, na sua palavra irreverente, na sua justiça primitiva e na sua imolação. Por que atacam a Evita Profana? Porque seu derradeiro primitivo e sanguíneo desajusta a racionalidade burguesa. Resulta indigno e intolerável. Evita é como o parente pobre; provoca repúdio e mal-estar pela exigência de mudanças; encoleriza com sua “irracionalidade”. Ela fere aqueles que se aferram aos privilégios e se reconhecem nesse gozo egoísta. No entanto, por que tantos cantam o nome da “sagrada Evita”? Porque o mito desperta compaixão, mas não incomoda. Seu incendiário discurso (pobres, luta, povo, excluídos, imperialismo) já não representa qualquer perigo. Ela, a santa, a virgem, é “algo belo que tivemos e que nunca mais teremos”. Só resta chorar.
Porém, Evita não é um mito. É a própria encarnação da utopia. Uma fervorosa utopia traduzida numa desesperada procura de justiça, num obstinado reconhecimento do direito do outro, numa profunda vocação inclusiva através de um otimismo militante. A Evita não lhe assiste a razão, senão a paixão. Astúcia, paixão, sangue: todas as palavras femininas, vinculadas ao primitivo, ao selvagem, ao censurável. Ela sonhou com “voltar e ser milhões”. Não contou com a astúcia da razão pós-moderna, nem com a tirania dos economistas. Não contou com a incompreensão daqueles que a odiavam. Sempre pensou que poderia ser respeitada pelos seus sonhos. O nome de Evita transformou-se na imagem do Estado Benfeitor. Enquanto começa a cimentar-se o mito da santa, alimentado pela tragédia de sua doença e sua virtual imolação na plenitude da vida, seus algozes se deleitam escrevendo nas paredes, nos recantos dos bairros elegantes de Buenos Aires, a frase que condensaria a raiva das elites argentinas: “Viva o câncer!”. Na medida em que crescia a desfaçatez opositora, mais se reafirmava o amor dos pobres. Suas últimas palavras foram para Perón: “Juan, cuida dos operários, e não te esqueças dos mais humildes. Por eles, vale a pena continuar lutando”.
Victor Alberto Danich - Sociólogo

VOCÊ GOSTA DA DESIGUALDADE?

Imagino que alguma vez na sua vida você se perguntou sobre a validade desta pergunta. Seguramente vai dizer que, na sociedade, tal conceito é entendido como a antítese da igualdade, no seu sentido dual, daquilo que os seres humanos estão dispostos a defender como a melhor forma de organizar a própria convivência. Será mesmo?
Vamos aceitar a ideia de que as desigualdades naturais existem, ou como diria o pensador político Norberto Bobbio, que os seres humanos são iguais quanto desiguais: “São iguais diante da morte porque todos são mortais, mas são desiguais diante do modo de morrer porque cada um morre de modo particular, diferente de todos os demais”. Podemos conjeturar que, apesar de sermos educados para defender uma suposta igualdade, internamente ambicionamos em diferenciarmos dos nossos semelhantes a partir de atributos particulares. A pergunta surge por definição: Somos iguais ou desiguais em relação ao que? Rousseau considerava que os indivíduos nascem iguais, mas, a sociedade os torna desiguais através de um processo cultural artificialmente construído. O filósofo Nietzsche, contradizendo tal sugestão, parte da definição de que os seres humanos são por natureza desiguais, e culpa ao gregarismo moral da sociedade, assentada na religiosidade que enaltece a compaixão e a resignação, como a forma compulsiva de torná-los iguais. Vivemos num mundo maniqueísta, no qual nos movimentamos de acordo aos nossos interesses de classe. A sutileza de tal afirmação mostra-nos que o indivíduo que ocupa uma posição privilegiada na sociedade, aceite com absoluta naturalidade a desigualdade social e, aquele que se encontra em situação de classe inferior, sem forças suficientes para mudar tal situação, discorde, na sua impotência, de tal premissa.
Não podemos ignorar tal realidade. Ela está presente em todas nossas atitudes, inconsciente ou não. Não basta identificar-nos com discursos ou modos culturais de agir. Somos reféns de nossa classe social. Entretanto, devemos ser capazes de optar por escolhas, apesar das diferenças. Ser progressista ou conservador não significa querer destruir ou preservar os modelos vigentes, ou, em todo caso, viver de acordo com aqueles com os quais somos solidários, como justificativa da nossa ideologia. O problema é de consciência, que deve estar assentada no conceito relevante da inclusão-exclusão. Se por um lado, o ideal da inclusão é característica do pensamento progressista, o pensamento conservador, sem sombra de dúvidas, é notadamente excludente. Norberto Bobbio resume com maestria sua justificativa para ser um homem de esquerda: “A liberdade pode ser considerada um bem individual, diversamente da igualdade que é sempre apenas um bem social” Seria bom fazer um exercício mental para descobrir, com todas suas implicâncias, o risco de repensar o significado da pergunta inicial.
Victor Alberto Danich - Sociólogo

terça-feira, 30 de junho de 2009

CHUTANDO A ESCADA: COMO A HISTÓRIA E O PENSAMENTO ECONÔMICO CAPITALISTA FORAM REESCRITOS PARA JUSTIFICAR O NEOLIBERALISMO

Há atualmente uma grande pressão para que os países em desenvolvimento adotem um conjunto de "boas políticas" e "boas instituições" - como liberalização do mercado e para investimentos estrangeiros e estritas leis de patentes - para promover o desenvolvimento econômico. Quando alguns países em desenvolvimento se mostram relutantes em aceitar tais políticas, os proponentes deste receituário geralmente acham difícil de entender esta estupidez do que entendem ser uma já tentada e testada receita para o desenvolvimento. Afinal, argumentam os países desenvolvidos, estas práticas e instituições já foram usadas no passado com sucesso. Sua crença nas próprias prescrições é tão absoluta que a seu ver, tais medidas deveriam ser impostas aos países em desenvolvimento através de fortes pressões bilaterais ou multilaterais, ainda que encontrem resistência.
Naturalmente, são acalorados debates sobre quando estas políticas recomendadas são ou não apropriadas para os países em desenvolvimento. Entretanto, mesmo muitos daqueles que são céticos quanto à aplicabilidade destas políticas e instituições aos países em desenvolvimento, curiosamente tomam por dadas estas práticas que recomendam, aceitando-as como parte de seu passado quando caminhavam para o desenvolvimento. Ao contrário da sabedoria convencional, os fatos históricos mostram que os países ricos não se desenvolveram tendo por base as políticas e instituições que, agora, prescrevem e, freqüentemente, forçam aos países em desenvolvimento. Infelizmente, este fato é pouco conhecido nos dias de hoje por conta da atuação de "historiadores oficiais" do capitalismo, historiadores que foram bem sucedidos no processo para reescrever sua própria história.
Praticamente todos os países atualmente ricos usaram de proteções tarifárias e subsídios para desenvolver suas indústrias. Interessantemente, Grã-Bretanha e Estados Unidos da América, dois países que atingiram o pináculo da economia mundial através do seu livre-mercado e política de livre comércio, são atualmente os com as mais agressivas práticas de subsídio e proteção do mercado interno.
Contrário ao mito popular, Grã-Bretanha foi um combativo usuário e em certos setores, o pioneiro, em ativismo de políticas que intencionavam promover suas indústrias. Tais políticas, ainda que limitadas em escopo, datam do século 14 (com Edward III) e século 15 (com Henry VII) em relação à manufatura de lã, a principal indústria da época. A Inglaterra então era um exportador de lã crua dos Países Baixos e Henry VII, por exemplo, tentou alterar estas relações. Henry VII passou a taxar as exportações enquanto, ao mesmo tempo, atraía trabalhadores qualificados dos Países Baixos.
Particularmente entre a reforma da política de comércio do Primeiro Ministro Robert Walpole em 1721 e a adoção do livre mercado por volta de 1860, a Grã-Bretanha usou de políticas extremamente dirigistas para o comércio e indústria, envolvendo medidas muito similares às de países como Coréia e Japão usadas posteriormente com os mesmos objetivos. Durante este período, a Inglaterra protegeu suas indústrias ainda mais intensamente do que a França, comumente apresentada com um contraponto de dirigismo estatal contra o sistema de livre-mercado. Tendo estes fatos em mente, Friedrich List, importante economista alemão no século 19, afirmou que a Grã-Bretanha, ao defender o livre-comércio aos países menos desenvolvidos como Alemanha e EUA, atuava "chutando a escada" que havia utilizado para atingir o topo.
Nos dias de hoje, pouco é sabido sobre a interação intelectual entre EUA e Alemanha que não acabou aí. A Escola Histórica alemã, representada por Wilhem Roscher, Bruno Hildebrand, Karl Knies, Gustav Scmoller e Werner Sombart, atraiu muitos economistas estadunidenses em fins do século 19. O santo padroeiro da escola neoclássica dos EUA, John Bates Clark, em cujo nome é dado o prestigioso premio para jovens economistas, foi para a Alemanha em 1873 onde estudou a Escola Histórica Alemã sob os cuidados de Roscher e Knies, embora tenha gradualmente se afastado dela. Richard Ely, um dos principais economistas estadunidenses no período, também estudo com Knies e influenciou a Escola Institucionalista Americana através de seu discípulo, John Commons. Ely foi um dos fundadores da Associação Estadunidense de Economia e o maior seminário público no encontro anual da associação é feito em seu nome, embora poucos dos membros presentes saibam quem Ely foi.
Entre a Guerra Civil e a Segunda Guerra Mundial, os EUA eram, literalmente a mais protegida economia no mundo. Neste contexto, é importante destacar que a Guerra Civil nos EUA foi travada em decorrência da questão tarifária, tanto quanto, se não mais, do que pela abolição da escravatura. Dois assuntos eram divisores entre o Norte e Sul: o Sul tinha mais a temer na trincheira das tarifas do que nas trincheiras da escravidão. Abraham Lincoln era um famoso protecionista que construiu sua carreira política sob o carismático político Henry Clay no Partido Whig, que advogava o "Sistema Estadunidense", baseado no desenvolvimento infra-estrutural e protecionismo (então reconhecendo que o livre comércio era de interesse da Inglaterra). Um dos maiores assessores econômicos de Lincoln era Henry Carey, reconhecido por ser um economista protecionista e descrito como "o único economista estadunidense de importância" por ninguém menos que Marx e Engels em 1850 e agora quase desaparecido na história do pensamento econômico americano. Por outro lado, Lincoln pensava que os afro-americanos eram racialmente inferiores e que a emancipação dos escravos era uma proposta idealista sem perspectivas de implementação imediata - diz-se que ele teria aprovado a abolição como um passo estratégico para vencer a Guerra ao invés de que por algum traço de convicção moral.
Na proteção de suas indústrias, os estadunidenses foram contra os ensinamentos de proeminentes economistas como Adam Smith e Jean Baptiste Say, que viam o futuro dos EUA na agricultura. Entretanto, os estadunidenses sabiam exatamente qual era o jogo. Eles entenderam perfeitamente que a Inglaterra havia atingido o máximo de proteção e subsídios e que, portanto, eles precisavam fazer o mesmo se quisessem chegar em algum lugar. Criticando os britânicos em defesa do livre mercado, Ulysses Grant, um herói da Guerra Civil e Presidente dos EUA entre 1868-1876, respondeu grosseiramente que "em 200 anos, quando os EUA tiver obtido tudo que puder da proteção de seus mercados, aí sim adotaremos o livre mercado". Quando seu país atingiu o topo, logo após a Segunda Guerra Mundial, começou o processo de "chutar a escada" com sua apologia ao livre comércio, constrangendo países menos desenvolvidos a adotá-lo.
O Reino Unido e os EUA são exemplos mais dramáticos, mas praticamente todo o restante dos países desenvolvidos de hoje usaram de tarifas, subsídios e outros meios de proteger suas indústrias nos estágios iniciais do seu desenvolvimento. Casos como a Alemanha, Japão e Coréia já são reconhecidos por estas medidas, mas mesmo a Suécia, que tardiamente veio a representar a "pequena economia aberta" para muitos economistas, usou taticamente de tarifas, subsídios, cartéis e apoio estatal para pesquisa e desenvolvimento para estimular setores chaves de seus segmentos indústrias, especialmente o têxtil, metais e engenharia.
Houve algumas exceções, como a Holanda e a Suíça que mantiveram o livre mercado desde o fim do século 18. Entretanto, estes países já eram os mais tecnologicamente avançados no período e, por esta razão, não precisavam de muita proteção. Além disto, deve ser destacado que a Holanda empregou uma impressionante variedade de medidas intervencionistas até o século 17 com o objetivo de construir e assegurar sua supremacia marítima e comercial. Além do mais, a Suíça não tinha leis de patentes até 1907, indo em contradição direta com a ortodoxia de hoje, que defende direitos de propriedade intelectual. Mais interessante ainda é notar que a Holanda aboliu sua lei de patentes (de 1817) em 1869 alegando que patentes eram monopólios politicamente estabelecidos e inconsistentes com os princípios do livre mercado - uma posição que hoje chocaria muitos dos economistas que advogam o laissez faire. Outra lei de patentes só foi reintroduzida tardiamente, em 1912.
A história é similar se olharmos para o desenvolvimento institucional. Nos primeiros estágios do seu desenvolvimento, os países hoje desenvolvidos não tinham sequer as ditas instituições "básicas" como funcionalismo público profissional, banco central ou lei de patentes (como já dito). Foi somente após a Lei Pendleton em 1883 que o governo federal dos EUA começou a recrutar empregados através de processos seletivos. O banco central, uma instituição tão querida aos economistas do livre mercado de hoje, sequer existia nos países mais ricos até o começo do século 20 - não apenas por causa da condenação dos economistas do livre mercado da época, que diziam ser um mecanismo que injustamente assegurava pagamentos de emprestadores imprudentes. O banco central dos EUA (Federal Reserve Board) foi estabelecido apenas em 1913 enquanto o italiano não tinha sequer o monopólio para emissão de cédulas até 1926. Muitos países permitiam o patenteamento de invenções estrangeiras até o fim do século 19. Como já mencionado, a Suíça e Holanda se recusavam a introduzir uma lei de patentes apesar da pressão internacional até 1907 e 1912, respectivamente, o que, conseqüentemente, permitia livremente o "roubo" de tecnologias estrangeiras. Os exemplos poderiam seguir adiante.
Uma conclusão importante que podemos extrair da história do desenvolvimento institucional é que foram anos para que os países atualmente ricos adotassem as medidas que sugerem. Instituições geralmente levam décadas, algumas vezes, gerações para se desenvolverem. Apenas para dar um exemplo, a necessidade de um banco central foi considerada em alguns círculos no século 17, mas o primeiro "verdadeiro" banco central, o Banco da Inglaterra, foi instituído apenas em 1844, cerca de dois séculos depois.
Outro ponto importante é que, nos primórdios, o nível do desenvolvimento institucional dos países hoje desenvolvidos, era muito inferior se comparado com o nível dos hoje países em desenvolvimento. Por exemplo, medido pelo (aceito como altamente imperfeito) nível de renda, o Reino Unido em 1820 era pouca coisa melhor que a Índia de hoje. E pior: não tinha muitas das instituições mais "básicas" que a Índia tem hoje. A Inglaterra não tinha, por exemplo, sufrágio universal (nem mesmo sufrágio universal masculino), um banco central, imposto sobre renda, responsabilidade pública, uma legislação generalizada de falência e mesmo mínima normatividade trabalhista (exceto por algumas reduzidas e nunca observadas leis regulando o trabalho infantil).
Se as políticas e instituições que hoje os países ricos estão recomendando para os países pobres não são as mesmas que eles mesmos usaram quando estavam em igual condição, o que está acontecendo? Nós só podemos concluir que os países ricos estão chutando a escada que os permitiu alcançar as posições que hoje ocupam. Não é coincidência que o desenvolvimento econômico se tornou mais difícil nas últimas duas décadas quando os países atualmente desenvolvidos começaram a pressionar os países em desenvolvimento para adotar o chamado "padrão global" de políticas e instituições.
Durante este período, a média de crescimento econômico per capita anual para os países em desenvolvimento reduzida à metade: de 3% nas duas décadas anteriores (1960-1980) para 1.5%. Em particular, a América Latina virtualmente parou de crescer enquanto a África Subsaariana e a maioria dos países do antigo bloco soviético têm experimentado uma queda na renda absoluta. Instabilidade econômica vem se acentuando notadamente como provam as dúzias de crises financeiras que temos testemunhado na última década sozinha. A desigualdade de renda também cresceu em muitos dos países em desenvolvimento, assim como a pobreza, que ao invés de se reduzir, tem se aumentado em número significante de países.
O que pode ser feito para mudar isto?
Primeiramente, os fatos históricos que evidenciam as experiências dos países desenvolvidos deveriam ser largamente divulgados. Não é apenas uma questão de aprender a "verdadeira história", mas de permitir que os países em desenvolvimento possam tomar decisões amparadas em mais informações.
Posteriormente, as condicionantes impostas como requisitos para a assistência financeira bilateral ou multilateral precisam ser radicalmente alterados. Deve ser aceito que o receituário ortodoxo não está funcionando e que não pode haver "melhores práticas" a serem seguidas igualmente por todos.
Terceiro, as regras da Organização Mundial do Comércio deveriam ser reescritas de modo que os países em desenvolvimento possam mais ativamente usar tarifas e subsídios para seu próprio desenvolvimento industrial. Eles deveriam ser autorizados a adotarem leis menos estritas de patentes e propriedade intelectual.
Quarto, devem ser encorajadas melhorias nas instituições, mas isto não pode ser aceito como sendo a imposição de um conjunto fixo e pré-determinado de instituições em todos os países (instituições hoje inspiradas no modelo anglo-americano, fato que não encontra bases no passado). Atenção especial deve ser tomada para não se exigir uma excessivamente rápida transformação institucional nos países em desenvolvimento, especialmente dado que (1) alguns destes países já têm estas instituições consideravelmente maduras quando comparadas com as dos países hoje desenvolvidos em seus estágios iniciais de crescimento e (2) que são altamente custosos o estabelecimento e manutenção de novas instituições.
Ao se permitir a adoção de políticas e instituições que são mais adequadas às suas reais condições, espera-se que os países em desenvolvimento terão a oportunidade de se desenvolverem mais rapidamente. Isto irá também beneficiar os países desenvolvidos em longo termo, uma vez que ampliará suas oportunidades de mercado e investimento. Esta questão, de que os países desenvolvidos não consigam enxergar estes fatos, é a tragédia do nosso tempo.

Ha-Joon Chang é professor na Faculdade de Economia da Universidade de Cambridge, no Reino Unido

sexta-feira, 5 de junho de 2009

A DONZELA QUE SE LIVROU DOS ÍNCUBOS

Assim que o papa Inocêncio VIII, na sua bula de 1484, autorizou à acusação, tortura e execução de todas as “bruxas” da Europa, os inquisidores Kramer e Sprenger, colocaram em prática, através das regras do “Malleus malificarum”, a mais impiedosa perseguição as mulheres acusadas de copularem com o demônio. Na Grã-Bretanha, os caçadores de bruxas, chamados de “alfinetadores” eram premiados para cada mulher ou menina que entregavam para execução. Imaginem vocês, moças do século 21, se estivessem sujeitas a tais acusações. O que fariam?
Em 1765, uma jovem salvou-se contando a seguinte história, nas palavras do próprio inquisidor “Num dia de festa, uma jovem, virgem devota, foi chamada por uma bruxa velha a acompanhá-la até sua casa. Num dos quartos do andar de cima estavam reunidos alguns jovens belos. A bruxa insistiu para que subisse. A virgem consentiu. E, enquanto subiam as escadas, a velha, que ia a frente, advertiu-lhe para que não fizesse o Sinal-da-Cruz. Embora a moça concordasse, benzeu-se sem que a velha visse. Pois que ao entrarem no quarto, ninguém havia: os demônios que lá se encontravam eram incapazes de se mostrar nas suas formas criaturais. A velha voltou-se então para ela, repreendendo-a – Vai embora em nome de todos os demônios! Por que te benzeste? – este foi o relato que obtive daquela boa e honesta donzela”.
Podemos presumir que superamos estes condicionantes religiosos, ou ainda guardamos no inconsciente o mal-estar de sentirmos impuros? Por que ainda fingimos que os relacionamentos humanos se estabelecem sem considerar a sexualidade um elemento primordial? As justificativas dos inquisidores para acusar mulheres supostamente possuídas pelo demônio, estavam assentadas em elementos misóginos e eróticos, próprios de uma sociedade sexualmente reprimida e dominada pelos homens. Não por acaso, os juízes vingadores eram, na sua maioria, padres supostamente puritanos e celibatários, que transformavam suas próprias frustrações em delírios religiosos. Nos julgamentos sumários efetuados pela Santa Inquisição, eram discutidas até a exaustão a quantidade e qualidade dos supostos orgasmos que as mulheres acusadas tiveram com os demônios, chamados de “Íncubos, que as contaminavam com seus atos obscenos e as distanciavam da verdadeira santidade”. Que dureza, não?
Para consolo das damas, de modo a não se sentirem culpadas, a crença em lucíferes era difundida muito antes da Inquisição. Sócrates dizia que sua inspiração filosófica era resultado de um demônio pessoal e benigno, e acrescentava: “todo o demoníaco é intermediário entre Deus e os mortais” e continuava “só por meio do demoníaco é que se estabelecem as relações entre os homens e os deuses”. Talvez seja esse o segredo de porque as mulheres preferem os expertos aos bobos.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

sexta-feira, 29 de maio de 2009

SANTO AGOSTINHO E O UNIVERSO

O cientista Stephen Hawking conta que, numa conferência sobre astronomia, o palestrante estava descrevendo como a Terra gira em torno do Sol, e como este gira em torno do centro de uma imensa galáxia de características quase infinitas. No final da conferência, uma senhora baixinha e idosa levantou-se, falando em voz alta:
“O que o senhor acaba de nos dizer é tolice. O mundo, na verdade, é um objeto achatado, apoiado nas costas de uma tartaruga gigante”.
O conferencista imediatamente replicou: “E sobre o que se apóia a tartaruga?”
“Você é muito experto, rapaz, muito experto” – dize a velinha – “mas existem tartarugas marinhas por toda a extensão embaixo dela”.
Apesar de esta história ser relativamente recente, a preocupação com a configuração do universo vem sendo discutida há muito tempo. O filósofo grego Aristóteles, 340 anos antes de Cristo, já argumentava a ideia de que a Terra era uma esfera e não um corpo achatado. É claro que após ele, surgiram infinidades de teorias etnocêntricas, principalmente para justificar a posição geográfica que o ser humano, feito a imagem e semelhança com Deus, ocupava como figura central do universo. Tal modelo foi adotado pela Igreja Católica porque correspondia às descrições bíblicas, além de dar espaço suficiente, fora da esfera das estrelas, a visão maniqueísta do céu e o inferno. Nada melhor que uma explicação simples e valorativa para tranqüilizar os fiéis tementes de Deus.
Entretanto, o mais interessante desta história do pensamento humano, é aquela que se refere ao começo de tudo. Na tradição judaico-cristão-muçulmana, o universo tem sua origem num passado recente por meio de uma “causa inicial”. Santo Agostinho, em seu livro “A cidade de Deus”, sustentava que a data da criação do universo era de 5000 anos antes de Cristo, conforme o livro do Gênesis. Contrariamente, Aristóteles não concordava com a teoria da criação, porque achava que ela continha índicos de intervenção divina. O filósofo Immanuel Kant no seu trabalho “Crítica da razão pura”, questionava que o conceito do tempo não tinha sentido antes do começo do universo, já que, se por acaso, tivesse surgido a partir de um tempo infinito antes dele, porque deveria ser criado num momento particular?
Nessa espetacular luta de conceitos, Santo Agostinho, pela primeira vez, especulou sobre: “O que Deus fazia antes de criar o universo?”. Muitos dirão que Jeová, na sua onipotência, seria capaz de criar tudo em qualquer instante. A pergunta a esse interrogante seria: Por que Ele faria isso escolhendo leis conhecidas e demonstradas pela ciência, e não de forma arbitrária? Será que vivemos num mundo culturalmente formatado, no qual, o apego doentio ao sobrenatural, serve para acalmar a falta de conhecimento da realidade concreta dos fenômenos da física, tal qual aquela velinha?
Victor Alberto Danich
Sociólogo

sexta-feira, 22 de maio de 2009

A TRANSFORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA

Qualquer atividade intelectual torna-se estimulante a partir do momento em que se transforma numa rota de descoberta. Em alguns campos do conhecimento, tais condicionantes são precedidos pelo insólito de descobrir fatos anteriormente impensados ou impensáveis. Nesse sentido, a realidade social apresenta-se como possuidora de muitos níveis de significado, e a descoberta de cada novo nível modifica a percepção de todo, e essa perspectiva nos leva a ver sob nova luz o próprio mundo em que todos co-existimos. Isso significa também uma transformação súbita da consciência. No entanto, as pessoas que preferem evitar descobertas chocantes, acreditando que a sociedade é exatamente aquilo que aprenderam na escola, de modo a proteger-se na segurança das regras, satisfazendo-se apenas com suas próprias construções conceituais, nunca poderão participar da paixão de questionar “um mundo aceito sem discussão”. O fato de perguntar-nos porque devemos estar interessados em olhar além das ações humanas comumente aceitas ou oficialmente definidas, pressupõe certa consciência de que aquelas ações possuem diferentes níveis de significado, alguns dos quais ocultos à percepção do cotidiano. Não querer aceitar tais condicionantes, é resultado do próprio mal-estar que significa não entender as diversas representações da realidade.
O que significa isso? Que a própria natureza humana torna-se um artifício destituído de liberdade. Uma pessoa passa a criar fantasias dentro de um mundo mitológico em que todos os seres humanos estão presos as suas próprias designações sociais. A sociedade proporciona ao indivíduo um gigantesco mecanismo através do qual ele pode ocultar a si mesmo sua própria liberdade. Somos seres sociais e nossa existência está vinculada a localizações sociais específicas. Se por alguma razão, alguém atua fora desses padrões, à punição surge imediatamente. A própria organização social, criada e reforçada por nós mesmos, está presente para lembrar-nos com suas sanções. Quaisquer que sejam nossas possibilidades de liberdade, ela não se concretizará se continuarmos a pressupor que o “mundo aprovado” da sociedade seja o único que existe, além de desestimular-nos da possibilidade de qualquer mudança na procura de novos valores ou significantes sociais.
Tanto é assim, que as nossas identidades são atribuídas pela sociedade. É necessário ainda que a sociedade as sustente com regularidade, de modo que nossas vidas se desenrolem dentro de uma complexa trama de reconhecimentos e não-reconhecimentos. Somos reféns do nosso comportamento, porque todo ato de ligação social resulta numa escolha de identidade. Na sua simplicidade filosófica, o homem do campo acrescentaria: “os pássaros da mesma plumagem vivem juntos não por luxo, mas por necessidade”
Victor Alberto Danich - Sociólogo

SÍMBOLOS E CARROS

Quando era criança, sonhava em ter um carro para desmontá-lo inteiro. Fantasiava com possuir os melhores automóveis e, como não podia, os desenhava para logo fabricá-los com epóxi em pequena escala. Quando fui ficando adulto, comecei a descobrir o significado dos símbolos, e assim perdi o que restava da minha inocência. Atualmente, todo estilo de vida está pautado em sistemas de status com forte apelo à mobilidade social, de modo a colocar os símbolos numa perspectiva adequada para todos. Nesse caso, a aquisição de um automóvel é considerada crucial para viver a possibilidade da posse de um símbolo. O carro, como símbolo de status social ou elemento de consumo, cumpre a função onírica de criar, tanto para os adultos como para os adolescentes, um novo mundo sustentado na percepção de um sujeito sem limitações. Este é o entrave psicológico mais difícil de superar para organizar o mundo automobilístico. Do ponto de vista psicanalítico, a mais significativa função do automóvel é expressar poder e agressividade. Leva o sujeito a idéia da supremacia sobre os outros, num processo de subestimação inconsciente por aqueles que não fazem parte desse imaginário. Deve-se lembrar com isto, a eterna luta entre automobilistas, motociclistas e pedestres.
A razão principal das atitudes de desdém e subestimação é o que se constitui no símbolo de status mais específico e transcendental da sociedade contemporânea. A qualidade expressa na divulgação das características de beleza e potência dos carros atuais, dizem às claras os componentes de agressividade e poder que o veículo transmite para o sujeito. A velocidade, o acelerador, os cavalos de força, as estradas, permitem descarregar os impulsos agressivos, os sentimentos de fuga, que significam poder circular sem obstáculos e sem limitações.
Os novos automóveis conseguiram levar estes instintos até a perfeição. Lograram alcançar altas velocidades, dando a sensação de superação dos limites, apesar de que na maioria das estradas não é permitido mais do que 110 km por hora. Nesse caso, a satisfação torna-se mais onírica que real, no sentido de saber que existe a possibilidade de exceder-se enquanto se estiver livre de punições. O carro novo gratifica o Eu com uma forte dose de dominação. Um carro de muitos cavalos de força dá ao condutor maior potência e masculinidade. A “potência mecânica” é incorporada na personalidade do sujeito, que se insinua através da necessidade de experimentar o poder de um mundo sem regras nem limitações. Resulta constrangedor perceber que somos submetidos inconscientemente aos desejos dos instintos, negligenciado, dessa forma, a lógica do coletivo em favor do logro individual.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

quarta-feira, 6 de maio de 2009

O DIÁLOGO DE GALILEU

Como você se sentiria se fizesse uma descoberta abrumadora e ninguém acreditasse? E se estivesse sujeito a ser excomungado por causa de sua certeza? Nesse caso, seria capaz de sustentar a veracidade de suas experiências perante aqueles que pautavam suas crenças em função de dogmas explícitos? O conflito entre ciência e religião no contexto histórico da primeira metade do século XVII, no qual se desenvolveu a batalha entre Galileu e a Igreja católica, que acabou na condenação do mesmo pelo Santo Ofício em 1633, não foi apenas produto da negação do modelo geocêntrico do cosmo, senão de questões ideológicas envolvendo a teologia cristã, cruciais para a sobrevivência da supremacia medieval da Igreja, fundamentada principalmente numa visão aristotélica do mundo.
O concílio de Trento (1545-1563) se encarregou de não permitir qualquer interpretação da Bíblia diferente da oficial, o que provocou entre outras tantas, a execução na fogueira do filósofo Giordano Bruno, por suas dúvidas com referência a interpretações teológicas da substancialidade da alma humana e seu apoio as idéias de Copérnico.
No entanto, os diabólicos verdugos da Santa Inquisição podiam fazer uso de juízos de valores pessoais na interpretação da passagem do Livro de Josué: “...porque se fosse permitido aos espíritos malignos alterar a influência dos corpos celestes sobre o universo, a ordem geral e o bem comum sofreriam sério prejuízo. Pelo que as alterações astrais encontradas no antigo e no Novo Testamento foram causadas por Deus, por exemplo, quando o sol ficou parado para Josué, o foi encoberto, de forma sobrenatural, na Paixão de Cristo. Mas, em todos os demais fenômenos, os demônios são capazes de interferir, com a permissão de Deus, seja por conta própria, seja por intermédio de bruxas....”.
É justamente nesse contexto histórico-cultural que Galileu lançou-se na sua batalha contra o modelo ptolomaico do Universo. Motivado por uma grande ambição pessoal, convicto do apoio de seu grande admirador, o papa Urbano VIII, publica em 1632 as primeiras cópias do “Diálogo”, iniciando assim um desafio aberto contra a hegemonia da Igreja, num momento de pleno poder da inquisição religiosa, que terminou no famoso episódio de sua sentença. O “Diálogo” foi proibido, e Galileu, num ato de perversa humilhação, foi obrigado a abjurar as idéias de Copérnico (que a Terra gira em torno do Sol), sendo condenado a prisão domiciliar no resto de sua vida, repetindo diariamente durante três anos sete salmos penitenciais, recitados por sua filha Maria Celeste, freira carmelita. Apenas em 1992, 360 anos depois, e a 23 de o homem pisar na lua, numa lenta peregrinação escolástica, o papa João Paulo II revoga oficialmente a condenação de Galileu pela Igreja.
Victor Alberto Danich - Sociólogo

OS BASTIDORES DA ECONOMIA DE MERCADO

Quando Friedrich Hayek, um dos ideólogos do liberalismo econômico da Escola de Chicago, visitou o Chile em 1981, ficou maravilhado com a política neoliberal implantada por Augusto Pinochet naquele país. Ao regressar à terra de Ronald Reagan, imediatamente sentou-se a escrever uma carta para sua amiga Margareth Thatcher, primeira ministra da Inglaterra. Nela sugeria que deveria usar como modelo a ditadura chilena para transformar a economia de bem-estar britânica. Devemos lembrar que Thatcher e Pinochet mantiveram durante muito tempo uma sólida amizade, principalmente quando este se encontrava sob arresto domiciliar na Inglaterra, acusado de genocídio, tortura e terrorismo de estado.
A “dama de ferro” estava profundamente convencida com o “êxito fantástico da economia chilena” acrescentando publicamente que: “tal política era um impactante exemplo de reforma econômica da qual poder-se-ia tirar bons exemplos”. Como de costume, nos bastidores da política as coisas são bem diferentes. Apesar da admiração que a Thatcher tinha por Pinochet, quando Hayek sugeriu que fosse aplicada a mesma metodologia de política econômica imposta no Chile, a ministra teve que dar uma freada a tais pretensões. Em fevereiro de 1982, a Thatcher respondeu sem rodeios ao seu interlocutor monetarista numa carta privada: “Tenho certeza que o senhor entenderá que, na Inglaterra, de acordo com nossas instituições democráticas, além da necessidade de um alto nível de consenso, algumas das medidas adotadas no Chile são totalmente inaceitáveis. Nossas reformas devem ser adotadas conforme as tradições e a Constituição do nosso país”
A conclusão da primeira ministra era que, numa democracia como o Reino Unido, seria impossível executar uma política econômica ao estilo da preconizada pela Escola de Chicago. Para Hayek e seu comparsa Milton Friedman, aquele balde de água fria foi uma decepção. As políticas econômicas desenvolvidas e apoiadas pelas ditaduras militares no Cone Sul, tiveram como resultado ganâncias exuberantes para alguns pequenos grupos, dando oportunidade para a abertura de novas “fronteiras a serem manufaturadas” pelas empresas transnacionais, na procura incessante de transferir os ativos e recursos públicos para mãos privadas.
Numa coisa o economista Milton Friedman acertou de cheio, sem perceber quão proféticas seriam suas palavras: “Só uma crise – real ou percebida como tal – produz uma verdadeira mudança. Quando ocorrem estas crises, as ações que se empreendem dependem das ideias existentes naquele momento” E parece ser verdade mesmo, o modelo neoliberal de livre mercado está sendo remodelado através de uma nova configuração mundial, baseado, talvez, no restabelecimento de alternativas econômicas democráticas e solidárias.
Prof. Victor Alberto Danich
Sociólogo

O DIA EM QUE A TERRA PAROU

Nestes dias assisti à refilmagem do clássico de ficção científica “O dia em que a Terra Parou”, e voltei minhas lembranças aquela produção que chegou aos cinemas na década de 50. Eram os primeiros anos de pós-guerra, e o mundo estava consternado frente ao temor de uma contenda nuclear entre duas potências mundiais que polarizavam as consciências em ideologias rivais. A chamada “Guerra Fria” entre os Estados Unidos e a União Soviética, que reproduzia a toda hora o perigo latente da devastação total, era, no fundo, um sinal claro do processo que a humanidade sofre na sua luta entre o Eros e o instinto da morte. Naquela época, como agora, o desejo inconsciente do homem em duelar com seus semelhantes continua a mesma, e, ao mesmo tempo, sem muita hesitação, investe num franco apelo pacifista para dissimular sua agressividade. Os anos cinqüenta eram uma mistura de triunfalismo e tragédias. O interesse pelo desconhecido, pelo ataques extraterrestres e pelo temor de serem abduzidos por raças alienígenas, levou aos grandes estúdios de cinema a fazerem filmes de ficção científica, de modo a sublimar e direcionar o pânico dos espectadores para mundos longe da terra.
Nessa história de cinemateca, o filme trata sobre um alienígena que, acompanhado de um robô gigante, viaja milhões de anos luz para encontrar-se com os líderes mundiais, de modo a alertá-los sobre as conseqüências do mau comportamento dos terráqueos. É claro, que a nave espacial com forma de esfera transportando o vingador estelar, desce no Central Park de Nova Iorque. As outras, de menor importância, de modo a hierarquizar competências, se espalham no resto do mundo. Como todo cinéfilo deveria esperar, nosso amigo espacial é recebido a tiros. O Robô decide defender o chefe, e a guerra está declarada.
Na verdade, a analogia entre o processo civilizatório e o caminho do desenvolvimento individual é indicada através do superego modelado pela comunidade. Sempre há, no final de todo questionamento ético, a existência de um indivíduo notável, identificado através de uma esmagadora força de espírito, no qual seu impulso humano (nosso viajante é igualzinho a nós) encontra sua expressão mais pura na ação unilateral. Em todos os casos, a analogia vai mais além, no fato de que, quase sempre, tal figura é escarnecida e maltratada pelos outros e, até mesmo, liquidada de maneira cruel. Nosso amigo volta para seu planeta, apesar de tudo, convencido que os maldosos terráqueos merecem mais uma chance de sobreviverem. Desse modo, o superego cultural desenvolve seus ideais e estabelece suas exigências. Sempre, em toda circunstância ética, só um ser supranatural é capaz de colocar em ordem a natureza desregrada do ser humano, seja através da religião o de qualquer civilização do outro lado do universo.
Victor Alberto Danich - Sociólogo

quinta-feira, 2 de abril de 2009

CAPITALISMO DO MEDO

No início dos anos noventa, em conversa nos corredores da Universidade Federal do Rio de Janeiro, dizia para meus colegas de Mestrado que a globalização econômica era uma armadilha de alguns poucos para ganharem dinheiro de forma piramidal. Em resposta, era tratado como um “dinossauro comunista”. Como se colocar em contra, diziam, de um modelo que prometia prosperidade para todo o mundo? Hoje, de acordo com os acontecimentos recentes, a resposta surge nítida até para aqueles que estão longe do hermetismo econômico. O neoliberalismo, com suas artimanhas, criou do nada uma sociedade dual, estruturada num verdadeiro apartheid social. Um modelo no qual existe um pequeno setor de integrados e outro que vai ficando completamente excluído. Sua característica hegemônica, o transforma num modelo com formato de dominação de classe, adequado às relações econômicas, sociais e ideológicas contemporâneas. Impondo tal ideologia no senso comum da sociedade, tal modelo se institucionaliza. Interpretado como processo normal, ninguém era, até agora, capaz de criticar uma geração de executivos descontrolados e gananciosos, que eram capazes, como no caso dos seis diretores do Lehman Brothers, apesar da crise, dividirem entre eles um bônus de US$ 150 milhões. Ou como o falido Bear Stearn, que entregou US$ 40 milhões para seu presidente antes da queda. A recente descoberta pelo governo americano, da distribuição de 18 bilhões de dólares em bônus para os executivos dos bancos privados, traz a tona a pouca vergonha do modelo econômico capitalista. Num ambiente dessa natureza, a tentação para o risco, torna-se irresistível, até porque, depois do desastre previsível, não existe possibilidade de que o picareta de colarinho branco seja obrigado a devolver o que ganhou. A suposta competência globalizada possui características selvagens. Não existe outra regra que não seja a força bruta daqueles que dispõem de grandes massas de capital líquido para fazê-los jogar especulativamente nos mercados, às vezes por um ou dois dias. Um mercado sem regras e sem um Estado vigilante, não pode, de forma rigorosa, ser competitivo. Na selva reina o mais forte, e não existe sentido em dizer que há igualdade de concorrência entre o leão e a gazela.
Não há nada de triunfal na confirmação das minhas suspeitas explícitas duas décadas atrás. O importante é saber se existe a coragem de insistir numa questão nada marginal para a consolidação dos regimes democráticos: O que fazer com as vítimas do neoliberalismo? Como construir uma democracia estável e sólida sobre tão precários fundamentos sociais? Como podemos, os que fazemos parte do lado não glamoroso da sociedade, ter a certeza que podemos ir dormir sem medo de acordar num mundo ainda pior?
Victor Alberto Danich
Sociólogo – vadanich@unerj.br

MODELADOS PELA SOCIEDADE

Genial a crônica “Carta a um amigo conservador” do Charles Zimmermann. Ela trata de uma pessoa modelada socialmente, carente da intranqüilidade que o conhecimento dialético proporciona. Vou esboçar com a permissão do meu amigo Charles, meu ponto de vista sociológico. Toda sociedade pode ser encarada em termos da cosmovisão que atua como universo comum habitado por seus membros. O indivíduo, portanto, adquire socialmente sua cosmovisão da mesma forma como adquire seus papéis e sua identidade. Como isso acontece?
Tanto suas ações, suas emoções e suas interpretações sociais, são pré-definidas para ele pela sociedade, da mesma forma que sua visão consensual em relação ao universo que o rodeia.
Tal conceito pode ser sintetizado na frase “mundo aceito sem discussão”, ou seja, um sistema de pressupostos com que cada sociedade se modela no curso da sua história. Nesse caso, a sociedade pré-define para nós tal mecanismo cultural e simbólico, com o qual apreendemos o mundo, ordenamos nossa experiência e interpretamos nossa própria existência.
Da mesma maneira, a sociedade fornece nossos valores, nossa lógica e o conjunto de informações (ou desinformações) que constitui nosso “conhecimento”. São poucos os indivíduos, muito bem explicado de forma tragicômica por Charles, que tem a capacidade de reavaliar aquilo que lhes foi imposto. Na verdade, não sentem nenhuma necessidade de reavaliação porque a cosmovisão em que foram socializados lhes parece óbvia. E tal atitude é resultado da influência dos próprios membros da sociedade da qual faz parte, que validam tal cosmovisão conservadora.
O estudo dos grupos de referência mostra-nos que são eles para os quais uma pessoa orienta suas ações. Nesse sentido, o grupo proporciona um modelo que oferece um determinado ponto de vista sobre a realidade social, que pode ser ideológico ou não. O conceito de “esquerda” e “direita” hoje revivida por causa da crise econômica, está relacionado a esses aspectos. Em outras palavras, um indivíduo se liga a um grupo de modo a “saber” que o mundo é isso ou aquilo. De repente, tal indivíduo troca tal grupo porque passa a “saber” que devia estar enganado. O amigo conservador de Charles é o típico indivíduo padrão, politicamente correto, cidadão irreprochável, trabalhador fiel. Tal formatação dessa identidade social é resultado da “internalização” do processo de socialização. A sociedade controla nossos movimentos, dá forma a nossa identidade, nosso pensamento e nossas emoções. A sociedade construída culturalmente, toma conta da nossa consciência, do nosso papel social, e modela a armadilha que nos torna reféns da nossa própria natureza social, ou, como diria um sociólogo americano “As paredes do nosso cárcere já existiam antes de entramos em cena”

Victor Alberto Danich - Sociólogo

REFÉNS DOS FILHOS

Vivemos numa sociedade na qual os adolescentes podem ser classificados como seres “sugadores”. Sugam com fruição tudo que os rodeia: seus pais e todos os objetos e afetos que os circundam. Como os elementos de conforto que encontram na casa lhes oferecem tudo fabricado e pronto, sua visão da existência se concretiza no ideal de poupar energias e evitar esforços. Toda a vida familiar gira em torno deles: Discutem-se os programas a selecionar, como deve ser compartido o uso do carro, se é necessário ter ou não celular, o tipo de vestimenta adequada para tal o qual festa, se aquela escola carece ou não de prestigio, ou simplesmente se a posse de determinados objetos os identificam com determinado grupo social. A criança-adolescente, na sua posição de “sugador”, não percebe o esforço que é realizado por seus pais para a obtenção desses elementos de status, e faz a idéia que tudo chega às suas mãos da maneira mais fácil. Sua conduta de “sugador” logo o transformará num caçador incansável de status, tratará de acumular objetos de conforto para nunca sair dessa condição, que seguramente a incorporará como um projeto de vida. No entanto, eles não são “pequenos monstros”, são apenas nossos filhos influenciados pela mobilidade social relativa, onde os meios de comunicação e os membros da mesma idade funcionam como agentes de formação, transmitindo e estimulando essa nova mentalidade de status. Na nossa sociedade existe uma tendência acentuada a generalizar os problemas na esfera psicológica. Tem-se futuro ou não, se é um triunfador ou um fracassado. Este processo se sintetiza no despertar cedo do jovem para a ambição e a vida adulta, usando-se um critério tanto otimista como desalentador. Otimista porque propõe metas que supostamente todos podem alcançar. Pessimista porque a exclusão atinge aqueles que não se enrolam na competição. O jovem vê a sociedade como meio de conquista do que incorporação na mesma, onde esse impulso para “o grande salto” lhes permite assumir rapidamente o papel de adulto. Incorpora-se a mesma ambição de status: o carro o km, o celular próprio, as férias nos melhores centros recreativos. Termina-se assumindo uma espécie de jogo lúdico de adulto. Nessa fase de crescimento, existem muitos adolescentes que não apenas “imitam”, senão que “atuam” como adultos. Por outro lado, os jovens rejeitam certos valores e aceitam outros. Rejeitam aqueles que exigem esforço e tempo de maturação, e assumem aqueles mais rápidos de assimilar: a conduta adulta exterior. Como escapar dessa armadilha? Como fazer acreditar a nossos filhos que existem outras formas de organizar a vida social? Será que devemos remodelar o rito de passagem para a vida adulta?
Victor Alberto Danich
Sociólogo

quarta-feira, 18 de março de 2009

DANDO “NOME AOS BOIS”

Jean-Baptiste Say, em meados de 1800 dizia que a “utilidade” era a real fonte do valor e não propriamente o trabalho, com o argumento de que a posse do capital comportava sacrifícios semelhantes entre capitalistas e trabalhadores. Com isso tentava demonstrar que o resultado de uma economia capitalista era a harmonia social e não o confronto entre classes, na qual todos recebiam como renda uma quantidade de dinheiro em função dos sacrifícios feitos unicamente na criação de utilidade. Esse condicionante levaria a ideia do ajustamento automático da economia num modelo de “mercado livre”, em que a totalidade das ofertas criaria uma procura na mesma magnitude. Desta forma, Say transformou-se num dos mais importantes precursores da tradição neoclássica, que dominou grande parte da economia do século XIX e a totalidade do século XX. Seu discípulo Milton Friedman, já falecido (por sorte), era um economista que mantinha uma fé irrestrita na Lei de Say do automatismo do mercado, afirmando sem restrições que a instabilidade do mercado capitalista era culpa do excesso da intervenção do governo na economia. Vencido em vida pelas políticas Keynesianas, completou sua obra e sua vingança nos bastidores do além, sustentada ideologicamente pelos economistas da Escola de Chicago, Ludwig Von Mises e Friedrich Hayek. Foram estes personagens que povoaram com suas idéias as elites governantes dos Estados Unidos, do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional depois dos anos 70. Invadiram com a burocracia gerencial de “seus peritos” o terceiro e o segundo mundo, da Argentina de Videla, do Chile de Pinochet à Rússia de Boris Ieltsin, e, em menor medida, entre outros, o Brasil de Fernando Henrique Cardoso e seus aliados liberais conservadores. Colonizaram culturalmente as faculdades de economia do mundo todo, seduziram governantes e social-democratas arrependidos e ressuscitaram o liberalismo hedonista do século XIX. É claro, que tal onda neoliberal não apenas aconteceu em nível acadêmico, senão que foi sedimentada planetariamente numa “terra manufaturada”, controlada pelo mercado livre, centrada numa concentração predatória e numa expansão colossal do parasitismo financeiro. Para onde foi à totalidade do dinheiro da especulação financeira que desencadeou a crise atual? Por que há tanto medo de dar “nome aos bois”? A promessa de que todos avançariam no quadro da globalização foi desmentida por uma realidade brutal. Milton Friedman e seus aprendizes de feiticeiros, em conjunto com seus congêneres executores: Richard Nixon, Ronald Reagan, Margareth Teacher e o inominável George “Bucha” deveriam ser jogados no lixo da história, para nunca mais serem lembrados. Apenas no inferno, lugar do qual nunca deveriam ter saído.
Victor Alberto Danich - Sociólogo

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

A REPRESENTAÇÃO DA MORAL

Nas sociedades onde prevalecem certas normas de submissão voluntária às leis, o uso da violência oficial dificilmente se torna visível. O importante é que todos, por consenso geral, saibam que ela existe, e se por alguma razão os meios de coerção falharem, essa mesma violência pode ser usada oficial e legalmente contra eles. Entretanto, existem outros mecanismos sub-violentos que utilizam processos de intimidação políticos e legais, principalmente por meio da “coerção econômica” para ameaçar o próprio sustento ou a obtenção de vantagens sociais. Entretanto, não apenas “os meios econômicos” de controle social são eficientes para manter a ordem, senão que há também outros mecanismos muito potentes e sutis que podem ser aplicados ao suposto transgressor, em termos de persuasão, ridicularização, difamação ou opróbrio. Muitas pessoas já sentiram o horror eletrizante de cair no ridículo em alguma situação social, ou serem difamadas perante a comunidade. A difamação tem eficácia avassaladora em sociedades conservadoras, onde as pessoas estruturam suas vidas em função da visibilidade de posse ou status. Tanto o ridículo como a difamação pode ser manipulada por qualquer indivíduo que tenha fácil acesso aos canais da trama social, podendo assim efetivar o mecanismo institucional da punição, sem provocar a mínima suspeita de ter cometido um ato moralmente impróprio.
Quando se fala de instituições, a referência é com relação a um complexo de normas e ações sociais. Isso sugere que leis, classes, atividades políticas ou religiões sejam instituições, que funcionando como um órgão regulador pelos quais a conduta humana é padronizada socialmente, essas normas e ações sejam aceitas sem questionamentos pela sociedade. Tal ocorrência, como fato externo da própria consciência, manifesta-se na forma de coerção, moldando a conduta e as ações do indivíduo. Este será recompensado enquanto se limite a representar os papéis que lhe foram designados socialmente. Se, por outro lado, os transgredir, a sociedade o pune com vastos meios de controle e coerção. Percebe-se com isso, que a dignidade humana é questão de permissão social. O ser humano não vale nada como biografia individual, apenas a sociedade como entidade histórica tem as atribuições de homologar o “repertório de papéis” que o individuo deve representar. Nesse caso, pode-se aparentar uma falsa moral sem correr o risco das sanções da sociedade. Entretanto, a descoberta humilhante desse comportamento imoral submete o indivíduo a uma retirada radical do reconhecimento social, descaracterizando o status de qualquer ser humano, independente do lugar que o mesmo ocupa na hierarquia da sociedade.
Victor Alberto DanichSociólogo

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O COMANDANTE LALO

Como novo membro do grupo dos “Abutres”, nome jocoso relacionado à procura incessante do conhecimento, tive a honra de levar como convidado o Comandante Eduardo Sardiñas Labrada, ex-combatente de Sierra Maestra, em Cuba, que lutou junto ao comandante Fidel e como capitão da segunda coluna ao mando do Che Guevara. Posteriormente foi ascendido a comandante por seu desempenho no combate de San Domingo, em que seu pequeno grupo derrotou um contingente muito maior do exército do ditador Fulgéncio Batista.
Independente da idéia que alguns possam fazer dos movimentos populares contra o colonialismo, a importância do resgate histórico, a partir do pensamento americano abaixo do rio Bravo, representa um passo importante na procura da nossa identidade cultural. Saber que neste continente, durante tanto tempo esquecido, existiram heróis de carne e osso que conviveram, sonharam e morreram lutando pelos seus ideais, nos enche de orgulho. Diferente daqueles que se dedicam a veicular através do cinema heróis de mentirinha, como Rambo, Superman, Capitão América, Batman e Robin, além do homem Aranha e outras esquisitices, nos, os latino-americanos, podemos dizer que temos no acervo histórico figuras heróicas que resgatam nossa auto-estima.
O Comandante Lalo nos emociona quando relata o momento em que um combatente é ferido no meio da batalha com os soldados de Batista. Seus companheiros tentavam resguardá-lo enquanto disparavam contra o exército inimigo. Quando o Che escuta o grito – “feriram o Joel!!” – imediatamente pula por cima da pedra que servia de refúgio, e vai caminhando em direção do combatente ferido. Atônitos, os soldados param de atirar. O Comandante Guevara carrega o ferido e retorna com ele nas costas. Logo, quando os militares bastinianios foram capturados, contaram que, ao ver ao Che, desafiador no seu olhar e valente na sua figura, o reconheceram e ficaram petrificados sem poder disparar suas armas.
Histórias com esta possuem um significado redentor perante as iniqüidades cometidas no Afeganistão e Iraque por países neo-colonialistas na procura das riquezas escondidas no subsolo. Os povos que lutaram por sua liberdade em épocas passadas, não podem ser esquecidos pelas novas gerações que viveram à margem desses acontecimentos. O verdadeiro conhecimento deve ser enquadrado no pragmatismo histórico, e não na crença de que se podem argumentar fatos dessa natureza usando referências em revistas de pasquim ou pesquisas fajutas. A liberdade do intelecto deve passar obrigatoriamente pelas bibliotecas, pelas livrarias, pelos museus e pelos testemunhos vivos daqueles que foram partícipes da própria história.
Victor Alberto Danich

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

OS BANQUEIROS E O CHE GUEVARA

As crises cíclicas do capitalismo são muito conhecidas no jargão econômico, como os ciclos de Schumpeter e Kondratieff, que identificam nas devastadoras rodas de crescimento e recessão o funcionamento dos ciclos comerciais. A doença do sistema não é apenas isso, senão também a luxuria de seus gestores na cobiça por ganhar dinheiro de forma ilimitada e fácil. Tal comportamento enfermiço levou à rede bancária americana a se transformar no epicentro da tormenta econômica, teatralizada com a maior insensibilidade pelos executivos dos principais bancos, quando foram pedir socorro financeiro ao governo em jatinhos particulares. Que relação há entre esses banqueiros e o mitológico Comandante Che Guevara? Vou contar uma história que talvez serva de exemplo para os jovens que ainda se encontram em processo de socialização, que lhes permita vislumbrar a possibilidade de construir um mundo melhor.
O comandante Ernesto Guevara, nos primeiros anos da revolução, estava no aeroporto de Bayamo em Cuba. Impaciente, fala para seu piloto: “Eliseo, temos que ir para Havana” – e o piloto lhe responde – “Veja comandante, o tempo não está muito bom, já é quase de noite, este avião monomotor não é grande coisa e as condições não são nada boas para viajar para Havana”. O Che insistiu e terminaram despegando em direção a capital. Depois de um tempo voando através da tormenta, o piloto comenta assustado: “Olhe comandante, olhe o tempo”. “Ta bom – o Che aceita de má vontade – retornemos a Bayamo”.
A pista foi marcada com tochas por pessoas ao longo da mesma, e dessa forma conseguiram aterrissar sem perigo de capotar. Quando estavam descendo do avião, aparece Aleida, mulher do comandante Guevara, que faz com que o piloto entendesse a razão da obstinada e perigosa insistência do Che em continuar a viagem. Ela diz: “Eliseo, você tem dinheiro?” – “Si senhora” – responde o piloto. “Bem, porque o problema do Che, e não se atreve a dizer-lhe, é que não tem dinheiro para pagar o hotel, nem a comida, nem nada, e lhe falta à coragem de pedir-lhe”. “Caramba – respondeu o piloto – tenho o dinheiro necessário para ficar em Bayamo até a tormenta passar, e na Havana acertamos”. Se tal fato fosse contado apenas dessa forma seria uma história banal. Entretanto, a austeridade do Che é conhecida por aquele episódio, já que acontecimento ocorreu na ocasião em que o Comandante Guevara era presidente do Banco Nacional de Cuba. O dinheiro, para Guevara, ocupava um lugar secundário nas relações entre pessoas e, por isso, quando teve que estampar sua assinatura na prancha de impressão das novas cédulas cubanas, se limitará a rabiscar um “Che” pequeno, irreverente e burlão, como poucos seriam capazes de fazê-lo.
Victor Alberto Danich - Sociólogo

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

TEMOS QUE APRENDER COM CHILE

Estas foram às palavras de Álvaro Uribe, presidente da Colômbia, durante uma visita a Santiago, na qual assinou com Michelle Bachelet um acordo de livre comércio. “É um exemplo para Latino América e para o mundo” arrematou José Luis Rodriguez Zapatero em Madrid. A mais notável afirmação foi feita pelo outro lado do espectro ideológico. George W. Bush expressou sua admiração perante o então presidente chileno Ricardo Lagos: “Chile é incrível”. De que maneira este pequeno país seduziu o mundo? Qual o segredo de seu êxito? Como logrou tanta prosperidade? A resposta é muito simples: com um cedo e feroz neoliberalismo. Em 1973, a ditadura de Augusto Pinochet realizou uma transformação radical da economia chilena. A eliminação da política como condição preliminar para formular um novo modelo de crescimento para fora, centrado em receitas neoliberais, por meio de um acentuado impulso exportador, além da reorientação da macroeconomia com profundos cortes fiscais e privatizações maciças, fizeram avançar o país rumo a uma abertura econômica totalmente desregulamentada. Os governos que lhe sucederam acentuaram o êxito econômico de tal modelo, tanto, que a Estatal Codelco, mineradora de cobre, em 2007 aportava ao governo chileno um milhão de dólares... por hora!
Neste momento de crise mundial, o modelo chileno mostra suas incertezas. A principal se resume na prática exportadora de produtos primários, que representam 80% das exportações, das quais o cobre ocupa 40% desse total. Desse modo, o desenho exportador baseado em matérias primas e manufaturas elaboradas a partir das mesmas, dificultam a distribuição dos benefícios a todos os setores sociais. O segundo ponto fraco do modelo é a desigualdade gritante, que separa em quatorze vezes a distância entre os 20% dos mais ricos e os 20% mais pobres da população. Por se tratar de um sistema totalmente privatizado, a população de classe média não consegue se incorporar ao consumo de forma plena: o custo da universidade é alto, as tarifas são caras e o sistema impositivo provadamente perverso, que permite a existência de uma estrutura tributária no qual os ricos praticamente não pagam impostos.
A exuberância do modelo neoliberal funcionava através de pirâmides financeiras, que prometiam prosperidade para todos. Milhões de pessoas acreditaram no “canto da sereia” porque conseguiam consumir as migalhas do sistema. Mas essas iscas apenas escondiam a verdadeira fonte das riquezas acumuladas, que era a especulação financeira desregulamentada e parasitária. Os picaretas neoliberais caíram na sua própria armadilha. Muitos deles continuam ricos e mimetizados, outros perderam tudo ou estão presos. O Chile dos Boys de Chicago está pagando o preço por confiar nesse modelo suicida.
Victor Alberto Danich - Sociólogo